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Delito de Opinião

Carlos Drummond de Andrade

Patrícia Reis, 31.12.15

O último dia do ano
Não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
E novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
Farás viagens e tantas celebrações
De aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia
E coral,

Que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
Os irreparáveis uivos
Do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
Não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
Onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
Uma mulher e seu pé,
Um corpo e sua memória,
Um olho e seu brilho,
Uma voz e seu eco.
E quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.

Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa, já se expirou, outras espreitam a morte,
Mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
E de copo na mão
Esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
O recurso da bola colorida,
O recurso de Kant e da poesia,
Todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
Lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

 

Feliz Ano Novo

Teresa Ribeiro, 31.12.15

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Não me quero meter num 31. Se o Natal é quando um homem quiser também o ano novo nasce quando muito bem entender. Ainda há dois dias ouvi um curioso discurso contra as 12 passas e os 12 desejos (não desgosto de passas, mas também prefiro m&m's). Os 12 desejos são, de facto, um exagero. Uma clara invenção da sociedade de consumo, que como sabemos tem na venda de desejos o seu grande negócio. Eu gosto de dizer "não" ao desperdício. Além de que não me tenta apresentar um tão extenso caderno de encargos ao destino. No que toca ao meu destino sou supersticiosa. Acho que o melhor é deixá-lo estar, distraído de mim, não vá o diabo tecê-las. De modo que não lhe vou pedir nada.

Gosto daquela máxima que diz: "Não peças nada, espera pouco e deseja tudo". Desejar tudo é só uma questão de princípio. Ninguém deseja tudo esperando que tal se concretize, por isso estou de mala aviada para 2016 sem grandes expectativas. Apenas com uma ideia de pragmatismo que me agrada, que é a de fazer o que estiver ao meu alcance para me sentir bem. Se for competente, haverá consequências para quem estiver próximo e até longe de mim. Quantos mais, melhor, porque o efeito multiplicador é muito importante.

Conto de Ano Novo

José António Abreu, 31.12.15

As dores começaram a sério na manhã do dia 31 de Dezembro. Para Susana, não constituíram uma surpresa. Há meses que as esperava a qualquer instante. Sentira-as até muitas vezes, em parte reais, em parte por antecipação. Fez uma tentativa débil para se convencer de que ainda não seria agora, de que não passava de um falso alarme, mas desistiu de imediato. Para quê fingir optimismo nesta fase?

Vítor estava a trabalhar. Pensou telefonar-lhe mas desistiu também dessa ideia. Fá-lo-ia mais tarde. Ou não. Os esforços que ele fazia para lidar com a situação deviam agradar-lhe (sabia-o perfeitamente) mas, em vez disso, irritavam-na.

Deitou-se no sofá da sala e recordou os dias do diagnóstico. A preocupação do médico, cuja confiança profissional se esvaiu ao perceber o grau do pessimismo dela. «Precisa de ânimo. Uma visão positiva é essencial.» As garantias de Vítor de que tudo correria bem: «Não há verdadeiras razões para ficares assim. As taxas de sobrevivência são altíssimas, hoje em dia.» (Evitava sempre dizer «taxas de mortalidade», em mais uma demonstração de tacto que a irritava profundamente.)

Ela sabia que era verdade. Mas também conhecia os factores de risco, que, honra lhe fosse feita, o médico nunca suavizara. E, acima de tudo, conhecia a história da sua família. Pesquisara. Por entre um mar de imprecisões e contradições, os familiares mais idosos recordavam pelo menos cinco mortes, todas pelo mesmo motivo. A penúltima, claro, fora a da mãe dela. A última, a de uma tia, irmã da mãe. Era a única de que Susana se lembrava, embora vagamente. Tinha seis anos. Haviam-na poupado ao funeral mas recordava a viagem até à Guarda, onde a tia residia com o marido. No final da década de 1970, as viagens ainda eram difíceis e, talvez por isso, memoráveis.

