Biblioteca, de Pedro Mexia
Crónicas literárias
(edição Tinta da China, 2015)
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Até há bem pouco tempo não faltavam por aí vozes lamurientas, queixando-se do primado da economia, que relegava a política para segundo plano. Essas vozes devem andar agora bem mais risonhas: a política voltou ao quotidiano português - e em força.
É um fenómeno que encontra ecos naturais na blogosfera, a que alguns se apressaram a passar certidões de óbito com manifesto exagero. Os blogues políticos aí estão, com várias tendências e de várias cores, contribuindo para o debate de ideias. Alguns - bem conhecidos - já existem há vários anos. Outros surgiram em data recente. Entre estes encontra-se aquele que decidi eleger como Blogue da Semana: o Kapagêbê.
Parece comunista. Mas em política nem sempre o que parece é.
Detesto a atitude daquelas pessoas que se entretêm a fazer os mais negros vaticínios seja sobre o que for para um dia poderem gabar-se, levantando o queixo, com uma espécie de superioridade moral: "Eu bem avisei..."
Em Portugal, no espaço mediático, há gente em excesso a proceder assim.
Vem isto a propósito do XXI Governo Constitucional, que ontem tomou posse.
É o segundo maior, em 40 anos de democracia, desde o infausto executivo de Pedro Santana Lopes - o que talvez baste para sobressaltar alguns supersticiosos. Dezassete ministros e quarenta e um secretários de Estado, além do primeiro-ministro: quase seis dezenas de figuras, o que satisfaz certamente aqueles que equiparam quantidade a qualidade.
Não é o meu caso.
Olho para o novo Governo e em vez de observar uma construção sólida vejo um castelo de areia. Erguido pela negativa, com o propósito de "travar a direita". Sem uma base parlamentar consistente, sem um só membro à esquerda do PS - mera emanação de 32% do eleitorado.
Bloco de Esquerda e Partido Comunista, que reivindicavam pertencer ao "arco governativo", optaram afinal por ficar de fora, na posição sempre cómoda de tentar ditar a táctica no conforto da bancada. E o secretário-geral do PCP nem se dignou comparecer na cerimónia de posse do Executivo, o que não deixa de ser sintomático sobre a frouxidão dos elos entre as diversas esquerdas. Em política, estes gestos contam muito.
Na sessão parlamentar de hoje já ficou patente como será difícil alcançar consensos em temas tão diversos como a supressão da sobretaxa do IRS, o descongelamento das pensões, a reposição integral dos cortes salariais na função pública, a legalização das barrigas de aluguer e a anulação das subconcessões nos transportes públicos urbanos em Lisboa e Porto.
Todas baixaram às comissões para debate suplementar. Questões adiadas, sem votação.
Auguro pouco de bom a este Governo, embora reconheça que integra personalidades com prestígio profissional, de perfil centrista e dotadas de inegável competência técnica.
Conheço vários dos novos ministros e secretários de Estado há anos suficientes para saber que farão o seu melhor e tenho estima pessoal por alguns. Mas os desafios que enfrentarão são imensos. Em várias frentes. E devem acautelar-se desde logo com o "fogo amigo".
Espero sinceramente estar enganado.
Desde logo porque qualquer governo deve sempre merecer uma expectativa benevolente dos cidadãos, tenham ou não votado nele. E também por sentir pouca vocação para engrossar o coro das cassandras. Jamais me congratularei com fracassos de um executivo, na medida em que isso também representa um fracasso do País.
Não desejo, de todo, ser mais um a proferir a fatídica frase "eu bem dizia..."
Mas olho para lá e só continuo a ver o tal castelo.
Se tinha dúvidas não aceitava a solução proposta e dizia-o logo, assumia-o, no limite até podia ter arranjado outra solução. Não podia era aceitar a solução que lhe foi oferecida e depois criticar a posse que ele próprio conferiu. Muito menos fazer ameaças veladas. No mesmo dia. Um fraco traído pelo seu próprio carácter. Não esteve à altura das circunstâncias, não soube honrar o seu destino, foi igual a si próprio, incapaz de disfarçar o azedume, incapaz de um gesto de elevação. Nisso foi coerente até ao fim.
A História não o absolverá porque não perderá tempo a julgá-lo.
Michel Giacometti e o Plano de Trabalho e Cultura - Serviço Cívico Estudantil
Bruxelas vigia de perto as contas portuguesas. As coisas são o que são.
