Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Mário Moniz Pereira (1921-2016)

Pedro Correia, 31.07.16

O Senhor Atletismo - campeão e treinador de campeões, um dos maiores desportistas de todo os tempos, o homem que nas décadas de 70 e 80 pôs o País a correr - acaba de perder a última corrida. Só a morte o venceu, ultrapassada já a meta dos 95 anos.

Era um grande sportinguista, respeitado por pessoas de todos os quadrantes. Um grande desportista, um grande cidadão, um grande português. Era, em suma, um grande Senhor. Com uma personalidade exemplar - a todos os níveis. Desportivo, artístico, cívico.

Infelizmente temos entre nós cada vez menos figuras verdadeiramente nacionais. Mário Moniz Pereira era uma delas.

Miyazaki em Agosto

João Campos, 31.07.16

Forest.jpg

Não será só Kubrick a regressar às salas de cinema lisboetas em Agosto: numa excelente iniciativa do Museu do Oriente, a cada domingo do mês serão exibidas obras dos Estúdios Ghibli, a grande casa da animação japonesa, tornada numa referência de culto pelo talento do realizador Hayao Miyazaki. Do mestre poderemos assistir ao seu último filme, The Wind Rises (que estreou há não muito tempo), e aqueles que serão talvez os seus dois filmes maiores: Spirited Away, que lhe valeu um Óscar, e (o meu preferido) Princess Mononoke, que envergonha qualquer filme feito em qualquer parte do mundo sobre o eterno conflito entre o mundo natural e o mundo tecnológico. Que se desengane quem (ainda) pensar que a animação é coisa de miúdos: por detrás da animação vibrante e colorida de Miyazaki em Mononoke está uma história adulta, ambígua e multifacetada, cujas questões que suscita não têm respostas fáceis, cuja violência em momento algum surge de forma gratuita, e cujo desfecho memorável não podia estar mais longe dos desenlaces delicodoces que fizeram escola no Ocidente com a Disney. Para quem, como eu, só teve a oportunidade de ver este filme num ecrã de televisão ou de computador, esta será uma oportunidade rara para poder apreciar a melhor animação japonesa no grande ecrã; quem nunca viu, ou quem desconheça a obra de Miyazaki, terá aqui a possibilidade de descobrir um dos grandes realizadores do nosso tempo. Garanto que valerá a pena. 

Dez anos depois

Pedro Correia, 31.07.16

O general Raúl Castro recebeu o poder do seu irmão mais velho, Fidel, faz hoje dez anos. E mantém-se como senhor absoluto de Cuba.

Uma década depois, eis uma devastadora panorâmica do quotidiano comunista: salários congelados, rede de transportes em colapso, apagões constantes, edifícios públicos sem ar condicionado, carências de todo o género, dependência das "dádivas" petrolíferas da exangue Venezuela, contínua repressão política, novos recordes migratórios: 44 mil cubanos radicaram-se nos últimos 12 meses nos Estados Unidos e muitos milhares mais preparam-se para fazer o mesmo.

Com quase 20% de população idosa, Cuba é o país mais envelhecido do continente americano. A "revolução" tornou-se tão decrépita como os líderes que lhe restam.

O blog da semana

Helena Sacadura Cabral, 31.07.16

Pois esta semana a minha escolha recai sobre o BLOG DA GRUPA, em http://blogdagrupa.com/.

Porquê ? Porque é um blog diferente que nasceu de um grupo de amigos, todos muito diversos em ideias e idades, feito por gente um pouco boémia e no qual eu também me incluo.

È um blog que vive muito de fotos e de vídeos, embora não descure a massa cinzenta, como se pode ver pelas crónica semanais dos seus nove fundadores. Tem a marca do humor, da alegria, da abertura aos outros, sem nos pretender massacrar com um "quotidiano sem saídas". Enfim, um blog despretensioso, que anima até os mais pessimistas!

