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Delito de Opinião

O impeachment de Dilma Rousseff.

Luís Menezes Leitão, 31.08.16

O povo brasileiro tem uma extraordinária capacidade para reiventar a nossa língua comum. Enquanto em Portugal continuamos arreigados ao clássico impeachment, por vezes traduzido para impedimento, no Brasil as novas palavras surgem à velocidade da luz, mais rápidas do que o próprio pensamento. Segundo as notícias de hoje no Brasil, a Presidente (ou Presidenta) Dilma Rousseff foi assim "impichada". O problema é que, apesar do desastre em que tinha caído a governação de Dilma, esta decisão é completamente disparatada e, ou muito me engano, ou vai abrir um conflito social sem precedentes no Brasil.

 

A decisão do Senado foi de 61 votos contra 20. Parece um resultado esmagador mas não é. É que o que prevê o art. 52º da Constituição Brasileira é que a condenação do Presidente por crimes de responsabilidade associa à perda do cargo a inabilitação por oito anos, para o exercício da função pública. Trata-se de uma sanção pesadíssima, o que bem se compreende, pois estão em causa crimes de responsabilidade e não uma mera censura política ao Presidente. Aliás, a mesma situação é prevista noutras constituições como a portuguesa, onde o art. 130º, nº3, associa à destituição do Presidente a impossibilidade da sua reeleição. Não passa pela cabeça de ninguém permitir que o Presidente quisesse a seguir reverter nas eleições uma decisão de destituição.

 

Mas o Senado não foi capaz de condenar a Presidente na inabilitação para o exercício da função pública, já que a favor dessa decisão votaram apenas 42 senadores, o que é insuficiente para a maioria de 2/3 exigida pelo art. 52º da Constituição Brasileira.

 

Ora, se o Senado brasileiro não teve coragem de condenar a Presidente em todos os efeitos da pena prevista na Constituição para o crime de responsabilidade, isso só significa que não considerou a sua conduta como tendo a gravidade suficiente para merecer essa pena. A condenação parece ser assim apenas política, exclusivamente para a remover do cargo.

 

Só que destituir um Presidente, permitindo que ele concorra nas eleições seguintes, é abrir a caixa de Pandora. A campanha pela nova eleição de Dilma Rousseff começa hoje mesmo. E aposto que Michel Temer não vai ter um minuto de sossego. Será que no Senado brasileiro ninguém foi capaz de ver isto?

A minha é maior que a vossa

Pedro Correia, 31.08.16

Constituição espanhola tem 169 artigos. A Constituição da V República Francesa, 89. A da Alemanha, 146. A da República Italiana, 139. A da Suécia, 132.

Portugal, onde a mania de legislar é quase uma doença endémica, supera tudo isto: a lei fundamental portuguesa tem 296 artigos. Aqui está uma oportuna matéria de reflexão para a nossa classe política que agora regressa de férias. Já que tanto se fala em "andarmos a par da Europa", não seria mau começarmos por ter uma Constituição à dimensão europeia.

Diário semifictício de insignificâncias (9)

José António Abreu, 30.08.16

Para Agosto, o trânsito tem andado mauzito. Bastante melhor do que noutros meses, mas mauzito. Talvez menos portuenses tenham ido para fora do que em anos anteriores. Ou quiçá o acréscimo de viaturas se deva exclusivamente aos turistas espanhóis. Ou se calhar muita gente anda a gastar combustível para ajudar as contas públicas. Ou então o fumo dos incêndios e o calor excessivo das primeiras semanas do mês deixaram o meu pessimismo numa fase particularmente aguda, que me leva a ver mais carros do que em anos anteriores.

Realisticamente (se um optimista é um pessimista mal informado, um realista é um pessimista capaz de fazer escolhas), inclino-me para uma conjugação das hipóteses 1, 2 e 4 - as reportagens televisivas mostram praias algarvias cheias, circulam nas ruas muitas matrículas espanholas, e eu não posso estar bem quando também me parece andarem por aí menos mulheres atraentes em trajes de Verão de que noutros anos. Mas, seja a verdade qual for, sinto falta de uma cidade calma, em modo de pausa. Turistas nos passeios e nas esplanadas não me incomodam; fazem-me sentir num destino de férias e até conferem cosmopolitismo à minha decisão de aqui permanecer. Mas, por algum motivo, o trânsito arruína a sensação de que a cidade é uma espécie de cenário megalómano, feito exclusivamente para mim e para meia dúzia de outros residentes tão esclarecidos como eu - pessoas disponíveis para a cidade nesta altura do ano por saberem que é agora que ela atinge o grau máximo de disponibilidade.

