O meu pai era um homem de hábitos. As suas rotinas eram cultivadas com cuidados de jardineiro e nem as férias lhe alteravam o seu modo de vida circular, feito de perpétuos regressos. De manhã, praia, à tarde mata, à noite a esplanada no centro da vila. Parava no mesmo café, de preferência sentado à mesma mesa, para ser atendido pelo empregado do costume e sempre, sempre na Caparica, a praia da sua vida, que conheceu eram os dois tão novos. Ele ainda com a barba mal semeada, ela também uma mocinha púbere, de beleza selvagem, com dunas a perder de vista e uma mata cerrada onde consta que os foragidos da cadeia da Trafaria se iam esconder para nunca mais serem vistos.
O seu conservadorismo extremo exasperava-me, o amor pela rotina confundia-me. Mas como tantas vezes acontece com os filhos, nem sequer tentava percebê-lo. Gostava de coleccionar tudo: moedas, selos, canetas, isqueiros, agendas, cinzeiros, búzios, caixas de fósforos, canivetes, porta-chaves, canecas, miniaturas de monumentos, postais. Sim, era um exagero. Aquele prazer em ter revelava um Tio Patinhas obcecado não por dinheiro, mas pelo acto de colectar em si mesmo. Como se tivesse medo que algo lhe fugisse, que as coisas lhe fugissem.
Infantilizou-me. Em vez de me emendar, esforçava-se para que eu perpetuasse os disparates que dizia em pequena. Fez o mesmo com os netos. Era uma forma de nos reter, de iludir a passagem do tempo para continuar a ter-nos como só se têm as crianças.
Quando eu viajava, sofria. E se o avião caísse? E se o mundo me tragasse? Não percebia a minha paixão por viagens. Dizia que para viajar bastava-lhe passar os olhos pela colecção de postais. Numa ocasião regressou mais cedo de uma viagem de serviço a Paris, que não conhecia, só porque estava de chuva e não tinha levado chapéu. Um excêntrico, o meu pai.
Tinha cinco anos quando o meteram num navio. Fez Luanda-Lisboa na companhia de uma estranha. Nesse tempo não se tentava explicar nada às crianças. Deixou para trás os pais, os irmãos e a terra onde nascera sem perceber o que se estava a passar. Havia uma razão plausível, mas não a conheceu em tempo útil.
Foi esta a sua viagem inaugural. Dos cafezais a perder de vista para um apartamento do bairro das colónias, em Lisboa. Só voltaria a ver os pais aos 18 anos e Angola muito mais tarde, já adulto.
Nunca me falou, nunca falava disto, soube-o pela minha mãe. Há cinco anos, quando um avc lhe fez as malas e lhe deu uma guia de marcha para não mais voltar, na consulta da urgência, quando lhe perguntaram "onde mora?", respondeu: "No Uíge".
Faria este mês 87 anos.