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Delito de Opinião

Ler

Pedro Correia, 19.04.16

Os governos e as crises. De Francisco Seixas da Costa, no Duas ou Três Coisas.

Facebook, ou lá o que é. Do Francisco José Viegas, n' A Origem das Espécies.

As putas do Panamá. Do José Meireles Graça, no Gremlin Literário.

Antologia da demagogia política. De Vital Moreira, na Causa Nossa.

Das propriedades mecânicas dos materiais. Da Cristina Nobre Soares, no Em Linha Recta.

Dos fundamentos democráticos. De Sofia Loureiro dos Santos, no Defender o Quadrado.

O PSD e os órgãos de soberania estrangeiros. De Miguel Madeira, no Vias de Facto.

Ser de Madrid. Da Rita Barata Silvério, na Rititi.

Ler os melhores ou simplesmente ler. N' Um Jeito Manso.

Os chico-espertos do plágio - Take 2 do Take 2. Da Maria João Nogueira, na Jonasnuts.

Belles toujours: Astrid Wiese Brinck, a dura do queijo mole. No Âncoras e Nefelibatas.

Não recordava o sangue. De Carlos Natálio, no Ordet.

Coisas destas vão sendo raras... De Margarida Corrêa de Aguiar, na Quarta República.

A neve branca das cerejeiras. Do Fernando Paulouro Neves, no Notícias do Bloqueio.

Apontamentos do outro lado da fronteira

Diogo Noivo, 19.04.16

Espanha é um país sem meias-tintas. Ainda que muito evidente na política, esta atitude perpassa todos os aspectos do quotidiano e sectores de actividade. Até nas traduções, onde se espera zelo e fidelidade às palavras originais, a postura desempoeirada de Espanha se faz notar. Comprei recentemente a edição espanhola do livro “Let’s Talk About Love: Why Other People Have Such a Bad Taste”, da autoria do crítico de música Carl Wilson. O título é longo, explicativo e está pejado de subtilezas. Nada spanish-friendly, portanto. Como foi traduzido para espanhol? Simples: “Música de Mierda”. O ensaio de Wilson versa sobre Céline Dion e procura entender como um fenómeno musical medíocre, duramente criticado no Canadá de Dion e no estrangeiro, atinge um sucesso planetário sem precedentes. Em suma, se um título deve ser claro e conciso, peçam a um espanhol que o escreva.

Por uma Constituição livre de linguagem sexista e falocêntrica

Pedro Correia, 19.04.16

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Símbolo da República, no blogue E Deus Criou a Mulher

 

Na sequência da louvável proposta do Bloco de Esquerda de mudar a designação de Cartão de Cidadão para Cartão de Cidadania, e com a intenção de aprofundar este combate revolucionário contra a linguagem sexista e a misoginia gramatical, venho por este meio sugerir uma revisão sem demora da Constituição da República Portuguesa que estabeleça um tratamento simétrico entre os géneros.

Algumas alterações ao texto constitucional que considero mais urgentes:


Artigo 4.º: «São CIDADÃOS portugueses todos aqueles que como tal sejam considerados pela lei ou por convenção internacional.»

A palavra cidadãos atenta contra o princípio inatacável da igualdade de género, ofendendo a sensibilidade de mais de 50% das pessoas que possuem cidadania portuguesa.

O novo artigo 4.º deverá ser redigido desta forma: «Têm a CIDADANIA portuguesa TODAS AQUELAS E TODOS AQUELES que como tal sejam CONSIDERADAS E CONSIDERADOS pela lei ou por convenção internacional.»


Artigo 7.º: «Portugal rege-se nas relações internacionais pelos princípios da independência nacional, do respeito dos direitos do HOMEM...»

A menção exclusiva aos seres pertencentes ao género masculino está eivada de preconceitos sexistas que urge extirpar da Constituição.

O novo artigo 4.º deverá ser redigido desta forma: «Portugal rege-se nas relações internacionais pelos princípios da independência nacional, do respeito dos direitos DA MULHER, DO HOMEM E DAS PESSOAS TRANSGÉNERAS...» 


Artigo 9.º: «São tarefas fundamentais do Estado: (...) Defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática dos CIDADÃOS na resolução dos problemas nacionais.»