Por outro lado (diabos levem esta necessidade de manter os pés no chão, dispensada com estonteante leveza pelos optimistas), «esclarecido» pode não ser o termo mais correcto para designar quem fica a trabalhar em Agosto.

Injúria póstuma a Graça Moura

Pedro Correia, 29.08.16

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 Foto Nuno Ferreira Santos / Público

 

Mais do que uma desconsideração intelectual, constitui uma injúria que um organismo público como a Imprensa Nacional Casa da Moeda utilize o nome de Vasco Graça Moura para atribuir um  prémio literário destinado a distinguir uma obra forçosamente escrita em acordês.

 

O grande poeta, ensaísta, ficcionista e tradutor já cá não está para zurzir os responsáveis daquela instituição com a verve que todos lhe conhecíamos e a paixão que sempre colocou nesta batalha de ideias. Mas até por isso é dever de todos os seus amigos e admiradores insurgirem-se contra o abuso que constitui a associação de Graça Moura a um prémio que exige a utilização das normas ortográficas que ele sempre combateu.

Não há outra leitura possível do artigo 10.º do regulamento do concurso, escrito na ortografia que o autor de Naufrágio de Sepúlveda abominava: “O autor premiado aceita que a INCM execute uma revisão literária dos originais, na qual sejam eliminadas todas as incorreções [sic] ortográficas ou gramaticais, e resolvidas as inconsistências com as normas de estilo adotadas [sic] para a publicação do Prémio INCM/Vasco Graça Moura.”

Como alertou Octávio dos Santos, num artigo no Público que chamou pela primeira vez a atenção para o caso, a administração da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, por ele contactada, confirmou por correio electrónico: "O texto vencedor será publicado de acordo com a ortografia do Acordo Ortográfico de 1990."

De resto, a tocante preocupação da INCM pelas "incorreções" [sic] devia começar pela própria redacção deste regulamento: onde se lê "usa" em vez de "sua" no artigo 9.º, n.º1 (curioso lapso, daqueles que em linguagem freudiana costumam merecer o rótulo de acto falhado).

 

Além do inaceitável paternalismo que revela, só lhe faltando vir acompanhado da antiga "menina dos cinco olhos", o artigo 10.º impõe carácter obrigatório à escrita acordística, fazendo tábua rasa dos mais elementares princípios de liberdade intelectual.

Como Octávio dos Santos justamente questionou: "Será possível que na INCM não exista quem conheça e tenha lido o Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos nacional, que também reflecte e replica legislação e jurisprudência internacionais, e que dá inequivocamente a todos os artistas a prerrogativa de utilizarem e de verem respeitada a linguagem que eles quiserem?” 

Fernando Pessoa, Almada Negreiros e Teixeira de Pascoaes, entre outros escritores que foram firmes adversários da reforma ortográfica de 1911, ficariam liminarmente excluídos deste concurso se por acaso cá estivessem e quisessem concorrer.

Duplo mortal à retaguarda

Sérgio de Almeida Correia, 29.08.16

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Em 2013, num processo que levantou muitas incompreensões entre os seus militantes, Passos Coelho impôs a candidatura de Pedro Pinto à Câmara de Sintra, abrindo caminho à vitória de Basílio Horta.

Na sequência desse processo, em que foi recusado o nome (consensual para as estruturas locais) de Marco Almeida, e apesar deste ter na altura o apoio de oito presidentes de juntas de freguesia do PSD, vários militantes foram expulsos por se terem rebelado contra a decisão da direcção do partido e terem apoiado ou resolvido candidatar-se em listas, e não só em Sintra, contra o seu próprio partido. Outros houve que, entretanto, descontentes com a situação saíram pelo seu próprio pé evitando a expulsão automática prevista nos estatutos.

Volvidos estes anos, que não foram tantos como isso, depois do PSD e Pedro Pinto terem sido cilindrados em Sintra, perdendo Marco Almeida a Câmara para o PS por menos de dois mil votos, eis que surgem notícias dando conta de um mais do que provável apoio desse mesmo PSD, ainda e sempre dirigido por Passos Coelho, a uma recandidatura do referido Marco Almeida nas autárquicas de 2017.

Em 7 de Junho p.p., num texto de Cristina Figueiredo, o Expresso anunciava que o PSD estaria a considerar o "endosso" à candidatura de Marco Almeida (Sintra) e, eventualmente, à de Paulo Vistas, em Oeiras. E citava declarações do coordenador autárquico, Carlos Carreiras, em que este dizia que o partido não iria limitar as suas opções desde que fossem coerentes com "o projecto".

