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Delito de Opinião

Fora de série (16)

Alexandre Guerra, 31.05.16

Quando o Pedro Correia lançou o desafio desta nova rubrica, a dificuldade que nos assaltou de imediato foi o que escolher. Foi como se fôssemos umas crianças numa loja de brinquedos e nos dissessem que só podíamos escolher um brinquedo para levar. Neste caso, não é difícil de imaginar a dispersão de cada um de nós, em regressar aos tempos de infância e juventude e escolher apenas uma das muitas séries que marcaram essas fases das nossas vidas. Porque, a verdade é que não houve apenas uma, mas sim várias séries que nos agarraram à televisão e onde se cumpria religiosamente o hábito semanal de assistir a mais um episódio à hora marcada, porque, se por qualquer motivo falhássemos, já nada havia a fazer. O tempo dos youtubes, dos DVD, das box da tv cabo ainda eram coisa do futuro.  

 

Já aqui foram recordadas séries que marcaram diferentes infâncias e adolescências. No que me diz respeito, foram mencionadas algumas que me agarraram literalmente ao ecrã na segunda metade dos anos 80 e no íncio dos anos 90, tais como Sledge Hammer, Ficheiros Secretos, Blackhadder, O Polvo, A Balada de Hill Street ou o Espaço 1999. E muitas outras poderia referir, quase todas de produção britânica ou norte-americana. Mas, com todo o orgulho, posso dizer que uma das séries que mais gostei de ver e que ainda hoje recordo ou revejo (está a passar na RTP Memória) com alegria e saudade, é de produção nacional e dá pelo nome de Duarte e Companhia. Penso que a partir daqui já não preciso de escrever mais nada... 

 

Episódio "O Artista do Crime". Hilariante o diálogo inicial entre o Duarte e o Tó.

 

Pensando hoje um pouco sobre essa série, estamos obviamente perante algo muito datado, que reflectia um Portugal ainda muito atrasado, uma Lisboa algo "provinciana", uma população "cinzenta", ou seja, havia um contraste brutal na cor e na dimensão daquilo que nos chegava através das séries que vinham dos Estados Unidos e aquilo que os episódios do Duarte e Companhia nos mostravam. Portanto, não foi a dimensão do "espectáculo" que me contagiou, mas sim a ingenuidade de tudo aquilo, os personagens irrealistas, a rivalidade infantil entre o "Átila" e o "Lúcifer" e respectivos bandos, os diálogos que tinham tanto de cómico como de absurdo, criando um ambiente sempre alegre e, apesar de tudo, de convivência pacífica entre todos, onde até as cenas de pancadaria mais pareciam um ajuntamento de amigos do que outra coisa.

 

Duarte (interpretado por Rui Mendes) ao voltante do seu Dois Cavalos e o seu parceiro Tó (cujo papel era desempenhado pelo saudoso António Assunção) eram os polícias que tinham a difícil (nem tanto) missão de combater Átila (Luís Vicente) e Lúcifer (Guilherme Filipe), mafiosos e gangsters à portuguesa, que tinham tanto de tolos como de inofensivos. Pelo meio, havia um grupo de personagens absolutamente hilariantes, como o Japonês, o Albertini, o Rocha, a Joaninha ou a temida sogra do Duarte. Ainda hoje, tenho gravado na minha memória muitos dos nomes, das cenas, das falas, de muitos dos episódios do Duarte e Companhia.

 

A série passou inicialmente na RTP na segunda metade dos anos 80, estando agora a ser retransmitida na RTP Memória. No entanto, penso que já estão editadas em DVD quase todas as temporadas. É daquelas coisas que vale sempre a pena rever, porque é boa disposição garantida.

 

Episódio "A cadeira do Poder". A estupidez foi sempre um característica reinante nos bandos do Átila e do Lúcifer

Uma Mesquita em Lisboa

João André, 31.05.16

Não acompanhei o assunto no início e cheguei a ele pelo post do Luís. Depois vi uma partilha do texto de João Miguel Tavares (um comentador de quem não gosto por diversas razões - que pouco têm a ver com as suas opiniões) no Facebook.