Ler

Pedro Correia, 31.07.16

A Europa e a Turquia, agora. Do Rui Bebiano, n' A Terceira Noite.

O ruído do tempo. De Sofia Loureiro dos Santos, no Defender o Quadrado.

Roubos e derrubes. De Mafalda Pratas, n ' A Destreza das Dúvidas.

O novo herói português. De Rui Albuquerque, no Blasfémias.

Memórias dum Chefe de Gabinete, de Tomás da Fonseca. De António Araújo, no Malomil.

A gorda do Texas. Do Luís M. Jorge, na Vida Breve.

Calem-se! Do Pedro Rolo Duarte.

Desta praga não nos livramos. Da Joana Lopes, no Entre as Brumas da Memória.

As good as it gets. Da Maria João Caetano, n' A Gata Christie.

Spielberg - a herança de Disney. Do João Lopes, no Sound+Vision.

Tu mereces que Alvalade grite o teu nome, Rui. Do Cherba, na Tasca do Cherba.

Sonho de uma noite de Verão. Da Helena Ferro de Gouveia, no És a Nossa Fé.

Na Guerra e no Amor

José António Abreu, 31.07.16

«A coisa de que Amílcar Tinoco mais tinha orgulho na vida era um garanhão chamado Pégaso. A segunda, uma égua chamada Epona (ele tinha a mania de escolher nomes da mitologia que ninguém por aqui entendia). Com uma ajudinha de Pégaso, ela trouxera ao mundo dois dos cavalos que mais lucro lhe tinham proporcionado. A terceira coisa de que ele mais se orgulhava era um podengo alentejano chamado Tejo (os cães não lhe mereciam as mesmas honras que os cavalos). A quarta era a herdade, a quinta, o muito dinheiro que tinha, a sexta, a filha, a sétima, a amante, a oitava, um bom copo de vinho, a nona, o filho, e a décima talvez fosse a mulher. Toda a gente o sabia e, se quanto à ordem dos últimos pontos ainda podia haver discussão, os primeiros dois eram evidentes para qualquer pessoa.»

«Já sei isso tudo. E depois?»

Encolho os ombros. Ele tem quarenta e sete anos mas continua a pessoa totalmente incapaz de raciocinar para além do que lhe dizem (ou seja, de raciocinar, pura e simplesmente) que sempre foi. Deve dizer algo sobre mim ter gerado um filho assim. Se bem que – convém não esquecer – a mãe também nunca teve imaginação ou queda para raciocínios elaborados. Coisa que, no caso dela, até calhava bem. Serafim (nunca gostei do nome mas Alice insistiu – «apesar de tudo, era o nome do meu pai, coitado») deve ter saído a ela. Não na beleza, porém. Alice aguentou-se até ao fim com uma aparência invejável e uma quantidade surpreendentemente baixa de rugas, até mesmo no pescoço, a zona onde quase toda a gente acaba por parecer um peru. Sei que estou pior do que ela estava. Pior do que ela estava há dez ou quinze anos, até. Careca, barrigudo, com pêlos saindo-me das narinas e das orelhas que não vale a pena cortar (voltam passados dias, se não horas), expressão de permanente resignação que a maioria (este idiota do meu filho, por exemplo) toma por mau humor. Estou acabado. Mas permaneço vivo.

Estamos sozinhos na sala. A mulher dele – uma lisboeta magra que se diz gestora e que quando não é histérica se limita a ser incoerente – seguiu para Lisboa de comboio. Por causa das crianças, disse. Duas raparigas, de onze e nove anos, a caminho de serem tão tontas quanto os pais (mas adoro-as, atenção – que alternativa tenho?). Serafim insistiu em passar cá a noite – «Não aceito que fiques sozinho.» Ora merda. Como se fosse mais fácil estando com ele. Expliquei-lhe que amanhã ao nascer do Sol já aqui estarão várias pessoas, dentro de casa e lá fora, a tratar dos animais. Nada feito. «Não quero que passes o tempo a pensar na mãe», explicou. Que mal faria? Seria melhor do que aguentar este arremedo de conversa. E Alice merecia que se pensasse nela. Podia não ser imaginativa mas era prosaica e sensata. Serafim também se acha sensato (ser ou não prosaico nunca lhe deve ter passado pela cabeça) mas é apenas chato.