 

As dores não desapareceram. Pelo contrário, foram aumentando ao longo da manhã, como ela sabia que aconteceria. Almoçou uma maçã, voltou para o sofá. Perto do final da tarde, desistiu. Ligou para o telemóvel de Vítor. O som de chamada prolongou-se tanto que ela desligou num espasmo. Deu um par de minutos e ligou o número do médico. Dia 31 de Dezembro à tarde. Seria possível apanhá-lo? Foi. Atendeu, disse-lhe que seguiria de imediato para o hospital, profissional até na forma como escondeu a mais do que natural desilusão pela noite de passagem de ano estragada. Perguntou-lhe se tinha quem a levasse. Susana hesitou e depois respondeu que sim. «OK, encontramo-nos lá. Anime-se. Vai correr tudo bem.»

Ela sabia que as pessoas estranhavam. Que, no íntimo, a consideravam egoísta. Não era suposto reagir daquele modo. Tornava tudo mais difícil para toda a gente. Devia facilitar-lhes a vida, aceitando o desafio com estoicismo; não, com mais do que isso (estoicismo tinha ela): com ânimo, talvez mesmo entusiasmo. Era incapaz de o fazer. Percebia a inutilidade do seu comportamento, a injustiça que cometia e pela qual, se tudo acabasse mesmo por correr bem, teria de se penitenciar, mas as coisas eram como eram.

À segunda tentativa, Vítor atendeu. O tom de pânico na voz dele devia tê-la enternecido. Não o fez. Ele prometeu estar em casa em menos de um quarto de hora. Susana disse-lhe para não exagerar no trânsito. Só faltava ter um acidente. Depois de desligar, lembrou-se do comportamento dele nos primeiros tempos. De como parecia sentir mais medo do medo dela do que do risco que ela corria. Susana acabara por lhe garantir: «Sossega. Não vou fazer nada de irreflectido. Não condiz comigo.» Mas nem por isso ele ficou mais tranquilo.

Sabia que correra riscos. Perguntou-se várias vezes porquê. Um desafio à sorte? Mas então por que não conseguira assumi-lo até ao fim? Porquê o negativismo, a sensação de que o trajecto era inexorável e ela (como na viagem para a Guarda, há cerca de trinta e cinco anos) uma simples passageira?

As dores regressaram, tão fortes que a atiraram ao chão. Ao longo dos últimos meses, a sogra, especialista numa mistura de encorajamento e crítica, dissera-lhe várias vezes para rezar. Susana nem sequer sabia uma oração.

 

A filha tinha testa ampla como o pai mas os olhos eram os dela. E o nariz. Susana perguntou-se que efeitos negativos teria programado o seu pessimismo naquele corpo minúsculo. Desconhecia se, há quarenta e um anos, a mãe a chegara a ver e não conseguia decidir qual a melhor hipótese: morrer depois de verificar a sobrevivência de uma filha ou antes de confirmar a existência de um ente que se abandona no mundo. Mas Susana sobreviveria. Pelo menos isso.

O médico entrou no quarto. Já vestia roupa normal, tinha um ar cansado.

«Deu luta, hã? Mas está de parabéns. Tem uma bela rapariga. E sortuda, ainda por cima. Vai começar já a ter presentes. Foi o primeiro parto do ano aqui no hospital e provavelmente em todo o país.»

Mas logo a seguir explicou-lhe que, agora, talvez fosse mesmo preferível evitar nova gravidez. «Não estou a dizer taxativamente que não possa. Digamos que é algo a avaliar com cuidado, dependendo da evolução da situação, OK?» Tocou-lhe no braço, desejou-lhe um bom ano e saiu.

Vítor começou a falar. Dizia o que devia dizer (tudo correria bem; era cedo para ter certezas; ainda que não pudessem ter outros filhos, isso não constituiria uma tragédia) mas ela não sentia vontade de o ouvir. Olhou para a filha, que ainda nem tinha nome. Alegria e renovação do medo, pensou. Talvez a única forma adequada de entrar num ano novo.

 

(Também aqui.)