 

Deixo apenas o texto que um amigo, o Paulo Granja, colocou na sua página do Facebook e que me pareceu bastante melhor - independentemente das opiniões - que o de JMT.

 

JMT não sabe do que fala

Antes de mais, a intervenção urbana que tem sido reduzida à construção de uma mesquita insere-se numa operação de maior dimensão de requalificação urbana “entre o Martim Moniz e o Intendente, com o nome Praça-Mouraria”, e prevê a criação de um jardim, uma sala polivalente, de uma praça coberta e de uma ligação entre a Rua da Palma e a Rua do Benformoso, para além da referida mesquita (creio que também se prevê a requalificação/integração do Arquivo fotográfico municipal, já existente num edifício contíguo, mas não me recordo agora se o Arquivo será ou não formalmente integrado no projeto), sendo que o interior da mesquita ficará a cargo da comunidade muçulmana (creio que mais precisamente a cargo do Centro Islâmico do Bengladesh). A construção da mesquita neste bairro, e neste local em particular, justifica-se pela forte comunidade muçulmana do Bangladesh aí existente. De facto, já existiram 3 mesquitas em edifícios próximos, estando a última, frequentada por cerca de 600 pessoas, localizada num edifício para habitação, se não estou em erro, no Beco de S. Marçal, compreensivelmente com grande incomodo para moradores e para a vizinhança.

Segundo, o projeto de intervenção insere-se no Plano de Urbanização do Núcleo Histórico da Mouraria (o único ponto em que admito que JMT possa ter alguma razão é na aparente contradição entre a exigência feita ao proprietário/PUNH e a intervenção projetada, mas a legislação prevê que os poderes possam estabelecer exceções às regras e planos que os próprios fizeram aprovar, em nome do interesse público – como creio que foi feito com o PDM para a construção do novo Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia -, mas se isso é bom ou mau é já outra discussão), e está a ser pensado desde 2009, altura em que mereceu apoios do FEDER/QREN. O projeto final de arquitetura foi apresentado a discussão pública e votado favoravelmente por todas as forças partidárias com representação na Assembleia Municipal de Lisboa em 2012.

Em terceiro lugar, sim, a CML também patrocina igrejas, sinagogas e templos de Shiva (se o deveria fazer ou não é outra questão…). Que me lembre, a CML já apoiou o Centro Ismaili, O Centro Hindu, O Museu Judaico e a (re)construção de várias igrejas católicas – estou a lembrar-me da Nova Catedral de Lisboa, a construir perto da Parque Expo. Nalguns casos (Museu Judaico e Igreja Católica), os apoios financeiros chegam também aos vários milhões de euros, já para não falar nas operações urbanísticas envolvidas (creio que no caso do Museu Judaico está prevista a intervenção/requalificação de vários edifícios no centro histórico de Alfama, mesmo ao lado da Igreja de S. Miguel).

Resumindo, não se trata apenas de pagar uma mesquita.
Não houve falta de discussão pública, nem atropelos à legislação e regulamentos camarários – se houve, serão dirimidos em local próprio, os tribunais.
Não foi uma proposta socialista ou sequer de esquerda feita a revelia dos partidos de direita, a direita também votou favoravelmente o projeto.
E sim, a CML, e não o Partido Socialista, apoia financeira e logisticamente, várias outras confissões religiosas.

JMT pode contentar-se em comentar artigos publicados no jornal onde escreve sem se dar ao trabalho de se informar. Isso também eu posso fazer, a diferença é que não sou jornalista e não me pagam para isso.

 

Leitura complementar: A mesquita da Mouraria, o Google e o Facebook.

Somos nós a pertencer aos livros

Pedro Correia, 31.05.16

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Não sei se convosco acontece o mesmo, mas eu tenho por hábito levar para férias alguns livros que já não voltam na bagagem. São livros mais velhos que tenciono ler apenas uma vez, acabando por deixá-los ficar nos hotéis por onde passo - leituras momentâneas, semelhantes a diversas pessoas com quem nos vamos cruzando vida fora. Chegam e partem.