«Sempre deixaste entender que havia mais qualquer coisa por trás da forma como vocês acabaram por casar», diz ele. Está sentado num dos sofás individuais que, de repente (constato-o com um choque que por instantes me leva a não processar as palavras dele), me parecem extraordinariamente antigos, apesar de Alice e eu os termos comprado ainda nem há dez anos. E então percebo que tudo ficou umas dezenas de anos mais velho nas últimas vinte e quatro horas, incluindo eu.

Tento lembrar-me do que ele disse.

«Não deixei entender nada», respondo. «Disse-to uma vez, tinhas tu dezoito anos.»

Permite-se um sorriso. Tem um copo na mão. Foi buscá-lo logo que chegámos. Despejou dois dedos de whisky lá para dentro e veio sentar-se. Agora mantém-no suspenso sobre o braço do sofá. Uma pose, toda a sequência. Influenciada por filmes americanos e por telenovelas que os copiam. Uma cópia em terceiro grau, portanto.

«Por causa da Francisca. O que é feito dela?»

«Casou, emprenhou, engordou. Mais ou menos o mesmo que tu. Excepto a parte do emprenhar.»

«Hoje podes dizer o que quiseres, eu recuso chatear-me.»

«Ora merda, então onde está a piada?»

Cumpre a promessa e ignora a provocação, o balofo bastardo – não, bastardo não, que ele é de facto meu produto infeliz. Quem diria que os meus genes, misturados com os de Alice, dariam nisto? Bom, convenhamos que, apesar do código genético dele poder ser mais parecido com o meu (e com o dela) do que com o de qualquer outro ser humano, não deixa de ser quase tão parecido com o de um orangotango como com o nosso.  

«Numa coisa tinhas razão. Disseste-me que eu não a amava.»

«Disse-te que não sabias o que era o amor.»

«Isso.»

«E ainda não sabes.»

«Não comeces. Eu e a Liliana damo-nos muito bem.»

«Excelente.»

«Achas mesmo que a tua relação com a mãe era diferente? Só por causa das dificuldades que o pai dela vos causou?»

«Não, não é só por isso.»

«Então?»

Como é que se consegue que um idiota sem imaginação perceba que a realidade era muito diferente quando ele ainda nem na fase de espermatozóide se encontrava? Como é que se descrevem as décadas de cinquenta e sessenta do século passado numa povoação atrasada de um país atrasado a um frequentador de centros comerciais e praias algarvias?

«A minha relação com a tua mãe assentava em esforços e sacrifícios que tu nem consegues imaginar.»

«Sempre achei piada às tuas tentativas para vos fazer passar por Romeu e Julieta. Quer dizer, às vezes só achava ridículo.»

«Romeu e Julieta… Não é tão descabido como pensas.»

«Vocês não morreram por amor. Aliás, duvido que fosses capaz de morrer por amor.»

«Ai achas? Bom, talvez tenhas razão. Nunca o faria havendo outras possibilidades.»

Consulta o relógio. «Vou para a cama», diz.

