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A tia Elisa era, na família da minha mãe, uma espécie de Fernando Pessa: nunca ninguém a conheceu com menos de 80 anos. Leve e delicada, cresceu num convento e foi aí que aprendeu a importância do ponto certo do rebuçado.
Vivia no alto alentejo, lá para as bandas de Portalegre, de onde todas as costelas da minha mãe são oriundas.
Um dia a tia Catarina (mulher do seu sobrinho Manel) pediu-lhe ajuda para dar conta de uma remessa de marmelos. Descascaram-se oito quilos, cortaram-se em pedaços uniformes e deixaram-se a cozer no grande caldeirão de cobre da velha cozinha alentejana.
Antecipava-se, para o dia seguinte, a laboriosa operação de os desfazer em marmelada.
Só que, por uma imprevisibilidade do destino, quis Nosso Senhor que o tio Manel exalasse o último suspiro nessa noite, no conforto do seu leito.
De manhã a tia Catarina deu conta da tragédia e mandou chamar a tia Elisa. Enquanto preparava as cerimónias fúnebres, que seriam realizadas em casa, deu-lhe instruções precisas para não deixar que os marmelos se arruinassem.
A Tia Elisa ainda a tentou dissuadir, mas deixar estragar oito quilos de marmelos era coisa que estava fora de cogitação naquela família. De maneira que, vendo a sobrinha irredutível, toca de lançar para o caldeirão os oito quilos de açúcar que a receita exigia.
Só que era preciso ficar ali a dar à colher de pau e convenhamos que a tia Elisa, que devia andar pelos oitenta e cinco, já não tinha propriamente o vigor dos verdes anos.
Às tantas, a viúva resolve deixar por breves momentos a câmara ardente e dar um salto à cozinha para ver em que ponto andava a marmelada. Deu com a pobre da tia Elisa à beira das lágrimas, queixando-se de dores no braço: “Ai filha, tem paciência, que eu não consigo dar conta disto”. A tia Catarina ia tendo um treco. Que se deitassem fora os marmelos ainda ia, agora os oito quilos de açúcar, é que nem pensar.
Arregaçou as mangas, agarrou na colher de pau e, com as suas próprias mãos lançou-se à empreitada.
De quando em quando aparecia uma sobrinha na cozinha a tentar chamá-la à razão “ó tia, venha descansar um bocadinho, deixe lá a marmelada”. E a tia Catarina, sem tirar os olhos do caldeirão, resmungava “deixem-me sossegada, já aconteceu hoje uma desgraça nesta casa, era só o que faltava acontecer outra”.
Reza a história que a marmelada ficou pronta e que o enterro do tio Manel lá decorreu sem mais incidentes.
Passados dez anos casou-se a tia Lacas, a irmã mais nova da minha mãe. Os meus pais sabiam que a tia Elisa, na altura com uns 95 anos, fazia gosto em vir a Lisboa ao casamento e resolveram ir buscá-la a Portalegre.
Apresentou-se no seu modo discreto, carregando um grande saco. A minha mãe simpaticamente perguntou-lhe: “então tia, esteve a fazer doces para o casamento?”. A tia, com o ar envergonhado de quem já não consegue dar conta do recado, respondeu-lhe baixinho: “não filha, só levo uns rebuçadinhos de ovos. Fiz quatrocentos.”
O Senhor Adriano tem poucas coisas. Diz ele. Vende o vinho que faz lá atrás, num anexo que não tem nome, não é adega, nem lagar, nem casa de arrumos, serve para o que for. Depende da altura do ano. O Senhor Adriano gosta de conversar, em especial com o Pirolas, o cão minúsculo e nervoso que anda sempre a rondar. Diz-me
"Sabe, o Pirolas também gosta de uma pinga de vinho. Quer experimentar?"
O homem, vizinho por circunstâncias especiais, estadia que se prevê de curta duração, sorri e encolhe os ombros. É o mesmo que dizer
"Vamos lá a isso."
«A vitória do Syriza é a vitória da democracia. Hoje vira-se uma página na Europa. Hoje começa-se a colocar a austeridade no caixote do lixo.»
Catarina Martins (25 de Janeiro de 2015)
Continuamos a assistir a um teatro elaborado, com final previsível. As negociações arrastam-se sem resultados palpáveis e os negociadores gregos fazem afirmações contraditórias ou francamente deselegantes. O facto é que a Grécia está cada vez mais próxima do incumprimento. Este artigo de Vital Moreira é um texto de rara lucidez, para mais publicado num contexto onde é difícil manifestar este tipo de opinião. “O Governo grego ameaça que se entrar em bancarrota será uma catástrofe para a Grécia mas também o princípio do fim da união monetária”, escreve o autor, para concluir desta forma lapidar: “É tempo de pôr termo a esta chantagem. O que ameaça a estabilidade, a credibilidade e a integridade da união monetária é manter a todo o custo países que se recusam a cumprir as regras”.