É também uma forma de partilhar leituras: acho estimulante a ideia de imaginar que aquela janela que para mim ficou fechada tavez possa abrir-se inesperadamente para alguém que nunca conhecerei. Por cá temos pouco esse hábito: ainda sacralizamos o livro enquanto objecto - por vezes na proporção inversa à verdadeira atenção que lhe dispensamos. Ao contrário do que acontece por exemplo com alemães e britânicos, com um nível de alfabetização geral muito anterior e superior ao nosso.

 

Inciei esta tradição pessoal há 25 anos em Patong, na Tailândia. Levava para férias a Cabra-Cega, de Roger Vailland, e a Memória de Elefante, de António Lobo Antunes. Lidos os livros, antes de fazer as malas entreguei-os à pequena biblioteca pública local, inaugurando ali a secção de obras em português. Cinco anos depois, quando voltei à capital da ilha de Pukhet, revisitei o local: a Memória de Elefante não estava lá, mas o livro de Vailland que foi temporariamente meu permanecia na prateleira onde eu o deixara - sem outro livro em português.

Nem quero imaginar onde estará agora: Patong foi uma das povoações devastadas pelo brutal maremoto de 26 de Dezembro de 2004 no Sueste Asiático. É um daqueles locais onde só voltarei em pensamento.

 

Escrevo estas linhas no mesmo hotel algarvio onde há um ano passei um fim de semana alargado. Cá reencontrei no salão principal um livro que aqui deixei então - isolado título português em elegantes prateleiras cheias de volumes em alemão, inglês ou francês. Pego nele e vou à página final, onde sempre inscrevo a data e o local em que terminei a leitura: "Tavira, 1.5.2015". E mantenho-o na nova morada que passou a ter naquele dia. Continua sem a companhia de nenhum outro no nosso idioma.

E uma vez mais me interrogo: porque teremos tanta dificuldade em desapegar-nos de livros que foram nossa efémera companhia de férias em vez de lhes proporcionarmos novos leitores? Isto sempre me fez alguma confusão. Porque, em boa verdade, não somos donos deles. Na melhor das hipóteses, somos nós a pertencer aos livros. É pura ilusão pensarmos que eles nos pertencem.

 

algumas proposições com pássaros e árvores

Patrícia Reis, 30.05.16

 

Os pássaros nascem na ponta das árvores
As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros
Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores
Os pássaros começam onde as árvores acabam
Os pássaros fazem cantar as árvores
Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se
deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal
Como pássaros poisam as folhas na terra
quando o outono desce veladamente sobre os campos
Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores
mas deixo essa forma de dizer ao romancista
é complicada e não se dá bem na poesia
não foi ainda isolada da filosofia
Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros
Quem é que lá os pendura nos ramos?
De quem é a mão a inúmera mão?
Eu passo e muda-se-me o coração

 

Ruy Belo  

Fora de Série (15)

Francisca Prieto, 30.05.16

O Verão Azul dava à quarta feira à tarde da minha pré-adolescência e passava-se numa vila balnear perto de Málaga.

Na altura eu passava férias no parque de campismo de Ferragudo, de maneira que sonhava com o dia em que, montada na bicicleta, integraria um grupo como o do Verão Azul. Claro que eu queria ser a Bea, a rapariga de cabelo comprido por quem todos os rapazes se batiam. E queria que o Javi gostasse de mim porque, para além de ser loiro, tinha uma sunga Speedo último grito da moda balnear.

Um dia quase consegui estar à altura da Bea, lá na cafetaria do parque de campismo. Uns rapazes de dezasseis anos meteram conversa comigo e quando me perguntaram a idade eu tive vergonha de dizer que só tinha doze e avancei para a maior mentira da minha vida: disse que tinha treze.

