Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Delito de Opinião

Penso rápido (78)

Pedro Correia, 30.06.16

lógica referendária estimula como nenhuma outra as pulsões populistas. É disso que a Europa menos precisa neste momento, confrontada como está com desafios que exigem resposta à escala continental das instituições políticas - desafios como o terrorismo, as migrações, a globalização, a ameaça expansionista russa, as crises financeiras de diversos Estados membros, o espectro da recessão económica e a falência do modelo de segurança social pública tal como o conhecemos desde o pós-guerra.
Que resposta pode ser dada, por exemplo, aos atentados como o de anteontem no aeroporto em Istambul - 42 mortos e pelo menos 40 feridos em estado grave - sem ser através de mecanismos colectivos e de uma fortíssima solidariedade europeia?
Os referendos são caixas de Pandora abertas pelos motivos mais extravagantes (no caso de David Cameron numa tentativa canhestra de entalar a forte corrente eurocéptica do Partido Conservador, tiro que lhe saiu pela culatra) e que dificilmente voltam a ser fechadas. Por isso a Escócia promete avançar já com novo referendo soberanista. Por isso os inconformados com o Brexit mobilizam-se já para que ocorra outro referendo destinado a anular os efeitos do primeiro.
Parafraseando Winston Churchill, a democracia representativa é o pior dos sistemas excepto todos os outros. Arguto Churchill, que nunca necessitou de referendos para tomar decisões, mesmo nos momentos mais dramáticos. Se tivesse convocado uma consulta popular antes de decidir fazer frente à Luftwaffe, talvez hoje o alemão fosse um dos idiomas oficiais do Reino Unido.

Portugal, Espanha e o Brexit

Diogo Noivo, 30.06.16

peninsula-iberica-modis.jpg

 

Os portugueses votaram nos partidos que compõem a actual maioria de governo, mas não a validaram nas urnas. Já os espanhóis tiveram esse privilégio. Durante os últimos seis meses, o PSOE, o segundo partido mais votado nas eleições legislativas de Dezembro, tentou repetidamente formar uma maioria de governo com o Podemos e com o Ciudadanos. O objectivo era impedir o Partido Popular, o mais votado, de governar. Meio ano depois, estes partidos submeteram-se novamente ao voto popular e o resultado é claro: PSOE perde votos e mandatos, obtendo o pior resultado de sempre; o Ciudadanos perde votos e mandatos, tornando-se ainda menos relevante; o Podemos, apesar de coligado com a Izquierda Unida, não consegue mais mandatos, perde mais de 1 milhão de votos e falha o lugar de principal força de esquerda. O Partido Popular, inimigo público número 1 para os três partidos que pugnaram por um arranjo parlamentar, reforça a vitória obtida em Dezembro com mais 14 deputados e mais 600 mil votos. Em Espanha, ensaiou-se uma maioria para desalojar o partido mais votado, e os partidos envolvidos nesse empreendimento foram seriamente penalizados. Já o partido que foi impedido de assumir funções saiu mais forte do acto eleitoral. Talvez seja uma coincidência.

 

Terá sido o Brexit?

É impossível determinar com exactidão o efeito real do Brexit nas escolhas feitas pelos eleitores espanhóis. No entanto, os dados sugerem que esse efeito foi marginal. Em primeiro lugar, PSOE e Ciudadanos, dois dos três partidos mais penalizados, têm fortes convicções europeístas e são contrários ao Brexit. Por isso, é pouco plausível que o eleitorado os tenha sancionado por força do “sim” no referendo.

Em segundo lugar, a flutuação de votos em relação às eleições de 20 de Dezembro sugere que os resultados do passado domingo se devem maioritariamente a assuntos internos. Isto é especialmente visível quando olhamos para a coligação entre Podemos e Izquierda Unida, o Unidos Podemos. Com excepção de Barcelona, o Unidos Podemos foi penalizado em todos os municípios onde governa o Podemos, o que indicia eleitores com motivações locais. Subamos agora um degrau na escala político-administrativa e olhemos para as comunidades. Em Madrid, na Catalunha e na Comunidade Valenciana, o Unidos Podemos perdeu os votos que pertenciam à Izquierda Unida, o que sugere um desagrado dos votantes comunistas causado por guerras internas da extrema-esquerda (cada vez mais audíveis). Por último, se o Unidos Podemos fosse prejudicado por causa do seu anti-europeísmo, seria expectável que houvesse uma transferência de votos do UP para partidos defensores da causa europeia (em particular, para o PSOE). No entanto, o número de votos perdidos pelo Unidos Podemos é praticamente igual ao número de novos abstencionistas.