A última frase vai ao âmago da questão. A Grécia entra em bancarrota se continuar a recusar as medidas exigidas pelos credores, sem as quais Atenas continuará eternamente a pedir mais dinheiro emprestado. Todas as ajudas dentro da união monetária estão agora ligadas a reformas no país endividado e ao cumprimento do Tratado Orçamental. No entanto, não havendo união política, os membros da zona euro não têm incentivo para cumprir o Tratado, pois podem entrar em processos negociais semelhantes ao que o Syriza tenta fazer, após enganar o seu eleitorado e usando chantagem para evitar cedências, na expectativa arriscada de conseguir no final o dinheiro de que necessita.
Estando tudo ligado, a irresponsabilidade de um país arrasta todos os outros, mas a bancarrota da Grécia pode acabar com esta deficiência da zona euro, pois passa a existir punição concreta para quem não cumprir as regras: a saída pura e simples. Este Grexit parece ser do interesse do partido que comanda o governo grego, pois o programa radical que o elegeu só pode ser cumprido verdadeiramente se a Grécia desvalorizar a moeda e introduzir controlo de capitais. Os europeus parecem igualmente dispostos a fazer a experiência, pois a punição dos mercados será no futuro mais do que suficiente para impedir o endividamento excessivo de países membros. Se tudo isto se confirmar, Portugal não terá qualquer margem de tolerância para aventuras orçamentais.
João Soares
Transporta a política nos genes: teve um avô ministro, a mãe foi deputada constituinte, o pai chegou duas vezes a primeiro-ministro e ocupou durante uma década o Palácio de Belém. Privilégio por um lado, mas também um pesado fardo: por mais que faça, será sempre comparado desfavoravelmente com Mário Soares, protagonista de circunstâncias históricas excepcionais e, portanto, irrepetíveis.
Mas João Barroso Soares - 65 anos, signo Virgem - foi um dos melhores presidentes da câmara de Lisboa: bastou-lhe ter posto fim ao decrépito Casal Ventoso, miserável chaga a céu aberto na capital de outrora, para lhe valer um lugar de relevo na galeria dos alcaides alfacinhas.
Opositor muito jovem à ditadura, sem transitar pela extrema-esquerda, é um social-democrata da velha guarda, admirador de Clement Attlee, Willy Brandt e Olof Palme - todos ideologicamente apedrejados noutras eras pelo pecado de serem "reformistas" à luz do esquerdismo dominante nos circuitos intelectuais. Hoje nenhum deles seria bem visto na Comissão Europeia presidida por Jean-Claude Juncker, mesmo respeitando o rigoroso dress code da agremiação, que não tolera políticos sem gravata.
Durante décadas foi considerado júnior. Agora que é sénior, João Soares continua demasiado novo para escrever memórias após ter sido autarca, eurodeputado e um dos mais viajados parlamentares da Assembleia da República - sem o menor receio de andar de avião, apesar de quase ter perdido a vida num grave acidente aéreo no sul de Angola.
Poderá ser ele o candidato presidencial que tantos socialistas reclamam? O seu amigo Manuel Alegre é capaz de incentivá-lo com versos de um poema intitulado "Bairro Ocidental", inserido no novíssimo livro com o mesmo nome: "Na Eurolândia tudo é permitido / bruxela-se um país berlina-se outro / um dia ao acordares estás eurodido / e o teu país efemizado é só um couto."
Prós - Nunca foi apoiante de José Sócrates e até concorreu contra ele, com manifesto insucesso, numa eleição interna do PS. Os monárquicos veriam com bons olhos esta sucessão dinástica: depois dos Bragança, os Soares. Alegre dedicar-lhe-ia em rigoroso exclusivo outra quadra, talvez assim: "Quem já foi feliz em princípio / na Praça do Município / poderá sê-lo também / no Palácio de Belém."
Contras - Perdeu contendas autárquicas contra Santana Lopes (em Lisboa) e Fernando Seara (em Sintra): é uma péssima carta de recomendação. Nas cimeiras lusófonas, José Eduardo dos Santos evitaria cumprimentar este "tuga" que tomou partido contra o MPLA no conflito angolano e até tem um filho chamado Jonas, em homenagem ao desaparecido líder da Unita. O pai Mário torceria o nariz a esta candidatura: acha o filho excessivamente moderado.