O Verão Azul fazia-nos caminhar pelo verão algarvio embalados pelo tralalá do genérico. E era uma série muito realista porque tinha uma data de pais às direitas que, de copo de whisky na mão, não tinham qualquer pudor em recorrer ao antigo método pedagógico de distribuir lambadas sempre que um filho se armava em esperto. Só o Piranha levou para cima de meia dúzia num dia em que resolveu levar a cabo uma greve de silêncio.

Era este realismo que me lançava para dentro do ecrã da televisão e me fazia conversar com as personagens como se fossem meus amigos. Fartei-me de comer gelados com o Quique, de dar conselhos à Desi, que era a feiosa do grupo, de passear pelas ruas de Ferragudo com o Pancho, que sabia tudo sobre pesca, e de derramar lágrimas verdadeiras pela morte do bom e velho Chanquete.

Claro que os meus filhos não percebem nada destes dramas quando os obrigo a passar os DVDs da série, com uma pobre imagem desbotada. Julgam que é ficção científica. Mas a verdade é que o meu coração ainda palpita de cada vez que oiço assobiar as notas dos azuis verões de antigamente.

 

O ridículo mata

Sérgio de Almeida Correia, 30.05.16

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Não tenho nada contra manifestações, desde que sejam pacíficas e tudo se processe dentro da legalidade. Com mais ou menos exaltação, mais ou menos indignação, todos têm o direito de se manifestar e agitar as suas bandeiras, tendo o Estado de direito o dever de proteger essa conquista da democracia. Se existe ou não razão para a manifestação, isso é outra história. Por isso mesmo, seria curioso se amanhã os defensores da escola pública se lembrassem de promover manifestações por todo o país em defesa da sua dama. Para exigirem, por exemplo, o fim dos contratos de associação e mais dinheiro para a escola pública. Quem sabe se então o título da notícia não seria qualquer coisa como "Milhares em defesa da escola pública e contra os contratos de associação"?  Não é que eu esteja a sugerir alguma coisa que não devesse já ter sido feita, mas seria o bom e o bonito.

De qualquer modo, tenha uma manifestação o peso que tiver, convenhamos que a defesa dos contratos de associação não é propriamente a mesma coisa que defender a Rádio Renascença do perigo comunista. Para ser coerente e manter a razão, a Igreja portuguesa devia agir com inteligência. E arranjar uma causa, como hei-de dizer, menos fracturante. 

Blogue da semana

Adolfo Mesquita Nunes, 30.05.16

A blogosfera começou, para mim, por ser política. Estávamos em 2003 ou 2004 e nela encontrava, ou começava a encontrar, outras formas de pensar os factos e a história que não vinham nos jornais. Fossem de esquerda ou de direita, pensassem ou não como eu, os blogues políticos serviram-me, anos a fio, como leitura primeira do dia, antes mesmo dos jornais. E desses tempos ainda hoje guardo amigos, de vários cantos. Mas a chegada de novas plataformas, para onde muitos dos seus autores migraram, fez com que a política deixasse de ser, para mim, o principal motivo de leitura da blogosfera. É hoje raro, muito raro, perder minutos na blogosfera, para além da leitura dos blogues liberais com que me identifico, para descobrir análise política que me interesse. Mas há excepções, e escolho uma delas para blogue da semana: o Gremlin Literário. Uma análise acutilante e com um enorme sentido de humor a que regresso com muita frequência.