Deparamos novamente com este termo, inaceitável numa Constituição verdadeiramente inclusiva e democrática, que combata os últimos resquícios dos privilégios patriarcais na nossa linguagem jurídico-política.

O novo artigo 9.º deverá ser redigido desta forma: «São tarefas fundamentais do Estado: (...) Defender a democracia política, assegurar e incentivar a participação democrática DAS CIDADÃS E DOS CIDADÃOS na resolução dos problemas nacionais.»


Artigo 10.º: "O POVO exerce o poder político através do sufrágio universal, igual, directo, secreto e periódico, do referendo e das demais formas previstas na Constituição.»

Vocabulário falocêntrico inaceitável: todos os substantivos de género masculino devem ser rasurados da posição dominante que conservam na linguagem exclusivista da lei fundamental.

O novo artigo 10.º deverá ser redigido desta forma: «AS ELEITORAS E OS ELEITORES EXERCEM o poder político através do sufrágio universal, igual, directo, secreto e periódico, do referendo e das demais formas previstas na Constituição.»

 

Depois de extinguir os "cidadãos" há que eliminar o "povo". Em nome da inclusão. É assim a revolução em marcha. 

Sobrepressão (4/5)

José António Abreu, 19.04.16

Arredores de outra cidade, o mesmo problema. Era hora de almoço, devia ter acontecido um acidente mais à frente. Sentado no carro, ele reparava como o fumo dos escapes conferia ao ar uma tonalidade cinzento-azulada. Buzinadelas de protesto faziam ricochete no interior da sua cabeça como bolas numa máquina de flippers. Estava cansado. Passara a manhã a investigar um incêndio no pavilhão de uma fábrica de componentes plásticos para a indústria automóvel. O incêndio começara numa cabina de pintura que possuía um sistema automático de extinção. Como seria de esperar, este encontrava-se inactivo. Havia extintores no pavilhão mas, em vez de os usarem, os dois trabalhadores no local haviam fugido. E, muito embora a fábrica até desse ideia de estar bem organizada, a causa do incêndio resumia-se à justificação habitual: “Sabe como é, estas coisas acontecem.” O ponto positivo era todos os indícios apontarem para simples incompetência.

Não viu o Honda vermelho de imediato. Veio da direita, de uma rua secundária, no momento em que a fila começou a andar. Normalmente ele deixava entrar os veículos naquelas circunstâncias. Mas já se encontrava em movimento quando reparou no Honda. O seu aparecimento repentino até o assustou, fazendo-o guinar para a esquerda – mas não parar. O condutor do Honda apitou um protesto. Ignorou-o. Pelo retrovisor, viu o Honda entrar na fila imediatamente atrás do seu carro e, num movimento contínuo, sair dela para a desimpedida faixa da esquerda (algo natural para quem pretendesse virar à esquerda cem metros adiante). Quando o espelho retrovisor direito do Honda embateu com estrondo no espelho do lado esquerdo do carro dele, fazendo-o dobrar no sentido errado (mas, verificá-lo-ia depois, sem o partir), foi – outra vez – apanhado de surpresa. Era ilógico e irritante que ainda conseguissem surpreendê-lo mas a verdade é que ficou sem reacção durante um par de segundos. Depois rebentou o pneu traseiro direito do Honda vermelho, que já estava a mais de trinta metros e ainda ganhava velocidade.

O Honda guinou bruscamente para a esquerda e embateu na divisória de betão. A traseira subiu e rodou no ar. O Honda deslizou de marcha-atrás contra a divisória ao longo de vários metros e parou. Seguiu-se uma pausa durante a qual o tempo pareceu ficar suspenso e depois várias pessoas saíram dos carros e correram para o Honda.

Ele deixou-se estar. Viu o condutor do Honda – um tipo de vinte e poucos anos, baixo, magro, barba por fazer, envergando calças e blusão de ganga – sair do carro, aparentemente sem ferimentos. Viu como o outro olhava na sua direcção. Suportou o olhar mas não sorriu. Tão depressa quanto pôde, saiu dali.