A motivação dos eleitores é diversificada e cheia de subtilezas, logo não existem causas únicas para explicar resultados eleitorais. No entanto, em Espanha, os dados sugerem motivações de política interna. Assim sendo, coincidência ou não, insisto: os três partidos que tentaram desalojar o partido mais votado foram todos penalizados.

 

Bipartidarismo

No que respeita ao bipartidarismo, há semelhanças entre os vizinhos ibéricos. Em Portugal, nas últimas eleições legislativas, a ameaça à hegemonia do PSD e do PS era substancialmente menor do que a ameaça sentida pelos dois principais partidos espanhóis. No entanto, embora com um cenário parlamentar mais fragmentado, PP e PSOE continuam a ser os principais partidos nacionais. A “nova política” chegou a Espanha, mas ainda não se instalou.

À esquerda encontramos mais parecenças: em Portugal como em Espanha, os socialismos e as extremas-esquerdas na oposição não capitalizaram nas urnas o descontentamento popular contra os governos neo-liberais, contra os Executivos que tinham na austeridade uma opção ideológica, contra a direita subserviente a Berlim, contra aqueles que aniquilam o estado social. Era um aproveitamento inevitável, segundo boa parte da imprensa ibérica. Porém, não aconteceu. Haverá nesta pequena península um divórcio entre a opinião pública e a opinião publicada?

 

Pactos de Governo

Tal como em Portugal, a soma dos derrotados em Espanha ultrapassa a barreira da maioria absoluta. Juntos, PSOE, Unidos Podemos e Ciudadanos contam com 188 deputados (são necessários 176 para a maioria absoluta). A aritmética bate certo, mas a política dificilmente a viabilizará. Ciudadanos e Unidos Podemos são incompatíveis e o perfil Albert Rivera, presidente do Ciudadanos, não se coadunará com cedências de princípios a troco de lugares ou de influência legislativa. Rivera fará exigências que a coligação de extrema-esquerda não poderá cumprir. E vice-versa. Por outro lado, estes últimos seis meses degradaram bastante as relações entre socialistas e podemitas. O acordo entre estas duas forças políticas é teoricamente possível, mas são várias as personalidades de relevo no PSOE que o rejeitam. Vale o que vale, mas o sms enviado por Pablo Iglesias a Pedro Sánchez continua sem resposta – esta terça-feira, na primeira entrevista televisiva depois do acto eleitoral, o líder do Podemos queixou-se do silêncio socialista.

Apesar de derrotados nas urnas, PSOE, Ciudadanos e Unidos Podemos, mantêm o veto a Mariano Rajoy. Em política tudo é possível e 48 horas são uma eternidade que permite vários avanços e recuos. Vão aparecendo sinais de mudança. Mas, para já, as linhas vermelhas são praticamente as mesmas.

 

Principais diferenças de contexto entre Portugal e Espanha

Das várias diferenças entre os cenários políticos de Portugal e de Espanha, três são especialmente significativas: (i) houve maior utilitarismo na esquerda portuguesa; (ii) perante a possibilidade real de integrar um Governo, a extrema-esquerda espanhola viu-se obrigada a apresentar um programa de governo que fosse para além das utopias e dos protestos habituais – e os eleitores do centro ficaram horrorizados com o que viram; (iii) em Espanha houve seis meses de debate e de escrutínio das intenções partidárias, nomeadamente dos propósitos socialistas. Os seis meses de interregno entre escrutínios foram importantes. O eleitorado falou e não ficou tudo na mesma.

O incendiário.

Luís Menezes Leitão, 30.06.16

Na resolução do BES o Estado meteu 3,5 mil milhões de euros, que "emprestou" ao Fundo de Resolução, confiando em que o nosso pujante sistema bancário devolveria o dinheiro. Não só não devolveu nada, como agora o Novo Banco precisa de reforçar o capital em mais 1,4 mil milhões de euros. Como se isto não bastasse, surgiu entretanto a necessidade de resolução do BANIF que custou 3 mil milhões de euros. A isto há que acrescentar as necessidades de recapitalização da CGD que serão no mínimo de 5 mil milhões de euros. 

