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A sociedade do risco é também a sociedade da responsabilidade e da consciência individual. A Europa não é um risco, é uma opção.
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A sociedade do risco é também a sociedade da responsabilidade e da consciência individual. A Europa não é um risco, é uma opção.
Tinha prometido começar a fumar em 2015. A verdade é que acabo de perguntar o preço do tabaco e não, não posso.
DERROCADA DO GRUPO ESPÍRITO SANTO
O facto nacional do ano - e talvez até da década - foi, para uma clara maioria de membros do DELITO DE OPINIÃO (15 em 26), a derrocada do Grupo Espírito Santo, que tinha Ricardo Salgado como figura de referência. Um facto que representou também o fim da última dinastia familiar na área financeira em Portugal.
Formalizada a 18 de Julho de 2014, a insolvência do GES - que foi notícia um pouco por todo o mundo - abalou não só a banca portuguesa mas também grande parte do tecido empresarial do País, na medida em que o Banco Espírito Santo era o maior financiador das pequenas e médias empresas portuguesas.
O "buraco" superior a mil milhões de euros detectado nas contas do Grupo - que em 2011 havia recusado um empréstimo posto à disposição da banca portuguesa no âmbito da assistência de emergência ao País - forçou a intervenção do Banco de Portugal, que dividiu os activos financeiros do GES em "banco mau" e "banco bom", dando este origem ao Novo Banco, entretanto posto à venda perante o aparente interesse de 17 potenciais compradores.
O caso deu origem a um megaprocesso judicial e a uma comissão parlamentar de inquérito que decorrerá pelo menos ao longo do primeiro trimestre de 2015 na Assembleia da República. Nunca os portugueses acompanharam com tanto interesse um caso ligado à alta finança - na certeza de nos dizer respeito um pouco a todos nós.
O segundo facto mais votado do ano, embora a larga distância do primeiro (quatro votos), foi a detenção do ex-primeiro-ministro José Sócrates, que irá prolongar-se por 2015. Em terceiro lugar (três votos), a saída da troika e o fim do programa de assistência financeira externa a Portugal.
Houve ainda dois votos na justiça, sem especificação de casos, e votos isolados distribuídos pela mudança de secretário-geral no PS e o aparecimento do jornal digital Observador.
Facto nacional de 2010: crise financeira
Facto nacional de 2011: chegada da troika a Portugal
Facto nacional de 2013: crise política de Julho
Isto é, está mais que provada a transferência reiterada de fundos de Carlos Santos Silva para José Sócrates.
Isto é, não foi pouco. Foi muito.
A prisão preventiva numa democracia liberal. De Luís Aguiar-Conraria, n' A Destreza das Dúvidas.
Acabou a corrupção em Portugal. De António Fernando Nabais, no Aventar.
Heranças, preconceitos e ideologias. De Paulo Guilherme Trigo Prudêncio, no Correntes.
O que é que a Marisa tem na cabeça? De Paulo Pinto, na Jugular.
DN. Do Pedro Rolo Duarte.
Natautau é todolos dias. De Alexandra G, no Imprecisões.
Cuba libre? Do João Pedro Pimenta, n' A Ágora.
Uma esperança para a Europa. Do Mr. Brown, n' Os Comediantes.
Avançar através de dunas movediças. Do João Gonçalves, no Portugal dos Pequeninos.
Debaixo da Pele, de Jonathan Glazer.
O livro de Michel Faber no qual o filme se baseia é excelente. Foi editado em Portugal pela Difel há cerca de uma dúzia de anos e fez-me ler quase tudo o resto escrito por Faber: as novelas The Courage Consort e The Hundred and Ninety-Nine Steps, a recolha de contos The Fahrenheit Twins e o gigantesco romance The Crimson Petal and the White, um Dickens pós-moderno com a linguagem e o sexo que os tempos de Dickens não autorizavam, convertido em honorável mas não excepcional mini-série pela BBC. (Faber publicou um novo romance, The Book of Strange New Things, há cerca de 3 meses mas ainda não o li.)