 

Ter o poder de causar acidentes graves era uma realidade que o perturbava. Certos actos mereciam punição – isso mantinha-se claro. Mas devia a punição incluir o risco de vida? E quanto a inocentes que pudessem ser atingidos? Até ao momento, rebentara pneus em situações de velocidade reduzida: tentativas de entrada em filas, utilização da faixa bus, descrição de rotundas pelo exterior, paragem em cima de passadeiras, desprezo pelo semáforo vermelho...  Contudo, não era difícil imaginar um cenário de destruição numa auto-estrada: um automóvel (conduzido por uma daquelas pessoas que recusam usar as faixas da direita ou que começam a fazer sinais de luzes a duzentos metros de distância, por exemplo) descontrolado, guinchos de pneus em travagem, choques sucessivos – e, depois, corpos espalhados pelo asfalto, sirenes de ambulância, polícias tentando manter a ordem, bombeiros cortando chapa para retirar alguém preso dentro de um dos veículos…

Não desejava aquilo. Apenas que os filhos da puta sem civismo sofressem um pouco. Teria de ser cauteloso.

 

«Sentes-te bem?»

Por causa do papel que desempenhava, o chefe achava-se na obrigação de fazer perguntas como aquela regularmente. Mas fazia-as com convicção nula. Muitas vezes, nem esperava pela resposta.

«Ando cansado», respondeu ele, aceitando jogar a pequena charada. Poderia ter dito: «Estou óptimo», que o resultado seria o mesmo.

«Levas tudo demasiado a sério», disse o chefe. E depois: «Viste o Benfica?»

 

As duas faixas fundiam-se numa quarenta metros adiante. Toda a gente o sabia. Havia sinalização vertical. Havia marcações no pavimento, perfeitamente visíveis. E, todavia, muitos condutores ignoravam a fila já constituída – naquela altura, nem sequer muito comprida – e mantinham-se na faixa da direita até à zona da junção. Conseguiam ultrapassar quatros ou cinco carros, se tanto.

Ele parou no término da fila. Chegou ao ponto de aglutinação trinta segundos mais tarde. Havia um furgão Toyota na faixa da direita, meio carro à sua frente. Nem sequer tinha o pisca ligado. Ignorou-o e avançou. Ouviu uma buzinadela mas manteve os olhos no carro da frente. Naquele instante, não poderia dizer se o condutor da Toyota era novo ou velho, magro ou gordo, se tinha cabelo comprido ou era careca. Pelo retrovisor, viu a Toyota entrar na fila logo atrás do seu carro.

A fila parou. Instinto ou experiência fizeram-no consultar novamente o retrovisor. Viu um vulto a abandonar o volante da Toyota. Pelo espelho da porta viu o homem – não muito alto, careca, gordo – aproximar-se. Sentiu um instante de pânico. Atabalhoadamente, verificou que a luz indicativa do trancamento das portas estava acesa. Quando o homem bateu no vidro, manteve o olhar fixo em frente. Isso pareceu apenas irritá-lo mais. Berrando se não o tinha visto, bateu com força no vidro e tentou abrir a porta. Finalmente, ele rodou a cabeça e olhou para o homem. Tinha a cara vermelha mas não a cabeça. A cabeça era branca. Vestia calças de ganga e um pólo com os botões desabotoados. O pescoço e a zona do externo eram tão vermelhos como a cara. Tinha poucos pêlos, excepto no nariz, e suava profusamente.

«O que é que quer? Desapareça.»

Foi um erro. O homem aumentou o tom dos insultos e bateu ainda com mais força na janela. Depois deu um pontapé na porta.

A cabeça do homem tinha-o perturbado de imediato. Por causa da cor, da transpiração, dos pêlos no nariz e da artéria que pulsava na têmpora direita. Mais tarde, ele perguntar-se-ia se tinha mesmo sentido raiva suficiente para aquilo suceder. Se tinha – e claro que tinha; o resultado não deixava margem para dúvidas –, fora certamente mais difusa, menos consciente do que em qualquer outra situação anterior. Ter-se-á visto a sair do carro e a pregar um murro na cara do outro homem; ter-se-á visto a pontapeá-lo enquanto ele se encontrava no chão; nunca se imaginou a rebentar-lhe a artéria.