Carlos Drummond de Andrade

Patrícia Reis, 31.12.15

 

RECEITA DE ANO NOVO

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)
Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Alguns álbuns de 2015: "My Love is Cool", dos Wolf Alice

José António Abreu, 31.12.15

Não sei se o primeiro trabalho de longa duração dos britânicos Wolf Alice é o melhor álbum pop do ano mas é certamente o que ouvi mais vezes e um dos dois mais eclécticos (chegaremos ao outro). Repleto de momentos de descontracção, inclui variações de ritmo e uma pitada de introspecção e nostalgia que lhe conferem espessura. Este vídeo parece-me ainda uma boa maneira de abandonar 2015.

Um ano difícil

Luís Naves, 31.12.15

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O próximo ano não será fácil para Portugal. No final de 2015, houve uma acumulação de tensões políticas como não se via desde os anos 80. Temos agora a bizarra situação de um partido de governo que perdeu as eleições, com apenas 32% dos votos, e que em certas votações cruciais para a credibilidade externa do país necessitará do apoio de um partido rival com mais deputados ou, alternando, do apoio de duas formações da esquerda radical. O PS vai governar de forma precária, toureando à vez, à esquerda e à direita, conforme o tema. As trapalhadas serão constantes, as surpresas inevitáveis, e nem o apoio automático de uma comunicação social desligada da realidade poderá esconder as sucessivas crises.

As promessas da esquerda ameaçam inverter o que foi conseguido na redução da despesa pública e nas contas externas. As incertezas políticas podem reflectir-se no crédito da república e esbanjar a rara oportunidade do petróleo barato e do financiamento a juros baixos. E, no entanto, é perfeitamente possível que a transição pantanosa dure mais de um ano, pois será punido nas urnas quem derrubar este governo minoritário antes que sejam visíveis os seus estragos.

As bolhas das elites políticas, empresariais, culturais e jornalísticas estão a rebentar, pondo fim às ilusões em que todos viveram. Os bancos serão comprados por bancos estrangeiros maiores e esse processo talvez já seja visível em 2016. Os jornais perdem leitores e abraçam a cultura da banalização do superficial. A economia é pouco competitiva, o desemprego elevadíssimo, as empresas precisam de capital e a credibilidade externa do país depende de decisões que não controlamos, tomadas por burocratas da Comissão ou do BCE e por tecnocratas anónimos das agências de notação.

Dentro de semanas, nas eleições presidenciais, o país terá de fazer uma escolha entre estabilização e agravamento da instabilidade, sendo mais provável a primeira opção, com a eleição de Marcelo Rebelo de Sousa à primeira volta. Marcelo é o candidato que está em melhores condições de conseguir introduzir algum bom senso nesta complexa equação política.

A fechar o ano

Sérgio de Almeida Correia, 31.12.15

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(Bansky) 

 

"Moving forward, Europe must rediscover a progressive sense of universal values, something that the continent’s liberals have largely abandoned, albeit in different ways. On the one hand, there is a section of the left that has combined relativism and multiculturalism, arguing that the very notion of universal values is in some sense racist. On the other, there are those, exemplified by such French assimilationists as the philosopher Bernard-Henri Lévy, who insist on upholding traditional Enlightenment values but who do so in a tribal fashion that presumes a clash of civilizations." - Kenan Malik, The Failure of Multiculturalism

 