Atente-se no gráfico sobre o investimento: até 2003, em Portugal investiu-se sempre mais do que na Irlanda - com muito piores resultados. Não interessa: há quem continue a ver o Estado como o principal dinamizador da economia. Repare-se também no gráfico sobre a despesa pública: após o disparo causado pelo salvamento dos bancos, a Irlanda centrou a correcção nos cortes de despesa e regressou a níveis inferiores a 40% do PIB. Portugal não atinge esse patamar desde a década de 1980; não atinge sequer um nível em torno dos 42% ou 43% - que já seria incrivelmente libertador para a economia - desde a de 1990. Não importa: há quem continue a defender que um Estado pesado não trava o desenvolvimento de uma economia débil. Veja-se o curioso gráfico acerca dos trabalhadores sindicalizados: com um modelo menos apoiado no sector público, a Irlanda consegue apresentar uma percentagem mais elevada. De somenos: o papel dos sindicatos é defender leis laborais rígidas e a manutenção de empresas deficitárias na esfera pública. Analise-se a taxa de mortalidade infantil (um dos justificados orgulhos de Portugal, que afinal a Troika não destruiu): parece que também pode ser garantida por um sistema de saúde em que o Estado chegou a despender anualmente menos 1,5% do PIB (conforme o gráfico sobre os gastos públicos com saúde). Que importa? Os números não dizem tudo; a saúde tem a ver com «pessoas». Mas, a propósito de pessoas, estude-se o gráfico sobre o coeficiente de Gini: com menos dinheiro público, a Irlanda criou uma sociedade mais igualitária (nota adicional: ao contrário do que afirmam muitas vozes, em Portugal não houve aumento da desigualdade com a chegada da Troika mas uma ligeira redução). Vergonhoso, fazer tal referência: o papel do Estado é apoiar quem precisa, sem olhar a custos. Notem-se ainda o saldo das contas públicas, o PIB per capita (indicador de produtividade e justificação de factores tão irrelevantes como o nível salarial), a taxa de desemprego, o nível da poupança (depauperado em Portugal e na Grécia pelo crédito barato e por estímulos públicos errados), o valor dos salários. Irrelevante, uma e outra vez: o modelo de desenvolvimento seguido em Portugal e na Grécia está correcto. Os problemas advêm do euro, da «austeridade» e da Alemanha.
Uma e outra vez, recusamos as evidências e cometemos os mesmos erros. Guterres sabia o que era necessário fazer mas desistiu antes de começar. Durão foi eleito prometendo fazê-lo mas fugiu quando isso se revelou difícil. Sócrates garantiu tudo e o seu oposto e só fez o oposto. Apenas Passos avançou realmente no sentido correcto. Timidamente. Com erros, constrangimentos (incluindo os gerados por facções dentro do PSD e CDS), adiamentos (fatais, num país de tamanha inércia). Enfrentando bloqueios constitucionais e níveis recordes de demagogia (por parte do PS, que levara o país à beira do abismo, mas também de inúmeras vozes com direito a tempo de antena). Obteve resultados ténues (tudo isto demora, exige paciência e capacidade de perseverança) mas encorajadores. Nos próximos meses, Costa e Centeno, agrilhoados às fantasias utópico-revolucionárias de Jerónimo, Catarina e Arménio, inverterão o ciclo. O sector público será novamente privilegiado à custa do privado. O investimento e o emprego (este muito em particular se a CGTP conseguir juntar o reforço da contratação colectiva e a limitação dos recibos verdes ao já programado aumento do salário mínimo) ressentir-se-ão. É verdade que, no imediato, haverá mais dinheiro disponível e tudo parecerá correr melhor. Depois, os problemas regressarão - mais graves, esgotada a acção do BCE e o capital de simpatia conseguido junto dos parceiros europeus, com os investidores cada vez menos predispostos a apostar num país que muda de ideias a cada governo e uma economia mundial que dificilmente escapará a uma crise (basta a FED subir as taxas de juro e os BRICs ressentir-se-ão).
Em Portugal - como na Grécia, como na maioria dos países da América Latina, como até em Itália e em França -, continua a acreditar-se que a riqueza é gerada através da despesa pública, da governação por decreto, da perseguição ao lucro. Acontece desta forma porque os cidadãos temem a mudança e porque dá jeito aos políticos que assim seja: um Estado leve, com menos a distribuir (empregos, contratos, obras, apoios), não liberta apenas a economia; liberta também os eleitores.
Treze gráficos. E podiam ser mais. Mas para quê? Em Portugal, poucos os querem ver, menos ainda os desejam perceber.