Não houve esguicho de sangue. Apenas dor súbita na cara do homem, que se agarrou à têmpora direita, emitiu um grito estranhamente agudo e tombou no pavimento.

Ele permaneceu dentro do carro, ouvindo o homem gritar. Após uma mão-cheia de segundos, viu-o levantar-se, agarrado aos rails de metal que delimitavam a via a partir daquela zona, e tentar correr na direcção da carrinha. Viu-o cair quase de imediato.

Abriu a porta e saiu. Evitando olhar para o homem, fazendo um esforço para se abstrair dos gritos, marcou 112 no telemóvel. O veículo do INEM demorou vinte minutos a chegar. O homem já estava morto.

 

(Continua amanhã...)

E isto para não chegar a lado nenhum

Bandeira, 18.04.16

José Bandeira - Pilos, Messénia, Grécia
Região de Pilos, Messénia, Grécia (Foto José Bandeira) 


Garantir que os gregos não inventaram a democracia como hoje a conhecemos é dizer que os sumérios não inventaram a jante de liga leve. Depois de uns Bushmills dá para aceitar, mas há necessidade? Fiel a mim mesmo, serei pedante e lembrarei que até os romanos, cuja civilização em certa medida se construiu contra a dos gregos (leia a Eneida outra vez, vá), perceberam a relevância do tremendo legado. E se Popper apodou Platão de totalitarista, não deixou de escrever também que a primeira filosofia grega era quase “demasiado boa para ser verdade”.

 

Em Os Cavaleiros, o poeta (muito) cómico Aristófanes arrasa Cléon, o grande demagogo da democracia ateniense. Eleito em acalorada discussão comandante militar, Cléon acabara de chegar de Pilos com mais de trezentos espartanos acorrentados e, sobretudo, humilhados; gente nada habituada a tratos de polé. Eis que a cidade se vê já a vencer a guerra (se quer saber, não a venceu) mas Aristófanes arrasa o seu próprio líder, ao mesmo tempo que retrata os seus conterrâneos, o povão ateniense, com condescendência aristocrática (quase todas as fontes que nos chegaram do período democrático, incluindo Aristófanes, são de certa forma hostis à democracia, quando não admiradoras confessas do regime totalitário em vigor em Esparta). Superando uma ou outra dificuldade – o autor queixa-se de não ter encontrado quem se dispusesse, com receio de represálias, a fazer-lhe uma máscara de Cléon –, a peça foi a concurso no teatro de Dioniso e ganhou o primeiro prémio.

 

O primeiro prémio! Mas então esse Cléon, tratado na aba da Acrópole de corrupto e ladrão por um poeta cómico aplaudido por uma multidão em delírio, perdeu o poder, certo? É claro que não. O mesmo povo que deu o primeiro prémio a Aristófanes colou as costas do seu demagogo ao espaldar da cadeira do poder. Pelos padrões de hoje, tudo perfeitamente normal. Até na parte em que Aristófanes, apesar de um processo ou outro nos tribunais, se permitia usar de liberdade de expressão, uma coisa que a gente se habituou a achar muito recente, muito nossa, muito luxo de primeiro mundo.

 

Esquerda-cigarra e PS-formiga

Pedro Correia, 18.04.16

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Acabou o tempo da retórica frentista: a necessidade de cumprir o Pacto de Estabilidade e Crescimento porá à prova a estabilidade da precária e conjuntural maioria de que António Costa ainda dispõe no Parlamento - maioria que aliás se dissolveu já na votação do orçamento rectificativo destinado a concretizar o processo de resolução do Banif.

A deliberada rispidez de Catarina Martins, interpelando cinco vezes Costa em tom crispado no debate quinzenal da passada sexta-feira, prenuncia novos ventos. Que soprarão cada vez com mais força caso se confirmem as exigências adicionais da Comissão Europeia hoje divulgadas no Correio da Manhã: veto ao aumento do salário mínimo para 600 euros até 2019 e chumbo da semana laboral de 35 horas na administração pública, por exemplo. Além de um "ajustamento orçamental" que possibilite a redução de 0,6% do défice português. Isto enquanto aumentam os juros da dívida e o FMI antecipa uma significativa redução das receitas fiscais anunciadas para 2016.