Devia deixá-lo ir. Devia deixá-lo ir dormir e amanhã seguir para Lisboa e voltar à sua vidinha modorrenta, ao lado da mulher que conheceu num escritório, que atraiu com meia dúzia de lugares-comuns, com quem foi para a cama ao segundo ou terceiro encontro, cujos pais sorridentes encontrou pela primeira vez depois de ir para a cama com ela, e que ama o suficiente para, de longe a longe, aceitar ser arrastado para duas horas de O Lago dos Cisnes no Coliseu ou para uma exposição de garrafas vazias penduradas do tecto no Centro Cultural de Belém. Em vez disso, digo:

«Eu era filho de camponeses analfabetos e, ainda por cima, o teu avô tinha fama de bêbado – e de comunista. Apesar de beber e de não gostar do Salazar, não era nem uma coisa nem outra. Eu tinha feito a quarta classe mas trabalhava a tratar de cavalos e vacas e nunca havia de fazer outra coisa. O teu avô Serafim tinha terras, gado, considerava-se um latifundiário. Queria lá um vagabundo como eu para genro.»

«A mãe também só tinha a quarta classe.»

«De onde já podes ver a mentalidade dele. Podia tê-la mandado estudar. Mas era mulher, não valia a pena. Tinha era de lhe arranjar um marido decente. E eu nunca o seria.»

«Caramba, postas as coisas assim, parece que vivias na Idade Média!»

E é este gajo licenciado em direito. O meu filho. Incapaz de ver um palmo à frente do nariz. Nascido numa década de sessenta em que efectivamente muitas zonas deste país de merda mal tinham saído da Idade Média mas sem qualquer noção disso; sem qualquer noção de que o mundo em que se tornou adulto era já um mundo diferente. E, no fundo, por que haveria de a ter? Para os padrões locais, cresceu rico, sem preocupações. Teve brinquedos e televisão, foi ao cinema, desfrutou de viagens frequentes a Lisboa. Nunca pegou numa enxada a não ser para fingir que cavava. No passado, tentei muitas vezes que o percebesse, para grande ofensa dele e grande aflição da mãe. Desta vez fico calado.

Ele abana o copo com o whisky e diz: «Uma coisa que sempre estranhei é que gostavas mesmo dela.»

Ignoro a provocação – que mostraria alguma capacidade de raciocínio não fosse a constatação de duas realidades óbvias para qualquer pessoa que alguma vez tenha passado dez minutos comigo e com Alice: a de que a amava e a de que sempre fui um sacana – e centro-me no essencial. É verdade. Amava-a. Durante uns tempos cheguei a pensar fazê-lo por não querer admitir ter feito um mau investimento. Afinal, consegui-la exigira tanto. Mas não; amava-a e pronto, vá-se lá saber porquê. A explicação mais cínica que consigo arranjar, e se calhar também a mais realista, é que sou demasiado teimoso para mudar de ideias. Se aos vinte anos decidi amá-la, era para continuar a fazê-lo até ao fim. E foi.

«Porquê? Não tenho capacidade para amar?»

A mão dele imobiliza-se mas o whisky fica ainda a rodar dentro do copo.

«Para ser sincero, era isso que parecia na maior parte das vezes.»

«Óptimo, alguma sinceridade, finalmente.»

«Nunca tivemos conversas destas.»

«E tens pena?»

Ele fica a pensar na resposta e eu aproveito para continuar: «Outra coisa que toda a gente sabia é que Tinoco era amigo do Salazar. E outra ainda…»

«Por que é que insistes nessa história? O que me interessa o Tinoco? Sei perfeitamente o que se passou.

«Outra ainda é que era um sujeito que fervia em pouca água. Detestava ser contrariado e zelava pelos seus interesses de uma forma quase maníaca. Uma vez apanhou um sujeitinho de Lisboa debaixo de uma azinheira a tentar desempenhar o papel do Pégaso com a filha dele (a tentar cobri-la, para pôr as coisas de forma que não te faça pensar muito) e deu-lhe um tal enxerto de porrada que o rapaz, que hoje é um velho como eu, continua a coxear lá pelas calçadas de Lisboa.»

«Sim, e então?»

«Então o Tinoco detestava o teu avô e o teu avô detestava o Tinoco. Questões de terras e de política. As coisas andavam de tal maneira que o Tinoco tinha morto a tiro um cão do teu avô que lhe apareceu lá perto de casa e ainda se gabou do feito.»