Se Debaixo da Pele e The Crimson Petal and the White revelavam uma fraqueza em Faber era a dificuldade em encontrar finais à altura do que os precedera. Debaixo da Pele, o filme, não sofre desse mal. Mas é bastante diferente do livro e, no início, isso constituiu um problema. Assistir a adaptações cinematográficas pouco fiéis de livros que se apreciaram é complicado. Glazer transferiu a maioria da acção das highlands escocesas para ruas citadinas. Eliminou as explicações (ainda que Faber também tenha deixado muito à imaginação). Eliminou grande parte de diálogo. Eliminou a terminologia, incluindo os nomes dos alienígenas (à la Anthony Burgess em A Laranja Mecânica, Faber inventou parte de uma linguagem, de que relembro – não tenho o livro comigo – vodsel para «humano», vodissin para «carne humana» e Isserly para o nome da protagonista). Debaixo da Pele, o filme, é abstracto e exigente. Acompanha os passos de uma alienígena (uso «ela» embora não faça muito sentido atribuir-lhe um género só porque assumiu a forma de Scarlett Johanssen) que, transmutada em fêmea humana (atraente mas com um corpo onde algo parece sempre ligeiramente deformado - o que, em tempos de operações plásticas e «correcções» digitais, só o torma mais real), percorre as ruas ao volante de uma carrinha em busca de homens cujo desaparecimento não suscite atenções. A finalidade permanece pouco clara (o livro é muito mais explícito) mas a forma como os domina é uma tremenda metáfora visual para o modo como os homens (os «machos» talvez fosse mais exacto) esquecem tudo o resto perante a promessa de sexo. Debaixo da Pele tem uma Johanssen que não era assim tão sublime desde Lost in Translation mas também tem poucas palavras, pouca acção, imagens estranhas (nas quais a música minimalista e inquietante criada por Mica Levi, dos Micachu & The Shapes, encaixa de forma brilhante), movimentos de câmara ponderados, sem um milímetro de exagero. Houve quem mencionasse Kubrick e existem de facto pontos em comum entre este universo e o de 2001 ou The Shining (também Laranja Mecânica, mas menos). A câmara, os silêncios, o uso da música, a recusa em dar explicações claras. A metafísica do que constitui um ser humano.
Vi Debaixo da Pele em casa mas trata-se de um filme a ver no cinema. Torna-se necessário manter disponibilidade total. Persistir. Entrar no ritmo. Aprender a perceber a alienígena à medida que ela, indiferente e maquinal no início, vai ficando intrigada pela espécie humana. Pela sua (nossa) fragilidade. Pelas suas (nossas) motivações e contradições. Pelos comportamentos e pelas injustiças que advêm das diferenças morfológicas (e, mais especificamente, da dicotomia beleza/fealdade), que se percebe no final não existirem no mundo dela. Pela capacidade para amar e odiar.
Os últimos vinte minutos, quase sem diálogo, são assombrosos. A alienígena corta com o seu mundo e tenta perceber o nosso. Está completamente impreparada para o conseguir e, no entanto, de certa forma vai consegui-lo. Vai perceber que uma das características humanas mais fortes é a aleatoriedade dos comportamentos, mesmo quando nascidos de impulsos similares (neste caso – como tantas vezes –, de índole sexual). Que um ser desamparado e estranho tanto pode encontrar a bondade (a qual, ainda assim, traz consequências) como a violência. Assistir a Debaixo da Pele é como ver um animal selvagem ganhar progressivamente consciência. E pagar o preço inevitável.
Nota: João Campos escreveu sobre o filme aqui no Delito em Maio passado.
PAPA FRANCISCO
Pelo segundo ano consecutivo, o líder espiritual do mundo católico foi escolhido pelo DELITO DE OPINIÃO como Figura Internacional de maior destaque.
Com índices de popularidade cada vez mais elevados um pouco por todos os continentes, mesmo junto de quem não comunga da fé cristã, o Papa Francisco manteve-se em foco a propósito de vários temas. Rezou pelas vítimas da violência em Jerusalém. Orou ao lado de clérigos muçulmanos na Mesquita Azul, em Istambul. E recebeu nos Jardins do Vaticano, também para uma oração pela paz, os presidentes de Israel e da Autoridade Palestiniana.
Já perto do fim do ano, dirigiu uma mensagem crítica à Cúria Romana que mereceu repercussão universal. Nessa mensagem, denunciou as "quinze doenças" de que padece o corpo eclesiástico do Vaticano, com destaque para aquilo a que Francisco chama "Alzheimer espiritual" - a perda da memória de Deus, sacrificado à idolatria mundana.