Quem é que anda por aí a despachar velhas G3 - velhas mas operacionais - para o Sudão do Sul? Bom, não estou à espera que alguém ponha o dedo no ar, mas que elas apareceram lá, apareceram. Foram descobertas no fim do ano passado pela UNMISS, a missão da ONU no país, mas escaparam aos média aqui. A denúncia está no Jirenna, blogue do jornalista e missionário José Vieira, com oito anos passados na jovem república, há 18 em guerra civil. Foi postada ontem, com o título G3 portuguesas matam no Sudão do Sul, e remete para factos com datas frescas. Cálculos por alto apontam para pelo menos 50 mil mortos no conflito. O papel de Portugal no comércio mundial de armamento é notícia antiga. Sabemos é pouco sobre ele. Talvez as provas encontradas agora, relatadas pela Small Arms Survey, sirvam para alguma coisa. Na segunda foto são nítidas as letras FMP - Fábrica Militar Portuguesa. Que tal se a Comissão de Direitos, Liberdades e Garantias se debruçasse um pouco sobre o caso?
O meu filho e eu chamávamos-lhe professor. E o professor chamava ao meu filho Root. Porque tinha o alto do crânio tão direito como o símbolo da raíz quadrada".
(Yoko Ogawa, em A Magia dos Números)
Com o passar do tempo, os góticos tornam-se barrocos.
Sonhos de uma Rapariga Quase Normal, de Rita Redshoes
Confissões
(edição Guerra & Paz, 2015)
"A presente edição não segue a grafia do novo acordo ortográfico"
«A vitória do Syriza poderá ter consequências muito positivas para a Europa - sobretudo nos países do Sul da Europa submetidos aos ditames da Europa do Norte. Será uma viragem difícil mas indispensável para os povos reconquistarem a sua soberania democrática - e tomarem nas suas mãos o seu futuro e o seu destino, em liberdade.»
Alfredo Barroso, no i (23 de Janeiro de 2015)
A versão vegetariana do Macho Alfa é o Homem Alfafa.
Plutarco: Vida de Sólon (Vidas Paralelas)
Há uns 2600 anos (tanto assim? Como o tempo passa), já havia em Atenas sérios problemas de endividamento. Flagelados por um sem-número de contrariedades, muitos cidadãos não conseguiam pagar luxos como cereais e coisas assim, e viam-se reduzidos pelos seus credores à condição de escravos.
Temendo os episódios sanguinolentos e, sobretudo, as competições de lira que sempre acompanhavam os períodos de ruptura na Grécia antiga, os atenienses, pobres como ricos, concordaram em pedir a Sólon (um dos sete sábios da antiguidade – à data ele ainda não havia ganho o concurso, mas os conterrâneos tiveram olho) para reformar as leis da cidade e restaurar a periclitante paz social.
Sólon aceitou, mas impôs letras pequeninas: por um período de dez anos, nem um iota das suas leis poderia ser alterado sem que antes lhe fosse solicitado um parecer. Os atenienses acolheram a cláusula com um encolher de ombros (o parecer era de graça, hoje isso não aconteceria) e pelas costas riram-se muito e disseram que ele era um narigudo picuinhas, mas com carinho.
O legislador pôs mãos à obra e substituiu a maior parte das leis de Draco, que condenavam um grego à morte por cortar uma unha, mesmo que fosse sua, por outras menos, enfim, draconianas. Criou novas classes de censo baseadas na capacidade de produção agrícola e já não no nascimento; proibiu a escravidão por dívidas; por fim (a inovação foi aqui, preste atenção a este precedente histórico), anulou todas as dívidas existentes à data – quem devia alguma coisa ficou a dever coisa nenhuma.
Os cidadãos escravizados foram libertados e ficaram contentes. As grandes famílias da aristocracia perderam privilégios e ficaram possessas. Os pobres queriam mais direitos políticos e ficaram chateados. Os ricos ficaram um pouco menos ricos – e furiosos.
Então Sólon desligou o telemóvel e viajou para parte incerta por um período de dez anos.
Ana Drago
Um Presidente da República não tem que ser um senhor já grisalho, de pose senatorial, sobrolho franzido e gesto circunspecto. A regeneração republicana que tantos defendem poderá passar por alguém com um rosto fresco, capaz de trazer efectiva novidade à cena política e mobilizar a enorme massa de abstencionistas, em grande parte composta por eleitores com idade inferior a 35 anos - muitos dos quais nunca exerceram o direito de voto que tão duramente a geração anterior conquistou.
Experiência política, currículo académico, sólida formação intelectual, sensibilidade apurada para as questões sociais: eis atributos que não faltam a Ana Drago, que na corrida a Belém poderia dar voz à corrente jovem, aparentemente tão alheada dos mecanismos da democracia representativa.