Algumas notas sobre música

Alexandre Guerra, 29.05.16

1. Depois de ter lido bastante sobre o álbum e o artista, já andava há meses para comprar o "To Pimp a Butterfly" do rapper Kendrick Lamar. Fi-lo hoje. Tinha sido considerado de forma quase unânime pela crítica como um dos melhores álbuns de 2015, o que é um feito, já que estamos a falar de hip hop agressivo e duro, vindo directamente de Compton. A cidade no sul de Los Angeles, casa dos gangues rivais Crips e Bloods e que, nos anos 80, viu nascer o "gangsta rap", por um grupo que iria ficar para a história, os N.W.A. Os Niggaz Wit Attitudes tinham, entre outros, o Dr. Dre e o Ice Cube na sua formação. A difícil conjuntura social que se vivia na altura e a vivência hostil da comunidade negra em particular naquela grande zona metropolitana, acabou por ser inspirador para a composição do primeiro e mítico álbum daqueles rappers, Straight Outta Compton (1988). Entretanto, os anos foram passando, e depois dos trágicos acontecimentos de 1992 em Los Angeles, o final dessa década e o início dos anos 2000 trouxeram alguma acalmia a Compton, mas nem por isso os problemas desapareceram e a criatividade se esvaiu. Pelo contrário, "To Pimp a Butterfly" de Kendrick Lamar espelha as várias fracturas que os Estados Unidos teimam em não sarar, mas também a sua própria visão crítica enquanto "nigga" de Compton. O racismo, a discriminação, a violência policial sobre os negros, a exclusão e a auto-exclusão social dessa comunidade, a violência e desunião entre entre os "niggas"...ouvindo as músicas de Lamar, percebe-se que a América de hoje continua a ser tão perturbadora como a dos anos 80. E também por isso, o álbum é poderoso.  

 

 

2.Há uns anos recordo que eu e dois colegas meus tivemos uma daquelas discussões (estúpidas) que não levam a lado algum sobre qual seria a banda que mais importância e impacto teria na história da música recente, se os Red Hot Chili Peppers ou os Radiohead. Naquela altura, era (e sou) um grande fã de Anthony Kiedis, Flea e companhia e embora já tivesse sido num passado longínquo que a banda californiana dera a conhecer ao mundo o genial "Blood Sugar Sex Magik (1991)", os alicerces que criaram ao nível do funk rock abriram caminho para a inspiração criativa de muitas outras bandas. É certo que o seus trabalhos posteriores entraram num caminho que se afastou dessas raízes primitivas e mais agressivas, para um estilo menos funk e mais pop. Mas mesmo assim, sempre considerei que os seus álbuns estão na generalidade sempre muito acima do que se vai fazendo por aí. Quanto aos Radiohead, com um estilo musical completamente diferente, os meus dois colegas também tinham argumentos de peso na defesa do seu caso, já que em 1997 a banda de Thom Yorke lançou um dos melhores álbuns dos últimos 20 anos: "Ok Computer". Também este disco se tornou uma referência musical, quer ao nível criativo, quer ao nível do conteúdo da sua mensagem. Os Radiohead nunca mais voltaram àquele nível (o que é normal), mas continuaram a fazer álbuns de grande qualidade e aclamados pela crítica. Por coincidência, e depois de alguns anos sem terem editado nada, os Radiohead e os Red Hot estão a lançar álbuns novos, que deverão chegar nas próximas semanas em formato físico às lojas. A banda de Thom Yorke já lançou o álbum, A "Moon Shaped Pool", nas plataformas digitais, antecipando-o com dois singles e respectivos vídeos que espelham bem a qualidade superior desta banda: o incendiário Burn the Witch e o poético Daydreaming, realizado por Paul Thomas Anderson. Os Red Hot deram apenas a conhecer uma música do novo "The Getaway", que começa com uma malha fortíssima do baixo do Flea.

 

 

3. Roberta Medina poderá dar as voltas que quiser e até dizer que o Rock in Rio é um festival "mainstream" (que efectivamente é), mas isso não poderá servir para iludir a realidade e não constatar que a edição deste ano teve um alinhamento muito débil ao nível dos cabeças de cartaz. Exceptuando a noite de Bruce Springsteen, todas as outras não tiveram nomes com o verdadeiro estatuto de cabeça de cartaz num festival deste género que pode levar até 85 mil pessoas ao recinto. Maroon 5, Hollywood Vampires, Queen com Adam Lambert ou Avicii??? Não está em causa a sua qualidade ou actuação, mas basta consultar todas as edições desde 1985 e facilmente se percebe que ao Rock in Rio 2016 faltaram aqueles grandes nomes que dão dimensão musical e até histórica ao acontecimento.

