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Delito de Opinião

Navigare necesse est (1)

Ana Vidal, 02.08.10

 

«No começo, muito antes de qualquer gesto, qualquer iniciativa ou vontade deliberada de viajar, o corpo trabalha, à semelhança dos metais sob a canícula do Sol. (...) Toda a genealogia se perde nas águas mornas de um líquido amniótico, esse banho estelar primitivo em que cintilam as estrelas com as quais, mais tarde, se fazem os mapas do céu. O desejo de viagem tem a sua fonte nessa água lustral e morna, alimenta-se estranhamente desse manto metafísico e dessa ontologia germinativa.


Mais tarde, muito mais tarde, cada qual se descobre nómada ou sedentário, amador de fluxo, de transportes, de deslocações, ou apaixonado pelo estatismo, imobilidade e raízes. (...) Os primeiros gostam da estrada, longa e interminável, sinuosa e ziguezagueante, os segundos adoram o solo, sombrio e profundo, húmido e misterioso. Estes dois princípios existem não tanto em estado puro, sob a forma de arquétipos, mas em componentes indiscerníveis no pormenor de cada individualidade.»

 

É assim que começa o belíssimo livro de Michel Onfray, a minha leitura de viagem nestas curtas férias em Itália. Chama-se "Teoria da Viagem - Uma poética da geografia" (Quetzal, textos breves) esta pequena pérola que descobri na Feira do Livro de Lisboa, a melhor compra que lá fiz este ano e que recomendo a todos os viajantes inveterados. Cada linha de cada parágrafo de cada página me diz, de uma forma claríssima, o como e o porquê daquilo que eu sempre soube no meu íntimo: pertenço, sem qualquer dúvida, à tribo dos nómadas. Não saberia explicar-vos porque me sossega tanto a confirmação de um desassossego assumido e irremediável. Mas é exactamente isso que acontece, ao reconhecer-me neste livro como se ele fosse um espelho. Não resisto a incluir pequenas citações dele nas crónicas que se seguirem. Se é verdade que o mundo vai resistindo sempre às nossas tentativas de traduzi-lo em palavras, não o é menos que toda a viagem é uma possível aproximação da compreensão desse mundo. Tentar, tentar sempre, é o que nos cabe.

 

(Imagem: Chema Madoz)

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