A diversos níveis, 2015 foi um ano de grande turbulência. Política e socialmente, na Europa e fora dela. O ano que se prepara para chegar ao fim foi também um ano de catástrofes naturais, de acidentes no ar, no mar, na terra, debaixo dela também, e sabe-se lá onde mais, de terrorismo, de pungentes dramas humanos, enfim, numa palavra, um ano de tragédias, um ano de excessos e radicalismos perigosos e inusitados. Sabemos hoje que se a nossa mão tem tido um papel no desenvolvimento, nos avanços técnicos e científicos que têm servido para minorar o sofrimento de muitos, a sua acção tem servido igualmente para acelerar desgraças, seja pela forma imponderada como se tem olhado para as questões do clima, cujos efeitos nefastos se fazem sentir com cada vez maior frequência, seja pela leviandade com que se mercantilizam direitos e obrigações, humanos e desumanas, ignorando-se questões essenciais para a nossa sobrevivência, para a construção de sociedades mais decentes e mais justas, e para o equilíbrio da nossa espécie e das que connosco sobrevivem e com as quais repartimos o espaço e o ar que respiramos. A falta de líderes e políticos preparados, responsáveis, sérios, interessados pelas questões que nos afectam, com estatura e pedigree não explica tudo. Nenhum de nós tem uma varinha mágica para resolver os problemas que nos afligem. Da nossa rua à nossa cidade, do nosso país ao mundo há, porém, muita coisa que pode ser feita sem custos, apenas com um pouco de esforço, olhando com olhos de ver, pensando no que merece ser pensado e discutido. Não podemos fugir de nós próprios, estamos condenados a viver e a compartilhar alegrias, dramas e sobressaltos. Há muitas maneiras de o fazermos e todas as que possam fazer-nos sair da modorra, do conformismo, da inércia, e que sejam susceptíveis de nos obrigar a agir são legítimas. Se por vezes é preciso falar das coisas a brincar, muitas vezes mesmo gozando com as situações, ironizando, satirizando, provocando, gerando desconforto, incomodidade, reacções contraditórias de amor e ódio naqueles que nos rodeiam, outras haverá em que temos de nos confrontar com o que fizemos, com o que não fizemos e com o que ficou por fazer devendo ter sido feito. Nas páginas deste e de outros blogues, nos meus textos avulsos, em redes sociais, em jornais, em debates ou em seminários e conferências, escrevendo cartas, confrontando os poderes formais e informais, por vezes sendo voluntariamente excessivo na adjectivação, contundente na farpa, incisivo na crítica, porque achei que assim devia ter sido, porque águas paradas não movem montanhas, porque é a indiferença que nos mata, que nos mói e que vai corroendo os alicerces da nossa vida colectiva, fui dando conta das minhas preocupações, muitas vezes enaltecendo posições que não são as minhas nem as que defendo apenas para obrigar os outros a reagirem. Um texto que gere a indiferença não serve para nada. É um amontoado de palavras. Até poderá ser um jogo de imagens agradáveis, bonitas, sensíveis, mas não passará disso mesmo, de uma inutilidade, de um desperdício sem consequências de maior. A sua função esgota-se com a composição e dissipa-se com a leitura. O que aqui ficou registado deve também ser visto nesta perspectiva. E como nos próximos dias muitos terão tempo - os que puderem ou tiverem pachorra - para foliar e descansar, aproveitando a circunstância do primeiro de Janeiro coincidir com uma sexta-feira, resolvi aqui deixar-vos a frase que acima transcrevi e convidar-vos a, num momento mais sossegado, perderem algum tempo a ler este texto de Kenan Malik. Penso que seria uma forma saudável de terminarem este ano antes de se atirarem ao próximo, aos encontrões, ao marisco, ao leitão, às passas, ao champanhe e a outros excessos da nossa "civilização", hoje mais dada ao insulto, à estupidez, à vacuidade e à veneração da mediocridade, apesar de excessivamente sensível para algumas coisas menores que deveriam merecer o nosso desprezo. Espero que a leitura, desta vez, não vos tenha sido indigesta, e que no próximo ano tenhamos todos direito à criminalização da imundície, de toda, e da idiotia. Entretanto, desejo-vos um ano farto. De saúde, porque sem ela nada feito, de luz e de paz, a começar pela de espírito, esperando que se continuem a indignar, criticar, exaltar, amofinar com o que por aqui vou deixando. Será sinal de que estão vivos, de que este blogue continuará o seu caminho e de que eu continuarei a ter motivos para aqui voltar quando me apetecer para exercer a minha cidadania. Quanto mais não seja para de vez em quando vos ir provocando a exercerem a vossa. De preferência num português inteligível. E a deixarem os vossos piropos, mesmo os mais ordinários, mesmo os destinados ao desprezo e à censura, com tesura. Porque a liberdade também passa por aqui.