Fictiongram, continuação da continuação

Patrícia Reis, 29.05.16

Portanto, a coisa do Jaime, a sua sobranceria, a ideia de que era capaz de ser superior e viver longe de Carmen, isto dentro do seu putativo manuscrito (que chatice, não pode dizer manuscrito se escreve num computador, ou pode? decide que pode) era apenas uma alteração mínima da realidade. Ele, o escritor, fora o Jaime na vida real, ou seja, não sairá de casa, mas dissera aquelas coisas

Nem na cama és bom.

 

A ficção tem esse grande poder salvador. Tudo se transfigura, mas se há falta de assunto, ou não existe a mínima paciência para a pesquisa e para o romance histórico, pois escreve-se sobre aquilo que se vive. É preciso ter uma vida interessante. Convém. Nem todos os escritores têm. Por exemplo, ele, o escritor, sabia que a conversa sobre os filhos servia apenas para albardar o burro à vontade do dono. Ou seja, se Carmen tem a idade que tem (que idade tem?), pois terá aquela coisa do relógio biológico e tal. O escritor é ajuizado, sabe que quem compra livros são as mulheres, por isso os filhos e as dores.

 

O telemóvel tocou de novo. Jaime. Tão chato e comprido, o Jaime que fora fascinante durante dois anos – como se ele não soubesse de antemão que nada dura mais de vinte quatro mesinhos, sendo os últimos uma boa chatice – queria coisas. Achava que tinha direitos. Fazia ameaças. Claro que existia a questão das cartas, mas o escritor convencia-se de que ele nunca se atreveria a tanto. Não iria, decerto, publicar as cartas num livro com uma capa horrenda e com um prefácio de um pensador actual. O escritor despreza livros com prefácios, se o livro precisa de explicação, então é mau, nem tem discussão.

 

Escrevera cartas a Jaime quando aceitou o convite de uma figura da realeza europeia que o convidara para passar o princípio do Inverno na Suíça. Não é possível satisfazer a sua curiosidade, lamentamos, caro leitor, estamos obrigados a algum recato e até assinámos um contrato de confidencialidade, logo não nos é possível dizer onde e com quem, podemos adiantar apenas que estava lá todo o mundo. Todo o mundo. Menos o Jaime. Por mais incrível que fosse, o convite era pessoal e intransmissível e para uma pessoa apenas: o escritor que iria “prestigiar” a grupeta afectada junto à neve.

Pois. Jaime amuara.

Queria tanto ir, mas porque não posso eu ir? Tu já não me amas, que mau que és. Vai lá estar o E.J.? Não me digas que sim que eu morro, morro. Se tu vais sem mim, morro.

O escritor, feito estúpido, em vez de ter uma ideia brilhante para uma trilogia que fosse passível de ser traduzida, pelo menos, para trezentos países, decidira passar uma hora por dia, à lareira, a escrever a Jaime. As tais cartas.

Fora de série (14)

Teresa Ribeiro, 29.05.16

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Até as séries começarem a disputar o cinema a sério, fenómeno bastante recente, andei um pouco alheada da ficção televisiva. Mais do que a concorrência da Internet, o que mais me afastou foi a moda do alinhamento dos enredos por temporadas, tão mais intermináveis quanto maior fosse o seu sucesso de audiências. Não me apetecia morder o isco e depois ficar presa a caprichos ficcionais ditados mais por prazos contratuais do que pelo talento dos argumentistas. Enquanto as boxes não nos vieram libertar dos horários de transmissão dos programas, salvando-nos também dos penosos intervalos para a publicidade, evitei fidelizar-me. Mas há sempre uma excepção. A última série antes da era da TV on demand que me amarrou à cadeira, fez adiar compromissos e reservar o serão, foi Os Sopranos. Até do tema do genérico eu gostava e se há coisa que eu não aprecio é rap...