Depois, em Julho, o Público avançava com a notícia do apoio do PSD, do CDS, do MPT e do movimento "Nós Cidadãos em Sintra" à candidatura de Marco Almeida.

Já este mês, no dia 3, o jornal OJE esclarecia que em Sintra, "apesar de nenhuma voz oficial o confirmar, o processo estará também encerrado do lado dos social-democratas", adiantando-se que "várias fontes confirmaram mesmo ao OJE que o acordo entre Marco Almeida e a cúpula do PSD já está fechado, faltando apenas acertar detalhes e nomes integrantes da lista a apresentar."

Na sexta-feira passada (26/08/2016, p. 6) foi a vez do Público informar que Marco Almeida, depois de já se ter reunido com outras forças políticas, entre as quais o PSD, recebeu por unanimidade o apoio da JSD para se candidatar à presidência da Câmara de Sintra.

É, pois, neste momento quase seguro, embora não se saiba muito bem qual "o projecto" autárquico do PSD, que Passos Coelho e a sua direcção se preparam para engolir não um mas várias famílias de sapos, das mais variadas espécies e proveniências, nas autárquicas de 2017, para evitarem uma humilhação política. Humilhação que após a gritaria, aliás inconsequente, para impedir o governo da dita "geringonça" passa agora por fazer um duplo mortal à retaguarda, ainda que para isso seja necessário participar na criação de novas "geringonças" que pragmaticamente garantam o acesso ao poder e o ganha-pão das suas clientelas.

Sabíamos, pelo passado recente, que a coerência não era um forte deste PSD de Passos Coelho. Quanto a esse ponto não há nada de novo. Contudo, seria interessante desde já saber até onde irão o perdão e o acto de contrição e se, por hipótese, Marco Almeida resolver incluir na sua lista alguns dos que foram antes expulsos, convidando de novo, por exemplo, António Capucho, o histórico ex-militante e fundador do PSD, para encabeçar a lista para a Assembleia Municipal de Sintra, se ainda assim o PSD o apoiará. Ou, quem sabe, se o nome desse e de outros ex-militantes, como é agora o de Marco Almeida, que saiu do partido e encabeçou uma lista contra Pedro Pinto, é também negociável em nome do tal "projecto".

Os comentários da semana

Pedro Correia, 28.08.16

«Compreendo a sua preocupação e é razoável o seu receio de que "para o ano cá estaremos, impotentes e aflitos, a assistir a mais uma reprise do (maior) espectáculo de sempre". Assim tem sido apesar das repetidas promessas dos nossos governantes.

Mas não me parece mal a ideia de tentar melhorar a prevenção de incêndios atribuindo às Câmaras Municipais [CM] a responsabilidade para intervirem na gestão das áreas florestais, através de equipas de sapadores, limpando caminhos e cuidando da manutenção de reservas estratégicas de água para combate a incêndios e, quando necessário, procederem à limpeza de parcelas abandonadas, ressarcindo-se dessas despesas juntos dos proprietários ou pela apropriação pela via administrativa desses terrenos abandonados – há legislação que prevê algumas medidas.

Falo assim por saber que muitas CM, pela sua reduzida dimensão, não têm condições para assumirem, de imediato, responsabilidades deste género. Todavia, as que já estão habilitadas com o mínimo necessário deveriam avançar imediatamente. O pior que nos pode acontecer é, como disse, chegarmos ao próximo ano com tudo na mesma.

Concordo que o governo central pode tomar a iniciativa, começando pelo cadastro e pela transferência para os municípios dos meios financeiros indispensáveis para se operar a mudança de estratégia prometida, ou seja, o desvio de recursos hoje gastos no combate (muitos) para a prevenção.

Uma nota final: para bem se combaterem os fogos florestais não é necessário proceder à limpeza de toda a área ocupada com floresta e com matos - isso até iria contra a necessária biodiversidade. Há zonas inóspitas que só produzem matos que até devem ser periodicamente queimadas, embora de forma controlada, como faziam os pastores no antigamente. Na floresta propriamente dita, o necessário é ordená-la, escolhendo as espécies adequadas e proceder, no terreno, nos moldes adoptados pelas fábricas de celulose (nas zonas que administram) e que muito raramente ardem ou, quando ardem, os fogos nunca atingem grandes dimensões.»

 

Do nosso leitor Tiro ao Alvo. A propósito deste texto da Teresa Ribeiro.