O colete que Bruxelas quer ver ainda mais apertado, somado à degradação acelerada do nosso frágil sistema financeiro e aos alertas que sucessivas entidades - como a OCDE e a Universidade Católica - vêm lançando como duche frio nas risonhas previsões do ministro Mário Centeno, não augura nada de bom para a saúde da esdrúxula coligação formada em Novembro. Uma coligação parlamentar de três partidos e um apêndice em que apenas o PS-formiga assume responsabilidades governativas enquanto a esquerda-cigarra vai mandando bitaites, replicando os treinadores de bancada.

Este é o dilema estratégico que Costa deverá defrontar a curto prazo: ou alarga o elenco governativo a esses partidos, forçando-os a um grau de compromisso muito maior do que o actual, ou não tardará a reviver os dias agrestes de José Sócrates no malogrado biénio 2009-11 - que acabou como sabemos. Entre este penoso cenário e a nada invejável hipótese de tornar-se o Tsipras português, resta-lhe uma via estreita e sinuosa. Mas é preferível que comece a trilhá-la desde já.

 

Leitura complementar: Notas políticas (7)

No peito dos desatentos também bate um coração

Rui Rocha, 18.04.16

Almas sensíveis descobriram nesta madrugada, com evidente proveito, a toada tropical do Parlamento brasileiro. Tinham-lhes escapado, ao que parece, outros momentos igualmente saborosos: a elevada qualidade artística e política dos discursos de Lula em geral, o episódio do antigo Presidente proposto para função governamental para se eximir a uma investigação judicial ou o dos quatro ministros exonerados para poderem participar na votação. Eu, que assisto com um interesse distanciado, digo que estão bem uns para os outros. E que provavelmente nem uns nem outros estarão bem para o Brasil. Quanto ao resto, se vi no Parlamento brasileiro coisas do arco-da-velha? Vi sim. Vi até coisas que jamais poderia ver nos parlamentos de Havana ou de Caracas.

A queda

Luís Naves, 18.04.16

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Depois da estrondosa derrota na câmara dos deputados, Dilma Rousseff terá escassas hipóteses de impedir o processo de destituição; mesmo que consiga manter-se no poder, a presidente brasileira não tem condições para governar até ao fim do mandato. Estranho ‘golpe’: três em cada quatro deputados votaram a favor da saída de Dilma. A coligação que apoiava a presidente está desfeita e o descontentamento popular não permitiria mais dois anos e meio de pântano. O Brasil precisa de mudança, como disseram muitos dos deputados que votaram pela destituição na caótica, democrática e por vezes divertida sessão de voto de ontem (hoje de madrugada), que lembrava um jogo de futebol a terminar em penaltis.

Na imprensa brasileira escreve-se que Dilma e o PT cometeram erros tremendos, sobretudo ao longo do último ano e na campanha do segundo mandato (com vitória por pequena margem); a presidente hostilizou dirigentes dos partidos que a apoiavam, foi arrogante e queimou pontes, mas acima de tudo cometeu erros que acentuaram a recessão: o Brasil deverá perder 8% a 10% do PIB, o desemprego aumenta depressa, espera-se a recuperação apenas em 2018. Em Portugal, vemos notícias muito editadas, onde os apoiantes de Dilma parecem sempre melhor do que “as tias” que querem a destituição. Trata-se de uma fantasia, claro. O descontentamento popular é evidente, como foi óbvia a influência das manifestações de rua na escolha de muitos deputados. Se o avanço do processo fosse contra o desejo do povo, não tinha acontecido.

O PT está metido até ao pescoço num escândalo de corrupção sem precedentes e tentou obstruir a investigação judicial. Este partido também tentou criar um regime clientelar que se notou nas divisões da votação por estados: nos partidos hesitantes, os deputados das regiões ricas votavam contra Dilma e os das regiões pobres a favor. O país está dividido entre Norte e Sul. Na câmara, notavam-se as classes sociais, a questão racial, o voto evangélico contra Dilma, as fracturas partidárias, o caciquismo e o desespero dos deputados do PT. A crispação política parece ter ultrapassado um nível perigoso e as elites brasileiras não parecem à altura da crise. O sistema presidencial dificulta a válvula de escape de eleições antecipadas, o sistema eleitoral permite eleger deputados (geralmente chefes políticos locais) por algumas centenas de votos, o vice-presidente Michel Temer é também impopular, acusado de golpista pelos derrotados, os problemas económicos exigem medidas urgentes, mas o Brasil é demasiado grande para falhar.