Continuar a viver - Índios da Meia Praia de António da Cunha Telles
"Foi indigitado na terça-feira o novo Primeiro-Ministro. Como olha para este Governo, resultante de uma maioria de esquerda no parlamento? Na ala direita houve quem falasse em golpe de estado...
Esses qualificativos são um disparate. Eu creio que que a PÀF [coligação Portugal à Frente] se bateu pela maioria absoluta, era indispensável ter a maioria absoluta. A coligação de listas conjuntas era um tiro de uma só bala. Ou se tinha a maioria absoluta, e se ganhava, ou não se tinha, e se perdia. E não se conseguiu e perdeu-se. Tem havido grandes discussões sobre o funcionamento da Constituição: "criou-se um precedente gravíssimo, a direita não poderá governar sem ter maioria absoluta". Sempre foi assim. Esta legislatura teve algumas coisas que são completamente novas e que não tinham acontecido. O PSD é o maior grupo parlamentar e a PÀF não tem maioria parlamentar. Nunca tinha acontecido que o partido mais votado não tivesse uma maioria no seu campo, ou à direita ou à esquerda, e isso aconteceu. E aconteceu existir uma maioria de esquerda e o partido líder de uma maioria de esquerda não ser o partido mais votado, também nunca tinha acontecido. É uma coisa que é frequente noutros países. Fartamo-nos de ver isso na Bélgica, na Dinamarca. Um Governo ser liderado não pelo partido mais votado, mas pelo segundo. Mas, de facto, era evidente na noite das eleições que, havendo uma maioria de esquerda, que havia uma possibilidade de se entenderem para formar Governo e foi isso que aconteceu. Eu acho que é perfeitamente normal que isto acontecesse, anda aí uma grande perturbação de ânimos quanto a isso. Acho, todavia, que tem uma legitimidade questionável. Eu não vou dizer que é ilegítimo. É um Governo perfeitamente legítimo, só que tem uma componente política que é nova e de que ninguém estava à espera. Sou completamente contra governos de gestão, o Governo de Passos Coelho caiu no Parlamento, acho que Cavaco Silva fez bem em designar Primeiro-Ministro o líder do segundo maior partido. Nem podia ter sido feito de outra maneira: nós temos um país democrático, temos um Parlamento a funcionar, o Parlamento exerceu as suas prerrogativas constitucionais. Concordemos ou não concordemos, rejeitou a investidura do Governo, há uma maioria parlamentar que oferece uma outra solução de Governo, tem que se seguir. Depois é uma questão da legislatura poder ser abreviada, e termos eleições antecipadas, que se realizariam em fim de Maio ou Junho, na melhor das hipóteses, e isso é que eu acho que um candidato presidencial devia dizer. Há aqui um fenómeno que cria instabilidade, que cria incerteza, que cria falta de cooperação parlamentar entre os partidos, porque a PÀF sente-se desrespeitada, diz que não colabora e está numa atitude de grande confrontação, e portanto devemos ouvir o soberano. O soberano é o povo. Se se mantiver a situação deteriorada, irmos para novas eleições. Essa é a solução que eu daria. Acho que este debate político que aqueceu o nosso dia-a-dia devia ser canalizado para as eleições presidenciais, porque é o Presidente que viermos a eleger que tem uma palavra a dizer sobre isso."
Não superando a falta que nos irá fazer no Parlamento, a excelente entrevista que José Ribeiro e Castro deu ao Ponto Final poderá, mais logo, ser lida (e relida) na íntegra aqui.
Eles não assinalaram o aniversário, mas merecem os parabéns à mesma: o blogue Causa Nossa completou 12 anos no dia 22. E acaba de fornecer uma ministra ao novo Governo: Maria Manuel Leitão Marques.
Parabéns também ao 31 da Armada, que hoje festeja o nono aniversário. No dia em que se celebram 40 anos de uma data muito especial para os democratas portugueses.
Ontem alguém me disse que o ciclo comemorativo da democracia portuguesa se "esgotava" neste 25 de Novembro - o Termidor de 19 meses de processo revolucionário, selado faz hoje 40 anos no confronto do quartel da Ajuda entre os comandos vitoriosos de Jaime Neves e a Polícia Militar ultra-esquerdista encabeçada por Cuco Rosa e Mário Tomé. Com a região de Lisboa em estado de sítio, que implicou o recolher obrigatório nocturno e impediu a circulação de jornais durante vários dias.
Pelo contrário, 2016 será um ano de grandes e gratas comemorações. Todas assinalam as quatro décadas de implantação da democracia representativa no nosso país. Com sete efemérides políticas que merecem ser recordadas:
2 de Abril de 1976 - Aprovação da Constituição da República Portuguesa pela Assembleia Constituinte, apenas com o voto contra do CDS liderado por Diogo Freitas do Amaral.