 

Perante este cenário claro, Schäuble fez uma declaração, que eu até acho simpática, a dizer que Portugal precisa de um novo resgate e que estaria em condições de o ter. A seguir lá lhe puxaram as orelhas, e voltou atrás dizendo que Portugal não vai precisar de qualquer resgate se cumprir as regras europeias que obrigam à consolidação orçamental e à redução do défice. Eu traduzo: Portugal não precisará de resgate se tiver condições para ter um orçamento equilibrado, o que manifestamente não vai ter.

 

Mas entretanto lá surgiu o inevitável João Galamba, a acusar Schäuble de ser incendiário, já que Portugal não precisaria de resgate algum. Só falta agora explicar onde é que vai o país buscar o dinheiro para recapitalizar os bancos. Vai continuar a endividar-se no mercado? Com a dívida que já temos, é a garantia que a breve trecho os mercados se fecham. Vai ligar as rotativas? Enquanto estiver no euro, isso não é possível. É por isso manifesto que o segundo resgate é a única solução. Por isso fariam melhor em ouvir Schäuble, em vez de continuar a viver num mundo de ilusão. Schäuble não pega fogo às finanças da Alemanha, que estão fortes e pujantes. O mesmo já não posso dizer do actual governo português.

Mau Humor

Francisca Prieto, 30.06.16

Hoje foi dia de andar para aqui de estômago embrulhado numa difícil digestão daquelas que só as polémicas nas redes sociais são capazes de provocar.

Ora um rapaz humorista, de nome Diogo Faro, resolveu escrever uma crónica na revista Visão onde, divagando no formato dicotómico a que Miguel Esteves Cardoso brilhantemente nos habituou, abordou a temática das idas à praia dos Betos versus os Mitras.

A crónica até podia ter graça, mas não tinha lá assim muita. Repleta de lugares comuns e até de algumas incongruências, avançava pelas linhas fora ridicularizando os Lourenços versus os Fábios e as sanduíches de peru sem glutén por oposição aos papo-secos mistos e por aí fora.

Tudo isto passaria ao lado, se não houvesse pelo meio uma tirada infeliz em que o autor considerou hilariante comentar que os betos se apresentavam na praia com as suas grandes ninhadas, onde muitas vezes constavam crias com trissomia 21 que as mãe não afogavam à nascença porque ficavam óptimas nas fotos da família.

Defendo há muito tempo que não há fronteiras para o humor, excepto as do nível da graça. Ou seja, podemos fazer humor sobre aquilo que bem nos apetecer (sim, mesmo sobre o Menino Jesus ou a Madre Teresa ou os paralíticos do deserto), mas se nos atrevemos a levar o humor para temas extremos, é bom que a piadola seja mesmo hilariante. Não pode ser só uma graçola palerma.

E esta graçola do senhor Diogo Faro é tão pateta que, não tendo graça nenhuma, acaba por ser gratuitamente ofensiva para uma data de famílias que conheço que dão o litro para que os seus filhos com trissomia 21 tenham um projecto de vida capaz.

As crianças com trissomia 21 felizmente já não são remetidas para o quarto dos fundos das casas, mas também não são troféus de uma família. São só filhos. E para elas queremos um futuro igual ao que desejamos para qualquer outro filho: que sejam autónomas e felizes.

Aparecem evidentemente nas fotos de família, fazem o seu percurso em escola regular, andam na natação ou no judo ou no que bem lhes apetecer e trabalham o dobro dos outros para conseguirem metade dos resultados.

Nós estamos lá ao seu lado, como estamos para todos os filhos. Para os proteger das agruras desnecessárias, para lhes dar a mão quando calha não serem convidados para uma festa, para os ajudar nos trabalhos de casa e para garantir que, aconteça o que acontecer, venham a ter um papel relevante na sociedade.

Ao contrário do que o caríssimo Diogo Faro parodia, infelizmente há muitas famílias, de betos e não betos, que os afogam à nascença. Diz-nos a estatística que mais de 95% das crianças com trissiomia 21 ficam pelo caminho, logo ao início da gravidez, por opção dos pais. O que quer dizer que há muita gente que foge, como o diabo da cruz, de os querer ver no postal estival de família.