Sobrepressão (3/5)

José António Abreu, 18.04.16

Jantou uma lata de atum com meia lata de feijão frade. Misturou tudo, acrescentou azeite, levou dois minutos ao microondas. Lavou prato, copo e talheres, e sentou-se na sala, pequena e demasiado cheia, com o portátil e um livro pousados no sofá ao seu lado. Forçou-se a ver as notícias. Depois fez zapping. Encontrou novelas, reality-shows, talk-shows, debates sobre arbitragens e foras-de-jogo de jogos de futebol, séries, um ou outro filme. Pensou que nessa noite já ingerira enlatados suficientes (a ironia fê-lo sorrir) e desligou o televisor. Lembrou-se de um velho tema de Bruce Springsteen (57 channels and nothin’ on), lançado numa época em que a televisão portuguesa apenas tinha dois canais, e recordou a sua ingenuidade ao pensar que o Boss estava maluco: com 57 à disposição, como seria possível nada de interessante estar a dar? Ainda pensou em colocar o CD no leitor mas a ideia rapidamente lhe surgiu como pueril. Tentou trabalhar mas descobriu que não conseguia concentrar-se. A certa altura, começou a ouvir pancadas, risos e o som de uma televisão no apartamento de cima. Conhecia mal as pessoas que lá viviam. Um casal de trinta e tal anos, sem filhos – por enquanto. Tornou a ligar o televisor mas os sons provenientes do outro apartamento subsistiram. Ficou a ouvi-los, olhando para o ecrã sem tentar extrair sentido das imagens mas mudando frequentemente de canal. Foi deitar-se perto da meia noite.

 

Acordou com dor de cabeça. O mais pequeno movimento fazia o cérebro pulsar uma onda de dor. A descida para o nível das garagens, no elevador que arrancava e parava com safanões e um estoiro metálico, deixou-o nauseado. O ruído do motor do carro era suficientemente abafado para não o incomodar mas o rádio renasceu numa explosão sonora que o entonteceu. Desligou-o com uma pancada, manobrou por entre os pilares e pela rampa acima, avançou para o término da fila.

Progrediu no pára-arranca habitual durante dez minutos, vendo carros dar o golpe duzentos, depois cem, depois cinquenta metros à sua frente. Atingiu por fim a zona de combate. Como habitualmente, colou a frente do carro à traseira do que o precedia – uma carrinha Mitsubishu conduzida por uma mulher que passava a mão no cabelo a cada cinco segundos. A primeira tentativa surgiu de imediato. Resistiu. Suportou uma segunda. A terceira foi mais agressiva – como se o outro condutor estivesse disposto a causar um acidente para entrar na fila (e quem sabe? Talvez estivesse). Agarrou o volante com força, pressionou a buzina, resmungou “Filho da puta” e assestou o olhar no pneu dianteiro do lado direito do outro carro. O estoiro foi imediato. Como na véspera, a frente do veículo teve um breve movimento ziguezagueante – quase parecia uma reacção de surpresa – e depois imobilizou-se.

Desta feita não houve paz. Apenas júbilo selvagem – que demonstrou, rindo abertamente ao ultrapassar o outro carro.

 

Não podia ser coincidência. Não duas vezes. Depois de se acalmar, perguntou-se o que diabo estaria a acontecer. Sentiu-se mesmo – agora sim – um pouco assustado. Mas rapidamente decidiu que não havia forma de chegar a uma conclusão racional – e, por conseguinte, a atitude mais racional era nem sequer tentar encontrá-la. Iria apreciar – e utilizar plenamente – este poder durante tanto tempo quanto lhe fosse possível. Quando desaparecesse, encolheria os ombros e seguiria em frente. Até lá, obrigaria aqueles filhos da puta a pagar caro todas as tentativas de fazerem dele um idiota. Raiva era a resposta – bruta, não diluída, honesta. Era isso que tinha de sentir ao olhar para aqueles pneus.