Fernando Pessoa

Patrícia Reis, 30.12.15

DEIXEI ATRÁS OS ERROS DO QUE FUI

Deixei atrás os erros do que fui,

Deixei atrás os erros do que quis

E que não pude haver porque a hora flui

E ninguém é exacto nem feliz.

Tudo isso como o lixo da viagem

Deixei nas circunstâncias do caminho,

No episódio que fui e na paragem,

No desvio que foi cada vizinho.

Deixei tudo isso, como quem se tapa

Por viajar com uma capa sua,

E a certa altura se desfaz da capa

E atira com a capa para a rua.

«23-8-1934 - Poesias Inéditas (1930-1935)

Regresso à normalidade

José António Abreu, 30.12.15

Lentamente, os contornos do caso Banif vão ficando mais claros. O processo foi fechado antes de 1 de Janeiro de 2016, evitando as novas regras europeias para a resolução bancária, que forçam uma contribuição dos maiores depositantes e dos detentores de dívida sénior. Ao contrário do que sucedeu no Novo Banco, a venda do «banco bom» foi restringida a entidades com licença bancária, o que permitiu um excelente negócio ao Santander - e um péssimo negócio para os contribuintes. Para grande satisfação dos principais bancos, o Fundo de Resolução foi não apenas poupado a contributos desagradáveis (o que forçou o ministro das Finanças a declarações de veracidade questionável) mas capitalizado - ambas as coisas, mais uma vez, à custa dos contribuintes. Com a ajuda de uma comunicação social acéfala ou alinhada (não sei o que será pior), o ónus de toda a situação foi empurrado para o governo PSD-CDS.

Resta admitir mérito a quem o merece. A operação foi excelentemente montada e perfeitamente executada. Até já se percebe o apoio de Fernando Ulrich (quase sempre alinhado com o PSD) à formação de um governo liderado por António Costa: enquanto o PS é de confiança, a versão do PSD liderada por Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque demonstrara não saber respeitar os costumes e as hierarquias da República.

Um bom trabalho

Sérgio de Almeida Correia, 30.12.15

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Fui durante muitos anos um leitor fiel de O Independente, apesar de muitas vezes não concordar com o estilo de algumas reportagens. Ainda hoje tenho saudades do jornal porque apreciava a escrita contundente, desempoeirada e frontal. E em matéria de opinião li nesse jornal algumas das melhores crónicas da imprensa nacional. Como muitos outros títulos, o jornal acabou por não resistir e desapareceu. Filipe Santos Costa e Liliana Valente, jornalistas que passaram pela escola do Indy, resolveram regressar ao passado e nele colheram algumas das melhores e mais deliciosas histórias então publicadas. Agora com o adicional de ficarmos a conhecer algumas das gargantas fundas. Não deixa de ser curioso que a edição do livro, com prefácio de outro grande jornalista, Vicente Jorge Silva, e editado pela Matéria-Prima, coincida com a mudança de ciclo político em Portugal, com o final do governo de coligação PSD/CDS-PP e a reforma de Cavaco Silva. Torna-se, por isso mesmo, particularmente interessante confrontar o que então foi escrito, em especial por Paulo Portas, que foi um dos directores do jornal Pelo Socialismo nos seus tempos de JSD, quer sobre o PSD, quer sobre a direita e algumas das suas figuras. É verdade que muitas vezes o jornal e alguns dos seus jornalistas se excederam e foram arguidos em numerosos processos, por vezes obrigados a retratarem-se e a pedirem desculpas e de algumas outras vezes mesmo condenados. Mas nada disso retira mérito ao que então se fez, de muito bom, bom e de menos bom, e que foi recuperado pelos autores de "A Máquina de Triturar Políticos". Quando nos recordamos das queixas de alguns protagonistas recentes sobre a forma como alguns blogues e alguma imprensa os (des)tratava, não há nada como recuperar o que então foi escrito para se poderem estabelecer comparações. Seria bom que as gerações mais novas, em especial aquelas que não tiveram o prazer e o gozo de ler o jornal todas as sextas-feiras, a começar pelas novas gerações de jornalistas, aproveitassem para ler o trabalho dos seus colegas, cuja leitura vivamente recomendo. De Cavaco Silva a Costa Freire, de Leonor Beleza a Tomás Taveira, de Santana Lopes a Durão Barroso, de Carlos Melancia a Dias Loureiro, de Miguel Cadilhe à "fonte da Campa 24", das histórias de Luís Filipe Menezes, de João de Deus Pinheiro, Mendes Bota, Macário Correia às peúgas brancas de alguns laranjinhas e ao empréstimo do PSD a Fernando Nogueira, do qual só Cavaco sabia, está lá tudo. Reler o que então se publicou escrito por Paulo Portas, Miguel Esteves Cardoso, Vasco Pulido Valente ou Helena Sanches Osório, conhecendo-se o passado mais recente, é um exercício obrigatório. Sublinhando o excelente grafismo, a recordar o seguido pelo jornal, e a reprodução de muitas das primeiras páginas que fizeram história, só lamento que, com excepção do prefácio, tenha sido escrito na "nova ortografia". Enfim, não se podendo ter tudo, o trabalho feito impõe-se por si, merece atenção e recomenda-se.    