Mandar piadolas palermas sobre famílias que todos os dias têm de encher o peito para fazer valer os direitos dos seus filhos é uma crueldade.

Fazer humor em cima de crianças deficientes mentais é uma covardia.

Se o texto fosse de rebolar a rir, perdoava-se. O que está mal é que não era. Era só poucochinho.

Porreiro, pá!

Luís Menezes Leitão, 29.06.16

Grande parte dos sarilhos que a União Europeia está agora a atravessar deve-se ao Tratado de Lisboa, que constituiu uma forma encapotada de impor aos cidadãos a mesma Constituição europeia que tinha sido estrondosamente rejeitada em referendo na França e na Holanda. Na altura Sócrates e Barroso alinharam nessa mascarada vergonhosa, através da qual os líderes europeus fizeram questão de tomar os seus próprios cidadãos por parvos. Agora Sócrates, como se nada tivesse a ver com o assunto, escreve um artigo a criticar o défice democrático da União Europeia, a que chama "o desencantamento". Eu chamar-lhe-ia antes "o descaramento". O Tratado de Lisboa foi exigido pelos Estados grandes para lhes permitir manter a maioria no Conselho, mesmo depois das sucessivas adesões de novos países à União Europeia. Sócrates aplicou escrupulosamente a receita que lhe encomendaram e agora queixa-se de défice democrático? Só para rir.

 

O resultado desta cegueira europeia está bem à vista no discurso triunfante de vitória de Nigel Farage no Parlamento Europeu. Descontando a agressividade e os insultos, há uma coisa em que Farage tem razão: o motivo pelo qual os ingleses votaram pelo Brexit foi precisamente pelo facto de lhes terem imposto pela fraude uma união política, sem o mínimo cuidado de assegurar o consentimento dos povos. E agora, perante o falhanço total desse projecto, com a moeda europeia a revelar-se um desastre para os países do Sul, a União Europeia vive em estado de negação, persistindo em nada fazer. E a única coisa que os seus apoiantes têm para dizer é que a integração europeia assegurou 70 anos de paz na Europa. O Império Romano também assegurou 400 anos de paz na Europa e acabou por cair às mãos daqueles que dominava.

 

O projecto europeu de Schumann e Monet sempre assentou na construção da unidade europeia através de pequenos passos. Desde o falhanço da Comunidade Europeia de Defesa em 1953 que se sabe que é um risco enorme avançar precipitadamente em projectos de integração que não têm garantido o adequado consenso. No caso do Tratado de Lisboa sabia-se perfeitamente que não só não havia consenso, como havia uma vontade popular clara no sentido da sua rejeição, como ficara demonstrado pelos referendos negativos à constituição europeia. Avançou-se ainda assim e hoje os resultados estão à vista. Quando se fizer a história do início do fim do projecto europeu é a imagem de cima que ficará. 

Mais um louco à solta

Sérgio de Almeida Correia, 29.06.16

Entre o que este cavalheiro promete e o que o Syriza de Tsipras prometeu para chegar ao poder, rasgando acordos, colocando todos os seus parceiros em sentido e pondo fim às humilhações para que o país recuperasse a sua independência, as diferenças acabam por ser muito pequenas. Espera-se que os que se fartaram de malhar no Syriza, confundindo-o com a esquerda democrática europeia para obterem dividendos internos, aproveitem esta oportunidade para voltarem ao terreno. 

Pois está muito mal

Rui Rocha, 28.06.16

Pelo visto, o Senhor Secretário de Estado do Ambiente vai prescindir do subsídio de alojamento que a mão amiga do Primeiro-Ministro Costa tinha assinado em seu favor. Ao que parece, o referido subsídio tinha fundamento numa residência declarada no Algarve, sendo certo que o Senhor Secretário de Estado parece viver há um bom par de anos em casa própria no concelho de Cascais. Ora a verdade é que prescindir do subsídio é a pior decisão. Se, como tudo indica, actuou abusivamente, tem de demitir-se. Em contrapartida, se a atribuição do subsídio é legal, como afirma, não tem nada que prescindir dele. Se for legal, prescindir é ceder a pressões sem fundamento. Quem cede a pressões não tem condições para exercer funções de Secretário de Estado do Ambiente. Como é óbvio, o que está em causa não é o valor, são os valores.