 

A facilidade era desconcertante. Na manhã seguinte deixou quatro carros com pneus rebentados no acesso à via rápida. Os condutores faziam perguntas uns aos outros e pesquisavam o pavimento em busca de objectos cortantes. Ele tinha vontade de rir e, por momentos, não foi capaz de o evitar. Apenas os condutores à sua frente na fila, que haviam abrandado para ver o que se passava, lhe estragavam ligeiramente a disposição.

 

Aprendeu depressa a controlar a raiva. Em poucos dias, funcionava quase sempre. Cerrava os dentes, assestava os olhos no pneu e apertava o volante como se este fosse o pescoço do outro condutor. A tensão no maxilar originava uma pressão nas têmporas que se desvanecia logo após o rebentamento.

 

Disseminada pelos boletins radiofónicos de informações de trânsito, na semana seguinte a estranheza começara a instalar-se Não passava um dia útil sem que rebentassem pneus naquele acesso. Na quarta-feira, havia polícia no local. Mas, com a presença da polícia (dois motociclistas entroncados com o olhar duro de quem deseja fazer jus ao uniforme), menos condutores tentaram dar o golpe e nenhum o fez perto dele. Todos os pneus passaram incólumes nessa manhã. Na seguinte, porém, cinco condutores tiveram de parar, perder tempo e sujar as mãos.

 

«Sentes-te bem?», perguntou Sara, parando junto à secretária dele.

Clicou no ícone save e ergueu os olhos para ela. Rodou o pulso, que desde há um par de anos lhe doía sempre que passava uns minutos a utilizar o rato. O estalo não fez abrandar a dor.

«Tão bem como noutros dias. Porquê?»

Sara vestia uma saia que terminava acima dos joelhos. Era uma má escolha para alguém com a idade - e especialmente o peso – dela.

«Tens andado... não sei, quase feliz. Ainda mais maníaco do que o habitual mas quase feliz.»

«E isso é mau?»

«Não. Não. Não sei.»

Ele tentou olhar para ela como se fosse a primeira vez que a via. (Era um exercício a que se entregava com frequência. Tentar re-adquirir uma primeira impressão de pessoas que conhecia há muito. Era também um exercício que, pela inutilidade, o irritava ligeiramente.) Perguntou-se se ela ainda lhe era atractiva, não obstante tudo o que sucedera entre ambos. Surpreendentemente, a resposta era positiva e gerava nele sentimentos de vergonha e desprezo – por ela mas ainda mais por ele.

«Tenho de acabar este relatório. Mas obrigado pela preocupação.»

«Não estou preocupada contigo.»

«OK.»

«Até pareces mais bem disposto.»

«Impressão tua.»

Ela hesitou. Depois moveu o corpo todo para encolher os ombros e foi-se embora.

 

(Continua amanhã...)

O comentário da semana

Pedro Correia, 17.04.16

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«Os condutores que têm este tipo de atitudes - o de tentar entrar lá à frente - forçando a uma atenção redobrada, promovendo a raiva por via do "sou mais esperto que vocês, otários", obrigando a fila/bicha a encolher e esticar, atrasando-a, são junto com os mirones e com os "gajos" que só andam na faixa do meio, o maior sintoma nacional de algo muito podre.
Esta podridão e sacanice que nos mata a todos um bocadinho não é feita por políticos, ou por tipos dos panama papers - os actuais Némesis dos portugueses: é feita pelo mesmo português que a seguir, sem problemas de consciência, vem reclamar para o FB ou para junto dos seus colegas o quão horríveis e irresponsáveis são X e Y no desempenho das suas funções e que não entende como é que Portugal não avança nem por nada.
Se nas funções mais normais em sociedade o entendimento é nulo de como uma atitude pode desencadear toda uma serie de acontecimentos terríveis, como irá entender que outros não o repliquem na mesma linha nas suas funções?
Sim, é que isso de pensar nos outros, ou nos processos e mecanismos, dá muito trabalho "e eu tenho pressa". Por isso em Portugal ninguém está disposto a ser o otário que se mete pacientemente na fila/bicha e espera pacientemente reciprocidade alheia, de modo a que tudo funcione. Não, nem pensar. Que se lixem os outros, que se lixem os portugueses

 

Do nosso leitor T. A propósito deste texto do José António Abreu.

blogue da semana

Patrícia Reis, 17.04.16

"Na minha cabeça já comecei este texto várias vezes. Ou pelo menos iniciei a ideia de o começar. Mas a verdade é que não sei como o fazer, como escrever uma linha sobre um livro que é todo surpresa e espanto.