 

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«Se acabarem com o ordenado mínimo o valor do trabalho desce a pique quase de imediato. Se mesmo com a legislação existente as entidades patronais tentam empregar sem contratos e recorrem sistematicamente a estágios o que acha que iria acontecer se não houvesse um limite mínimo a pagar?
Se mesmo com legislação protectora do trabalhador o empregador abusa do poder, faz pressão psicológica, exige o que bem lhe apetece, o que acha que iria acontecer se pudessem despedir quando bem entendessem?
Primeiro tem de se mudar a mentalidade, caso contrário iríamos regredir anos e anos em condições laborais.
Deveriam sim existir diferenças entre sectores, isso concordo, tabelas de ordenados distintas e as empresas deveriam ser obrigadas a ter uma política de recursos humanos que estudasse e fomentasse a progressão das carreiras dos colaboradores.
Mas quando temos pessoas incompetentes, míopes e centradas apenas no lucro imediato e fácil é muito difícil que tal coisa venha a acontecer.»

 

Da nossa leitora Psicogata. A propósito deste texto do João André.

 

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«Não quero criticar os brasileiros (ou os espanhóis), mas antes a nossa postura, muita das vezes subserviente em relação aos mesmos: são os nuestros hermanos e o país irmão quando, na realidade, a maioria das vezes estão-se borrifando para nós ou, pior, somos tratados como algo de inferior - no caso do Brasil, basta ver a "cotação" do português ou do italiano.
Seria importante perceber que essas "demonstrações de afecto" são muitas vezes unilaterais ou usadas como sinal de subserviência política. Mesmo em relações de outro calibre, a posição do Reino Unido face aos Estados Unidos da América é em tudo similar e a special relationship só vale quando interessa aos segundos, em prejuízo dos primeiros - um bom exemplo será o tratado de extradição assinado entre os dois países que dá poderes quase plenipotenciários à justiça norte-americana no Reino Unido sem contra-partida em casos análogos inversos.
Isto para dizer que já é tempo de nos deixarmos de apoquentar com essas coisas e partirmos para outra. As relações bilaterais valem o que valem. Devem certamente ser exploradas, até porque é das poucas coisas que o nosso passador de império mercantil deixou, mas em situações em que somos, de facto, acarinhados. Por cada espanhol que não sabe quem é Marcelo teremos portugueses em Malaca ou no Ceilão que sabem e que, mais importante que isso, se importam e são ignorados.»

 

Do nosso leitor Carlos Duarte. A propósito deste meu texto.

Blogue da semana

José António Abreu, 28.08.16

Os excelentes textos sobre literatura (muitos dos quais publicados na Ler, no Sol ou no i) conseguem fazer-me deglutir o português pós-Acordo Ortográfico sem me ficar na boca mais do que um travozinho vagamente reminiscente de óleo de fígado de bacalhau (pergunto-me se alguém com menos de 40 anos conhecerá o sabor...). Ainda por cima, de acordo com os meus inatacáveis padrões abstracto-meta-pós-pop-neoclássico-figurativo-realistas, trata-se de um espaço bonito. Coração Duplo, de Filipa Melo, é o blogue da semana.

Diário semifictício de insignificâncias (8)

José António Abreu, 27.08.16

Passo três quartos de hora a aspirar o chão. É inevitável: fico a transpirar como o Nadal após cinco sets em Melbourne Park. Não percebo. Cozinho sem transpirar (fico só a cheirar mal); passo a ferro sem transpirar (mas irrito-me à brava com as peças finas, que não consigo manter estendidas sobre a tábua); faço a cama sem transpirar (apenas me ficam a doer as costas, quando é preciso mudar os lençóis). Porém, aspiro dez minutos e começo a pingar água - mesmo no Inverno. Deve ser da posição. Ou dos movimentos repetidos, para a frente e para trás, para a frente e para trás. Sim, agora que penso no assunto, também noutras situações este tipo de movimentos deixa-me muitas vezes a transpirar. (Enfim, será mais exacto escrever «quase 100% das vezes»; muitas é exagero - ou talvez aspiração.)

E a coisa não fica pelo desconforto nem pelo facto de ter de ir tomar banho de cada vez que aspiro migalhas de pão na cozinha (ainda hei-de estimar os custos em água, sabonete e champô). Também atrapalha o processo. As gotas de suor caem no chão junto ao bocal do aspirador e são espalhadas e aspiradas por este. Não sei porquê mas acho isto um bocadinho nojento, pelo que tento evitá-lo. Ando com um pano e baixo-me para as limpar - o que só gera mais suor. Mas não as posso deixar no chão, especialmente nas partes em madeira. Considerando os efeitos que tem na minha pele, o meu suor é certamente corrosivo. Já bastam as marcas causadas pelas areias trazidas na sola dos sapatos. E pela minha crescente tendência para deixar cair objectos. Um dia destes escrevo sobre isso. Ou não. É coisa para me fazer sentir senil.

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