Esta socióloga algarvia, nascida há 39 anos sob o signo Virgem em Vila Real de Santo António, com raízes aristocráticas locais, começou a tornar-se conhecida em 2000, ainda com cara de menina, num programa da RTP ao lado do psiquiatra Daniel Sampaio e do jornalista Luís Osório. O programa chamava-se Conversa Privada mas não tardou a transformar em figura pública esta miúda franzina que então usava óculos e já tinha uma espantosa capacidade de expressão verbal.
A miúda tornou-se graúda, ma non troppo. E graduou-se como parlamentar qualificada, em duas legislaturas, na primeira fila do Bloco de Esquerda, de que foi dirigente nacional. A ala mais moderada do BE apostou nela como sucessora de Francisco Louçã. Ganhou Catarina Martins, actriz, e ela ficou para trás. Recuou a tal ponto que acabou por abandonar o partido, hoje Bloco só no nome. Com esta baixa o BE perdeu mais que ela.
Prós - É uma das vozes mais moderadas da chamada esquerda radical, capaz de falar sem recorrer a nenhum dos típicos chavões desta área política. Seria a mais jovem candidata de sempre a Belém, mas convém não esquecer que Ramalho Eanes era pouco mais velho - tinha apenas 41 anos - quando assumiu a Presidência, em Julho de 1976. Daria conteúdo prático ao imaginativo título de um livro que escreveu sobre o movimento estudantil anti-propinas em ela participou na década de 90: Agitar Antes de Ousar.
Contras - O apelido dela, conotado com dragões, é pouco apelativo para leões e águias. A dupla cisão bloquista em que milita - Livre/Tempo de Avançar - goza de boa imprensa mas quase ninguém percebeu ainda muito bem o que é fora do eixo alfacinha Chiado-Príncipe Real. Conserva um ar juvenil: ninguém diria que está quase a apagar 40 velas do bolo de aniversário, algo que só numa candidatura presidencial pode ser defeito.
"She rested her head against his and felt, for the first time, what she would often feel with him: a self-affection. He made her like herself."
(Chimamanda Ngozi Adichie, in Americanah)
Deixa-te vestir de escuridão apenas para fora e ninguém verá que brilhas, podes tudo, pensa devagar, pensa depressa. Faz por dentro e mantém os gestos banais que te garantem o lugar no grupo, na dinâmica de grupo que brada pelo direito à diferença, mas que não tolera o que é impossível de descodificar. Constrói em ti sem ninguém ver. Aprende o sabor das palavras, uma a uma, cada letra com o seu sabor e, antes de dizeres em concordância com o mundo o que é suposto, ou apenas político e correto, invade-te com a verdade que ninguém entenderá. Importa pouco o que o mundo quer que sejas, sê para ti e tudo se tornará mais fácil. Brilha por dentro. Cá fora faz frio. Acredita em mim.
Estive mesmo para intitular este post como "Sobre a mania de criticar". Porém, considero que não é uma mania mas sim uma arte.
A crítica está-nos no sangue, precisamos dela como do ar que respiramos. Não tem grande importância o alvo da nossa crítica, desde que a prática da mesma possa ser efectuada. Criticamos tudo e mais alguma coisa, os dias cinzentos, o calor excessivo, as filas de trânsito, tanto se vamos para o trabalho como para a praia, os impostos, o Governo, os políticos, a polícia, os bombeiros, os médicos, os advogados, os professores, os comentadores, os padres, os vizinhos, a família e tudo o que se cruzar no nosso caminho. A mania ou arte de criticar são uma forma de expressão, até porque existe mesmo a profissão dos críticos, que se desdobra em inúmeras vertentes normalmente ligadas às artes, como a literatura, a pintura e o cinema, o que enaltece a actividade.
De certo modo, todos nós de uma maneira ou doutra, temos este dom da crítica mesmo que não o usemos como profissão. É mais como um hobby, um veículo que nos distrai dos verdadeiros problemas para nos ocupar a mente com a panóplia de pensamentos vãos e ligeiros, que nos divertem os neurónios enquanto passamos por tempo precioso das nossas vidas.
É o que estou a fazer neste momento, a criticar a própria crítica, na tentativa de eu mesma reflectir sobre a real pertinência desta tarefa, que ao invés de me elevar só me faz mergulhar no lodo dos tormentos que afligem a alma dos pobres de espírito. Pelo menos, enquanto o faço, treino o músculo criativo e faço o meu exercício diário de escrita.
Que tudo o que façamos tenha um propósito. É simples, poderoso e cria mudanças significativas ao nível do bem estar. Da próxima vez que quiser criticar algo ou alguém responda a esta questão: "- O que é eu ganho com isto?"