«Eu sei, e então o cavalo apareceu morto e o Amílcar Tinoco, convencido do que tinha sido o meu avô a mandar matá-lo, matou o avô. Já sei isso tudo. Ouvi a história milhares de vezes. E então?»

Ignoro-o.

«Com uma forquilha espetada na barriga. Os dentes da forquilha tinham sido afiados com uma lima. Foi descoberto de manhã, já morto, mas deve ter agonizado durante horas. Ninguém conseguiu segurar o Tinoco. Pegou na pistola e partiu à procura do teu avô. Quase nem o deixou falar. Meteu-lhe uma bala na cabeça e mais duas no peito, as do peito já depois de ele estar no chão. Pelo menos morreu mais depressa do que o cavalo.»

«A tua indiferença é comovedora.»

Uma tentativa de humor. Quase sorrio. Este idiota, que se leva sempre tão a sério, escolhe este preciso momento para tentar uma piada.

«Por que é que havia de fingir tristeza?»

«Era o pai da mulher com que querias casar. O meu avô.»

«Nem mais. O único impedimento ao nosso casamento. Por que é que eu havia de estar triste?»

A compreensão chega-lhe aos olhos como uma cortina semitransparente descendo sobre uma janela. Tem uma certa piada. A compreensão devia iluminar, não escurecer.

«Não estás a falar a sério.»

«Eu lá costumo brincar. Ainda por cima, hoje.»

«Foste tu quem matou o cavalo?»

Encolho os ombros. «Nunca ouviste dizer que na guerra e no amor vale tudo? Quando o amor é a sério, claro.»

A noite de Lua Nova, em meados de Agosto, estava escura, apesar do céu estrelado, e quente, muito quente – abafada como um quarto fechado. Eu transpirava enquanto deslizava pela propriedade de Amílcar Tinoco, fazendo uma volta para não alertar os cães. Levava na mão a forquilha preparada de véspera e usá-la-ia neles, se fosse preciso, mas preferia evitar o ruído. Não sentia medo. Tinha um objectivo e sabia como o atingir. Trabalhava lá, conhecia o terreno, os edifícios, o cavalo. O que poderia correr mal? Nada. E nada correu mal. Correu tudo conforme esperara. A morte do cavalo, que tombou à segunda vez que o espetei com a forquilha e ficou a estrebuchar quase em silêncio, a reacção do Tinoco, o fim do cabrão do velho que não me deixava aproximar de Alice, a ideia generalizada de que tinha sido mesmo ele o responsável pela morte do cavalo (a descoberta da forquilha com os dentes afiados num barracão da propriedade ajudou). Tudo perfeito, então e em todos os anos que se seguiram. O único momento em que senti uma ponta de remorso foi ao ver Alice chorar a morte do pai. Mas passou-me depressa.

Ele levanta-se, ainda a segurar o copo de whisky. Parece-me que a mão lhe treme mas pode ser impressão minha. Já não tenho tantas certezas como quase toda a gente – incluindo este meu filho – julga que tenho. Mas dá-me ideia que disfarço bem.

«A mãe sabia?»

«A tua mãe nunca teve grande imaginação. Como tu.»

Procura um lugar onde pousar o copo. Diz: «Vou-me embora.»

«Tem cuidado na estrada.»

«És um filho da puta.»

«Não, isso não. O único homem com quem a tua avó teve relações foi o teu avô e desconfio até que ele nunca a viu nua.»

Ele parece querer falar mas não saber o que dizer. (Caralho, não é meu filho e, para mais, advogado?) Desiste. Encaminha-se para a porta. No caminho, pousa o copo junto ao televisor desligado. Pára. Roda. Pergunta: «Só mais uma coisa: valeu a pena?»

Olhamo-nos nos olhos.

«Diz-me tu. Não existirias se eu não o tivesse feito.»