Porquê referendos?

João André, 28.06.16

Sei que vou ser atacado pelas minhas linhas seguintes. Em parte pela minha opinião e em parte por não ter talento suficiente para a explicar. Seja como fora, aqui segue.

 

Muitas respostas houve ao Brexit. Uma delas foi uma rejeição de referendos semelhantes por parte dos principais partidos de governo pela Europa fora. Muitas justificações foram sendo dadas para isso - conveniência, falta de necessidade, oportunidade, assunto já "referendado" por eleições gerais, etc - mas a figura do referendo, em si mesma, nunca foi contestada.

 

Não é essa em si a função do meu post, mas posso questionar de certa forma o referendo, pelo menos enquanto instrumento da democracia. Há países como a Suíça onde o referendo está tão institucionalizado que é parte da rotina. Outros há onde é tão excepcional que é feito apenas para questões socialmente fracturantes (como em Portugal). Vale a pena no entanto perguntar qual o objectivo de referendos.

 

O referendo em si tem uma vantagem que é também um problema: pede uma resposta (habitualmente) binária - sim ou não - a uma pergunta que é quase certamente extremamente complexa. O voto da passada quinta-feira no Reino Unido não era um voto por permanecer na, ou sair da, União Europeia. Era um voto que decidia a liberdade de movimentos de pessoas e bens, decidia a contribuição ou não para um orçamento comunitário, decidia o destino de milhares de pequenos regulamentos desde embalagens de ovos às etiquetas em garrafas de água. Foi no entanto um momento em que o voto foi simplificado pelos proponentes dos dois lados. Ficar ou sair. Partilhar ou ser independente. Aceeitar fluxos migratórios ou rejeitar imigração. Ser europeu ou britânico.

 

Importa que a discussão tenha sido feita da forma mais básica possível e que do lado do Leave as opiniões dos especialistas tenha sido não só ignorada como completamente desdenhada. É um efeito curioso da acessibilidade da informação que as pessoas queiram cada vez menos da mesma. Os votantes Leave que hoje se arrependem do seu voto são aqueles que não quiseram ouvir opiniões e votaram com as suas entranhas (guts no original). Não estão sós nisso. Em Portugal ouvi muitos votantes contra o casamento homossexual ou aborto dizer que nada tinham contra as pessoas em si, mas não gostavam dos mesmos e por isso votavam contra. Era uma reacção visceral e pouco pensada e/ou informada.

 

Uma questão semelhante poderia ser levantada em relação a alguns dos principais progressos do passado. Teriam os homens votado a favor do voto feminino se chamados a pronunciar-se? Teríamos acabado com a escravatura (os países que o fizeram) se esta tivesse ido a referendo? Teriam os estados do sul aceite uma imposição referendária federal nos EUA para acabar com as leis Jim Crow?

 

Poucas pessoas conseguirão argumentar de forma minimamente convincente que a UE (ou os seus antecessores) não é responsável pelo mais longo período de paz na Europa. Teria esta organização saído sequer do papel se a CECA fosse a referendo em França? Teria o Tratado de Roma sido aceite? Creio que não: o ressentimento popular contra a Alemanha seria ainda demasiado forte para França ou Holanda aceitarem tais compromissos. Muitos outros exemplos poderiam ser dados ainda sem chegar a 1992.

 

Poderia mesmo perguntar-se se a resposta não seria um rotundo "Não!" no caso de a pergunta ser feita hoje, décadas depois dos benefícios desses tratados e alianças serem sentidos. Há um hábito de falar no "eleitorado" como se fosse um corpo orgânico, capaz de uma mente colectiva de onde os resultados chegam como mensagens. No entanto cada eleitor vota sozinho, na solidão da sua cabine e pode mudar o sentido de voto decidido desde há semanas com base numa pulsão do momento. Não serão muitos a fazê-lo, mas num voto apertado, podem ser suficientes.

 

Vale então a pena perguntar: queremos mesmo fazer perguntas tão decisivas sobre o sistema político ou sobre direitos sociais num referendo? Não será melhor entregar essas decisões aos nossos representates, os quais discutem os assuntos, auscultam (ou deveriam fazê-lo) os seus eleitores, trazem o debate de forma progressiva para a arena pública e evitam que argumentos simplistas contaminem a discussão? Em alternativa, se preferirmos o referendo, não seria melhor banalizar de tal forma o referendo que este se tornasse quase incontaminável? Se perguntarmos tudo, desde a cor das matrículas ao teor de sal nos pães, os eleitores acabarão por se tornar mais impermeáveis a argumentos populistas.