Não escrevo sobre os livros que não gosto, primeiro porque não os chego a terminar, segundo porque acho que não vale a pena perder tempo a dizer mal. Mas sobre os que gosto, sim. Para esses eu quero escolher as palavras mais bonitas, aquelas que me ocorreram durante a leitura, outras em que pensei depois, e ainda as que surgem enquanto escrevinho o que há de ser uma espécie de opinião.

Bom, mas esta conversa não vai fazer ninguém pegar no livro, e neste ponto vou ser muito objectiva: eu quero que leiam este livro. É bastante provável que eu chegue ao fim deste texto sem ter reunido razões suficientes para que o leiam, e isso será por mera incapacidade minha, mas já sabem o que têm de fazer. Ler este livro."

É assim que começa o último post do blog planetamarcia, http://planetamarcia.blogs.sapo.pt, de Márcia Balsas. A enorme vantagem do blogue? Máricia Balsas não é uma crítica literária a trabalhar para um jornal,  é uma leitora atenta e curiosa que escreve somente sobre os livros de que gosta, como se pode ler no texto acima. Todos os seus posts explicam as razões que a levam a gostar do livro A ou B numa descrição que não estraga uma potencial leitura a quem estiver interessado e que, acima de tudo, é de uma honestidade enorme. Não há um registo académico, nem jornalístico, repito, o que há é alguém que ama os livros e que escreve sobre o espanto de conseguir encontrar na leitura um espaço feliz. Ah, não é de somenos sublinhar que a Márcia Balsas lê indiscriminadamente, ou seja, está- se nas tintas se fica bem ou mal dizer bem de certos autores ou livros, logo é um blogue muito recomendável.

A fraqueza dos presidentes

Luís Naves, 17.04.16

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As transições dos presidentes americanos bem sucedidos costumam corresponder a tempos um pouco mais instáveis. O último ano de Barack Obama não está a fugir a esta regra, muito visível desde o fim da Guerra Fria, mas que já se verificava nos ciclos anteriores. No seu oitavo ano de poder, o presidente não pode ser reeleito e é politicamente débil. Muitos congressistas também vão a eleições e estas viragens de ciclo costumam fazer muitas vítimas, pelo que ninguém quer correr riscos. Claro que o primeiro ano do novo presidente também pode ser instável, mas os líderes populares tendem a encurtar esse período problemático.

O fenómeno talvez possa explicar parte dos desafios que estão a surgir à liderança americana do mundo, por exemplo a aparente agressividade russa no Báltico, os ensaios de mísseis da Coreia do Norte, o aumento das rivalidades no Mar da China, o interesse de Moscovo no Médio Oriente. Neste último, o verdadeiro motivo será a tentativa de limitar a produção de petróleo, sem ligação aos ciclos americanos.

Com a América menos envolvida em questões externas e mais atenta às suas próprias eleições, é natural que os poderes rivais tentem fazer testes de vontade política. O próximo presidente será provavelmente Hillary Clinton, com grande experiência internacional, o que contribuirá para uma rápida acalmia, mas existe a possibilidade de  tudo correr de forma diferente. Os outros três candidatos com possibilidades (Donald Trump, Ted Cruz e Bernie Sanders) são populistas com ideias que levarão ao isolamento da América e ao recuo da sua política externa. Trump representa um fenómeno novo e fez promessas eleitorais que darão origem a conflitos com aliados e a mudanças estratégicas imprevisíveis. Se vencer, será testado sem quartel por todos os poderes que contestam a hegemonia americana. Veremos mísseis a voar, incidentes de fronteira e retórica bélica.