Consegue empalidecer ainda mais um pouco. Abana ligeiramente a cabeça, roda outra vez e sai, deixando a porta da sala aberta.

Permaneço sentado. Ouço o ruído da porta da rua e, segundos depois, o do motor do carro. Acho que não penso em nada enquanto o som do motor e dos pneus no cascalho se desvanece. Depois disso, o silêncio parece absoluto. A casa está fria e vazia. Os animais estão calados. Nem o frigorífico, na cozinha do outro lado do corredor, emite o zumbido do costume. Fico sentado durante muito tempo. Podia ir para a cama mas ainda é cedo. De qualquer modo, Alice não vai lá estar à minha espera. Não vai queixar-se de eu demorar, nem dizer que não consegue adormecer antes de eu chegar, nem aquecer os pés nos meus, nem passar a noite toda a acordar e a virar-se na cama porque eu ressono como um motor de rega. Respondo à pergunta que o meu filho me fez: sim, valeu a pena. Até hoje – até ontem – valeu a pena. Depois, cedo ou não, levanto-me e vou para a cama.

 

(Republicado.)

Esplanada de praia

Teresa Ribeiro, 30.07.16

praia1.jpg

 

Desamparado, o casal seguia com uma atenção esforçada a conversa do miúdo. Falava do quê? Talvez do Pokemon Go. O pai segurava o sorriso, olhos distraídos, mais atentos aos seus gestos e expressões animadas do que ao que dizia. A mãe observava-o silenciosa, naquela paz desconsolada de quem sabe que está a perder qualquer coisa, embora não saiba o quê.

No mar, famílias como a deles preenchiam com mergulhos e braçadas o mesmo sudoku feito de horas e horas de tempo livre. Mas havia os outros, os que em grupos ruidosos faziam o Verão. Gargalhadas e conversas alheias mescladas de pregões "Olhá bola de berlim!", choros de bebés, ralhetes "Agora não vais para a água!". A banda sonora de sempre.

Mais tarde, depois do banho, quando o casal e o filho se estenderem na toalha ao Sol, essa vida difusa há-de embalá-los e compor, enquanto dormitam, uma apaziguadora ideia de férias.

Mundos com regras próprias

Luís Naves, 30.07.16

eyes-wide-shut.jpg

 

Frase

“É possível, dentro das regras europeias, gerir um orçamento com o rigor necessário, sem penalizar os rendimentos das pessoas, sem mais cortes nos salários e pensões e sem carregar a economia com impostos”. Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros, recusando a recomendação da Comissão de aplicar medidas equivalentes a 0,25% do PIB.

SIC, 28 de Julho de 2016

 

post:

A ironia de Rui a, em Blasfémias, aplicada aos exageros patrióticos dos últimos dias.

 

A semana

Domingo, 24 de Julho de 2016

Foram conhecidos mais pormenores sobre o golpe na Turquia. Um artigo do New York Times explicava que, antes dos acontecimentos, os serviços de informação turcos estavam a recolher informação sobre milhares de adeptos do movimento de Fethullah Gulen, o clérigo que Erdogan acusa de ter inspirado a acção militar. A sede dos serviços de informação foi um dos primeiros alvos dos ataques. Sabe-se agora que o regime preparava uma purga destes elementos, que se lançaram no golpe para impedir o seu próprio afastamento da hierarquia militar. A facção gulenista é acusada de se ter infiltrado em todos os sectores da sociedade, sobretudo nas mesquitas, meios de comunicação, magistratura e forças armadas. Segundo o jornal americano, o poder dos gulenistas era enorme, incluindo no sector financeiro, universidades e funcionalismo público. Enfim, estas informações indicam que a purga do movimento Hizmet de Fethullah Gulen vai certamente continuar, o que não deixará de criar profundas divisões na sociedade turca.