 

Gostaria que assim fosse, mas o exemplo suíço, com os seus votos contra a construção de minaretes (quando o país tinha apenas meia-dúzia) ou para limitar a liberdade de movimentos de cidadãos estrangeiros (directamente afectando as relações económicas com a UE) apontam para o quanto é fácil influenciar certos referendos usando simples argumentos que apelam aos medos dos eleitores. Não quero com isto dizer que esses medos não devem ser considerados, apenas que não devem dominar uma decisão como provavelmente o fizeram.

 

Quem defende o referendo fá-lo de forma sincera argumentando, com bastante lógica, que será a forma mais pura de democracia. Infelizmente, quando a resposta é para aceitar ou rejeitar, deixam de existir zonas intermédias. A política é a arte do possível, não uma ciência exacta. Uma mudança política ou social é um acto eminentemente político, mesmo que tomado pela população em geral. Como tal não deve ser tomada usando linhas vermelhas e fronteiras inamovíveis. É no entanto este o território dos referendos.

 

Pode sempre argumentar-se que o resultado de um referendo pode sempre ser colocado em causa por outro, mas para tal entramos novamente no território da política, da arte do possível. O referendo deixa de ser um instrumento de democracia, por falho que seja, para ser um instrumento de manipulação por parte dos políticos. Um referendo é então repetido as vezes que forem necessárias até se obter o resultado desejado. Na melhor das hipóteses torna-se uma consulta, onde os resultados levam a uma mudança na pergunta ou nas condições oferecidas. Na pior torna-se uma farsa.

 

O referendo britânico de quinta-feira não era vinculativo, mas David Cameron, o primeiro-ministro demissionário disse desde o início que o aceitaria, independentemente do resultado. Há no entanto já quem defenda que, na ausência de uma constituição que consolide o resultado, uma eleição geral que desse a vitória a um partido eleito numa plataforma clara de permanência na UE seria o suficiente para anular o resultado.

 

Pessoalmente não gosto da figura de referendos enquanto instrumentos vinculativos. Poderão ser usados como consultas populares, mas mesmo nesse caso seria difícil a um governo (ou parlamento) seguir em direcção oposta à do resultado de tal consulta. Prefiro claramente uma evolução lenta, onde após cada pequena alteração o sentimento público seja auscultado e potenciais passos seguintes acelerados ou atrasados. A maior parte dos grandes avanços políticos e sociais foram resultado de tais acções e raramente de verdadeiras revoluções. Mesmo o principal avanço político moderno, na forma do governo dos EUA, foi proposto por um grupo de homens sem qualquer vontade de pedir a opinião da população que seria afectada pelas suas decisões.

 

Claro que cada povo deve ter liberdade de seguir o caminho que entender, mesmo que isso implique um retrocesso (cada pessoa que veja um retrocesso como entenda). Só que um referendo tem frequentemente o efeito de dar um peso extra a uma decisão. Esta fica escrita em pedra mais facilmente num referendo, o resultado do qual não pode ser facilmente alterado, do que numa eleição geral, onde os representantes por vezes acabam por tomar decisões em direcções opostas àquelas das plataformas em que foram eleitos.

 

Escrevi que não pretendo contestar em si o instrumento do referendo, antes questionar o seu objectivo. Torna-se claro que o considero pouco útil, mas o meu post não é um apelo à sua rejeição, antes a que ele seja por outros questionado de forma real, mesmo que cheguem à conclusão oposta à minha. Haverá quem me acuse de propôr elitismo e não querer ouvir a população (já sei o que alguns me acusarão de ser...) mas não é essa a minha intenção. Existem mecanismos de auscultação das opiniões dos eleitores. Chamam-se eleições e temos diversas à escolha. Se queremos mais democracia, talvez devêssemos reformar o sistema político. Pedir referendos, a meu ver, não é entregar decisões aos eleitores: é um lavar de mãos dos políticos e permitir que os "argumentos" mais estridentes ganhem peso. A solução não é uma democracia binária. É uma democracia melhor.

Pág. 1/12