 

Enquanto não lerem o livro, os leitores poderão entreter-se a adivinhar quem escreveu o que a seguir se transcreve:

"O primeiro-ministro de Portugal aceitou que a sua viagem de férias a Salzburgo fosse a convite e por conta de uma multinacional. A Nestlé teve a ideia, escreveu a Cavaco, organizou e pagou. O burgomestre austríaco limitou-se ao protocolo. Nós pagámos o Falcon e a Nestlé pagou o resto" - os bilhetes para o festival, a estadia na suite presidencial do melhor hotel da cidade e um passeio para ver as vistas. Tudo confirmado pela multinacional. (...) Foi assim que pela primeira vez um primeiro-ministro português se deslocou ao estrangeiro a convite de uma empresa privada."

"O homem que confunde Thomas Mann com Thomas More está no seu legítimo direito quando faz alguma coisa para se cultivar (...)"; "[S]eja qual for a importância da causa, o cidadão Aníbal Cavaco Silva não pode obrigar quem paga impostos a financiar-lhe despesas de elevação espiritual (...)"

"Os portugueses foram habituados, ano após ano, a ver na Europa um processo de enriquecimento fácil, gratuito e infinito. O doutor Cavaco tem a maior responsabilidade nesta ilusão nacional."

"A cultura cavaquista nunca teve nada de sólido e duradoiro. Não pretendia disciplina nas despesas, nunca apostou a sério no capitalismo nacional, nem sequer usou uma maioria única para reformar a sério e a fundo a indústria e agricultura. A cultura cavaquista esgotava-se em três palavras: consumismo, obras públicas e subsídios."

"[O]s políticos da maioria, e são muitos, que enriqueceram tão depressa que parecem ter transitado milagrosamente das cavernas para os palácios."  

"Jamais na história política do regime se verificou tamanha falibilidade  de um ministro das Finanças. Não há um número certo, não há uma conta exacta, não há uma previsão verificada. As contas não falham por magia. Falham porque as decisões de política estavam erradas.[...] [O ministro das Finanças] orientou toda a política económica para cumprir os critérios de convergência do Tratado de Maaastrich e chega ao fim do ano com resultados que afastam Portugal das metas a que se obrigou. [...] Viveu todo este ano num país irreal e numa economia imaginária. [...] O que o ministro das Finanças prevê não acontece. A aldrabice ganhou foros de Estado."

"O PSD agarra[-se] ao Estado como a lapa à rocha. Se o dr. Cavaco o tentar arrancar de lá, fica sem unhas."  

"Quem olhar a elite política reconhecerá semelhanças com A Mala de Cartão. É de admitir que Linda de Suza tenha primos e mais primos no poder e na oposição"

"É um erro acreditar que são bons os que nasceram assim e maus os que nasceram assado. Pelo contrário, os mais elevados critérios de apreciação de um político são os factos do seu carácter e da sua dignidade."

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