 

Segunda-feira, 25 de Julho de 2016

Sequência de quatro atentados na Alemanha em apenas uma semana provocou nova discussão sobre a vaga de refugiados. Num destes ataques, um sírio matou uma mulher grávida e feriu outras duas; outro caso envolveu um refugiado que teve acesso a explosivos (o homem morreu na explosão e deixou quinze pessoas feridas). Os autores destes actos de violência tinham problemas psiquiátricos, mas cresce a irritação em relação à política de imigração do Governo. Para muitos alemães, permitir a vaga de refugiados foi um erro de Angela Merkel. Os partidos populistas, com destaque para Alternativa para a Alemanha, tentarão aproveitar a onda de descontentamento. Há um clima de insegurança em toda a Europa, mas os políticos e os meios de comunicação continuam a desvalorizar o fenómeno, o que apenas reforça a desconfiança popular. O estado de negação tende sempre a agravar o problema.

 

Terça-feira, madrugada de 26 de Julho de 2016

A divulgação de mails comprometedores sobre a parcialidade do comité nacional democrata marcou o primeiro dia da convenção do Partido Democrata, em Filadélfia. É profunda a irritação dos apoiantes de Bernie Sanders e o escândalo pode ter efeitos significativos na campanha de Hillary Clinton. Apesar dos primeiros discursos de unidade, muitos eleitores à esquerda terão relutância em votar numa candidata que vêem como a personificação de um sistema político corrompido. Clinton escolheu um candidato a vice-presidente que a ala liberal do partido considera demasiado conservador. As sondagens indicam crescentes dificuldades em estados onde a vitória dos democratas devia ser mais fácil do que se adivinha. A eventual eleição de Donald Trump seria um sismo sem paralelo na história do país, mas os políticos parecem continuar a subestimar a rebelião do eleitorado. Parafraseando a famosa tirada do marido de Hillary, (‘é a economia, estúpidos’), desta vez grita-se: ‘é o sistema político, estúpidos’.

 

Quarta-feira, 27 de Julho de 2016

A Comissão Europeia optou por propor sanções zero a Portugal e Espanha, em relação ao procedimento por défice excessivo. Terminou em anti-clímax um episódio onde ninguém ficou bem na fotografia. Perante a opinião pública, a direita foi colada (justa ou injustamente) ao desejo de que as coisas corressem mal, mas livrou-se de culpas nas contas de 2015; o Governo fez grande berraria contra os credores europeus e os falcões de Bruxelas, terá por isso dificuldade em explicar as medidas adicionais que aí vêm e, paradoxalmente, mais facilidade em manter a geringonça a funcionar. A Comissão, por seu lado, frustrou os países que querem maior rigor na aplicação dos tratados, provocando irritação em alguns deles. O presidente da comissão, Jean Claude Juncker, parece ter caído num momento de hipocrisia delirante, ao vangloriar-se que o órgão a que preside tem de ser mais ‘político’: quem o elegeu para extravasar as suas competências? A Comissão é um organismo técnico que defende a aplicação dos Tratados.

Enfim, o Governo de António Costa deixou de ter álibis para justificar os problemas que criou nos primeiros seis meses de governação. Culpar o governo anterior passa a ser um pouco absurdo e acusar Bruxelas de inflexibilidade colide de forma demasiado óbvia com os factos. Não há, a partir de agora, qualquer pretexto para demissões, nem mesmo a recomendação de medidas adicionais para aplicar até 15 de Outubro (num valor de 0,25% do PIB, ou 450 milhões de euros). O próximo orçamento será rigoroso, sobretudo se o novo objectivo de défice para 2016 (2,5% do PIB) não for alcançado, mas não haverá mais reversões de reformas. Os partidos que apoiam o Governo assinam por baixo ou entram em ruptura. É irónico, mas a esquerda, que cantou vitória com as sanções zero, está numa curva apertada: se sobreviver até fim do mandato, é porque continuou o ciclo de reformas iniciado no tempo da troika. Recomendo, a propósito do futuro, a leitura deste excelente texto de Rui Ramos.