25 de Abril de 1976 - Eleição do primeiro parlamento genuinamente representativo da população portuguesa, por voto directo, secreto e universal, com o PS e o PPD (futuro PSD) como partidos mais votados.
27 de Junho de 1976 - Primeira eleição presidencial por voto secreto, directo e universal da história de Portugal, com a vitória do general Ramalho Eanes (61,6%, com quase três milhões de votos).
27 de Junho de 1976 - Eleição do primeiro parlamento autónomo da Madeira (com vitória do PPD), concretizando o poder legislativo regional consagrado na nova lei fundamental do País.
27 de Junho de 1976 - Os açorianos foram pela primeira vez às urnas para elegerem os seus representantes no parlamento insular, consagrando assim a autonomia regional prevista na Constituição.
23 de Julho de 1976 - Tomada de posse do I Governo Constitucional, tendo Mário Soares como primeiro-ministro, na sequência das legislativas que atribuíram a vitória eleitoral ao PS (com 34,9% dos votos).
12 de Dezembro de 1976 - Primeiras eleições autárquicas em Portugal, que permitiram lançar os alicerces do poder local e a descentralização das estruturas de decisão política no País.
Não devemos esquecer estas datas, apesar de serem muito pouco evocadas pelos cultores de emoções fortes na política. Todas permitiram dar expressão concreta à democracia portuguesa - o pior dos sistemas, com excepção de todos os outros.
Onde se esconde a dor; o caminho é desconhecido; o outro irmão também é central; não gostar é uma imposição; a mãezinha entra ao barulho; há uma liga de mães;
O olhar dela seria inesquecível se Jaime fosse esse tipo de homem. Não era. A insensibilidade podia ser uma acusação demasiado leviana, excessiva. Ele era comedido e tinha aprendido a isolar os episódios da vida, obrigara-se a uma memória selectiva. Não queria recordar os olhares de Carmen na dor, da mesma forma que não queria saber de certas coisas da mãe. Ou de Paulo.
Paulo deixou-se guiar pela cidade. Pouco importava onde fossem tomar o tal copo, não tinha nada para dizer a Carmen, porém estava satisfeito por estar ali. Sendo uma sensação quase inexplicável, era o caso: satisfeito. Odiava festas, não entendia a razão pela qual a Carlota estava tão desvanecida com o outro tipo, o tal de Martim, e foi isso que disse
Quem era aquele tipo? Armado aos cágados...
É o meu irmão.
Ah, desculpa.
Não peças. Se ele fosse só um homem com manias era mais simples, mas não é. É maquiavélico.
Como assim?
Paulo podia mostrar-se interessado, afinal era uma das suas técnicas de eleição, essencial para a sua vida profissional. Carmen não se fez rogada e, enquanto acelerava pela avenida mais larga de Lisboa, contou o que lhe ocorreu sobre Martim.
Podia ser boa pessoa. Nunca foi. Mesmo em pequeno sempre foi mau.
E Paulo ouviu, com mais atenção do que seria de esperar, os pequenos dramas da família de Carmen. O amor pela avó, a incompreensão da mãe, a rigidez do pai, o facto de Martim ter escapado a todas as ameaças paternas, castigos e rupturas.
Ele faz o que quer e, porque o mundo não é justo, tem sucesso. É um filho da puta com sucesso.
Não gostas mesmo do teu irmão.
Paulo, não gosto do meu irmão, já não gosto do teu irmão e também não gosto de ti.
Paulo sorriu. Carmen tinha qualquer coisa. Não era só a miúda da província com meia dúzia de traumas familiares, com necessidade de vingar para estar no jogo de competição com Martim, o irmão. Ela negaria. A vida não é um jogo, diziam-lhe os seus pacientes. Paulo estava convicto do contrário desde sempre. Culpa de quem? De Laura, é evidente, a mãe seria sempre o começo de tudo. Para Carmen, a mãe não parecia ser um problema e, por isso, perguntou
E da tua mãe, gostas?
Carmen olhou-o de lado, um nano segundo, sempre concentrada na estrada. Se amava a mãe? Se gostava dela? Se a admirava? Decidiu responder com honestidade
Respeito a minha mãe. É tudo o que posso fazer.
Respeitar já é muito.
Achas? Não sei, Paulo. A vossa mãe pertence a uma liga diferente da minha. Acredita no que te digo.
Não tenho a menor dúvida.