A moral da máfia, em que me iniciei com a trilogia de O Padrinho, voltava a fascinar-me. James Gandolfini, no papel da sua vida, entrava-me em casa todas as semanas, tão vulnerável quanto brutal e eu, durante o tempo que durava cada episódio, suspendia de boa vontade a minha vida para viver a dele e surpreender-me com as minhas próprias contradições: como é que eu podia sentir simpatia por um assassino? Ainda por cima aquele burgesso sanguinário não fazia nada o meu tipo, só que expunha-se de uma forma... a natureza humana no que tem de mais perturbador era exposta de uma forma naquela série, que tocava as raias da pornografia.

Tecnicamente próxima da perfeição, a saga concebida por David Chase  transcendia o mundo da máfia. Além das actividades da "rapaziada", acompanhávamos a evolução da família disfuncional de Tony Soprano - com uma Edie Falco a encarnar a sua mulher, Carmela, sempre maravilhosa - e as suas inesquecíveis sessões de psicoterapia, o toque de originalidade da série.

 

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New York Times considerou-a "provavelmente a melhor obra da cultura popular americana dos últimos 25 anos". Foi a primeira série de um canal por cabo a ser nomeada para um Emmy. Durante os oito anos em que esteve em exibição, de 1999 a 2007, foi sempre nomeada na categoria de melhor série dramática e por duas vezes ganhou o prémio. David Chase enquanto autor também foi galardoado por três vezes. Nessa categoria a série recebeu 21 nomeações além de outras tantas pelo desempenho dos seus actores, nomeadamente Gandolfini, que levou para casa três Emmys. Mas do palmarés de Os Sopranos constam toda a sorte de prémios, dos Globos de Ouro aos Guilds.

Terá o gangue da série comprado votos? Com a máfia nunca se sabe... A mim, como já revelei, sequestraram-me, amarraram-me à cadeira e... se eu tivesse aqui a psicanalista dele perguntava-lhe... mas acho que não estou errada se disser que a coisa evoluiu para algo próximo do síndroma de Estocolmo. Durante 50 minutos por semana, ali presa ao ecrã, dei comigo a relativizar ou, pior ainda, a compreender todas as  malfeitorias do Tony. E que adrenalina isso me dava!

À hora de Os Sopranos não estava para ninguém. Se alguém me interrompesse, habilitava-se. Era bem capaz de levar com um tiro no meio da testa. Só por causa das coisas.

 

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O momento decisivo

Pedro Correia, 29.05.16

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Outros dirão, naquele jargão cultivado com tanto esmero pelos especialistas da bola, que Ronaldo "passou ao lado de uma grande partida" e "estava lá mas era como se não estivesse".

Não acreditem.

Ontem à noite, na final da Liga dos Campeões disputada em Milão entre as duas potências futebolísticas de Madrid seguida com calor e paixão nos recantos mais recônditos do planeta, o português guardou-se para o momento decisivo - aquele em que tudo se desenrola em fracções de segundos, aquele em que se comprova com inequívoco rigor quem tem fibra de campeão, aquele em que mais se exige perícia técnica servida por nervos de aço. O momento do penálti que decide um destino, que traça a linha separadora da exígua fronteira entre o sucesso e o fracasso: quem não a transpõe é humilhado na praça pública por multidões de adeptos inconformados, quem a ultrapassa ascende mais um patamar no panteão reservado aos escassos heróis contemporâneos com dimensão global.

Nesse momento decisivo ele estava lá.

Fixou a baliza adversária como se nada mais houvesse para mirar no mundo, tomou balanço, trotou resoluto para a bola e desferiu o golpe fatal com toda a convicção da sua força mental comandando a arte incomparável do seu pé direito. 

Ainda antes de centenas de milhões de gargantas gritarem a mágica palavra golo, já ela se havia tornado realidade na mente daquele homem que foi um pobre menino das ladeiras do Funchal e soube torcer as voltas à vida, construindo uma carreira milionária a pulso. A inevitável inveja alheia só lhe confere motivação acrescida. Porque ele parte sempre à conquista de um novo troféu como se fosse o primeiro que ganha.

É isto que conta: nunca falhar no momento decisivo. Quem ignora que o futebol é uma metáfora do percurso humano tem muito a aprender com Cristiano Ronaldo.

 

Também aqui

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