 

 

Mau jornalismo, bom jornalismo

Pedro Correia, 29.07.16

Brussels-portal_3598764k[1].jpg

Atentado de Bruxelas, a 22 de Março: 32 mortos e 300 feridos 

 

Nos dias que correm, qualquer assassino torna-se uma celebridade instantânea. Quanto mais repugnante é o crime praticado - seja o de Orlando, seja o de Nice, seja o de Saint-Etienne-du-Rouvray - mais garantida está a fama mediática dos criminosos.

A besta norueguesa que matou 77 pessoas em 2011 tem honras de wikipédia, o homicida da deputada trabalhista britânica Jo Cox recebe mais espaço na imprensa do que um galardoado com o Nobel, o atirador sanguinário que matou nove seres humanos em Munique é tratado por  "jovem" ou  "rapaz" por parte dos nossos benevolentes órgãos de informação - quase como se a chacina na capital da Baviera fosse uma espécie de rave party.

Começamos a ficar tão indiferentes que a existência de nove cadáveres já nos parece um número irrelevante.

 

O tratamento jornalístico do terrorismo abusa de dois males simétricos: confere projecção global a quem dispara, mata, fere, mutila e viola - favorecendo comportamentos miméticos de um incontável número de potenciais assassinos sequiosos dos seus 15 minutos de fama - enquanto silencia os nomes e esconde os rostos das vítimas. Como se elas nos envergonhassem.

O New York Times procedeu ao contrário: em vez de esmiuçar a biografia dos homicidas, farejar putativos "traumas" que os colocaram na senda do crime ou indagar supostas "questões sociais" como causa justificativa dos morticínios, o excelente diário norte-americano rompeu o tabu, falando dos mortos.

Quem eram, como se chamavam, que sonhos perseguiam, porque estavam à hora errada no local errado. Em paragens tão diversas como Bruxelas, Istambul, Lahore, Ummarari (Nigéria), Iskandaria (Iraque), Grand Bassam (Costa do Marfim), Ancara ou Peshawar.

 

Um total de 247 mortos em três continentes durante duas semanas no passado mês de Março. Pessoas de 26 nacionalidades, vítimas do terrorismo - 17 das quais sem ter sequer ultrapassado uma década de vida. A mais velha contava 84 anos, as mais novas - três - ficaram por nascer.

Outros números trágicos: 1168 pessoas perderam familiares muito próximos na barbárie daquelas duas semanas tão bem documentada no artigo do Times. Duzentas e onze ficaram sem pai ou sem mãe, 78 nunca mais viram o marido ou a mulher.

Pessoas que - estas sim - merecem ver o nome transcrito nos jornais.

Pessoas como nós, você que lê estas linhas ou eu que agora as escrevo. Possíveis vítimas de um acto terrorista num amanhã qualquer.

Chavismo-madurismo agora também já condena os animais à fome

Pedro Correia, 29.07.16

el-presidente-venezolano-nicolas-maduro-en-el-acto

 

"socialismo do século XXI" não se limita a lesar pessoas, que buscam em desespero na vizinha Colômbia ou no fronteiro Brasil os alimentos básicos que deixaram de encontrar no seu país: também já condena os animais à morte. A começar por dezenas de bichos do jardim zoológico de Caracas, que vão morrendo de desnutrição e fome.

Tavez seja excessivo esperar reacções do  Bloco de Esquerda e do Partido Comunista, amigos e aliados do chavismo-madurismo em Portugal. Mas aguardo pelo menos um enérgico protesto do PAN, tão preocupado com os preços das rações para animais por cá enquanto aves, coelhos, tapires e porcos do Vietname vão morrendo no zoo da capital venezuelana e tigres e leões se alimentam ali de mangas e abóboras - enquanto há.

Pág. 1/12