O Sumo Pontífice teve também uma intervenção decisiva no desbloqueamento das relações entre os Estados Unidos e Cuba, congeladas desde 1960. Um facto reconhecido, em simultâneo, pelos presidentes Barack Obama e Raúl Castro, que agradeceram o esforço mediador do Papa.
A segunda figura internacional do ano mais votada foi o presidente russo, Vladimir Putin, que em Março esteve em foco ao anexar a península da Crimeia, que era parte integrante do território da Ucrânia desde 1954, e fomentar ao longo do ano o separatismo pró-Moscovo na faixa oriental deste país. Criticado por quase toda a comunidade internacional e alvo de severas sanções económicas, o líder russo terminou 2014 a enfrentar uma gravíssima crise do rublo, que caiu para mínimos históricos registados este século, enquanto a inflação disparava e a fuga de capitais contribuía para uma escalada recessiva no país.
Malala Yousafzai, a adolescente paquistanesa ameaçada de morte pelos talibãs, ficou em terceiro lugar na nossa votação por ter sido distinguida com o Prémio Nobel da Paz 2014, partilhado com o activista indiano Kailash Satyarthi. Com apenas 17 anos, foi a mais jovem galardoada de sempre com o Nobel.
Os restantes votos, isolados, foram distribuídos da seguinte forma: o novo Rei de Espanha, Filipe VI, entronizado em 19 de Junho; Pablo Iglesias, líder da formação política Podemos, que irrompeu com êxito na cena política espanhola, recolhendo um milhão de votos nas eleições europeias e ameaçando implodir o sistema bipartidário; o empresário e filantropo chinês Jack Ma; e a pobreza, não personalizada, à escala universal.
Figuras internacionais de 2010: Angela Merkel e Julian Assange
Figura internacional de 2011: Angela Merkel
Figura internacional de 2013: Papa Francisco
Foram os três de que me lembrei mais rapidamente. Isso não faz deles os melhores do ano porque vi relativamente poucos filmes estreados em 2014 (por exemplo, ainda estou para ver Interstellar – referido duas vezes no Delito – e Ida). Nem sequer estou certo de que faça deles os melhores de entre esses poucos. Depois de os escolher, apercebi-me que partilham uma característica: são olhares alienígenas sobre a condição humana – mesmo no caso em que a protagonista pertence à espécie (e até se baseia numa pessoa real).
Só os Amantes Sobrevivem, de Jim Jarmusch.
Jarmusch é pessimista e, com frequência, pretensioso. Esta história de dois vampiros transbordantes de estilo e ennui tinha todos os ingredientes para exasperar. Adam e Eve (pun claramente intended) estão vivos e – não obstante viverem em cidades diferentes no início do filme – apaixonados um pelo outro há centenas de anos. Conheceram poetas, dramaturgos, filósofos. Adam é músico. Chegou a oferecer um adágio a Schubert (que o melhorou). Evitam o contacto com os humanos (a que se referem como zombies) e até com outros vampiros, menos intelectuais, mais impulsivos, simultaneamente mais perigosos (a discrição é fundamental, numa época em que andar por aí a beber sangue humano dá demasiado nas vistas) mas também mais integrados nos tempos actuais. Tempos incultos, de espectáculos básicos e reality shows, que Eve suporta à base de leitura, estoicismo e pragmatismo mas que deprimem Adam profundamente. De entre os poucos vampiros com que se dão, realça-se um idoso Kit Marlowe, o – como poderia ser de outra forma? – verdadeiro autor das peças atribuídas a Shakespeare.
Por atraente que a premissa seja, o filme tem problemas. Um deles está em raramente admitir que na actualidade ainda são produzidas obras culturais dignas de registo. Há uma cena na qual Eve mete livros numa mala e The Infinite Jest, de David Foster Wallace, é claramente visível. Há outra, em Tânger, perto do final, na qual Adam e Eve assistem mesmerizados a um espectáculo da libanesa Yasmin Hamdan. Pouco mais. Outro está na forma glorificada como o passado nos é apresentado. Se o Renascimento e o Iluminismo foram épocas de avanços nos campos político e cultural, não deixaram por isso de ser tempos em que, percentualmente, muito mais gente estava impedida de aceder à cultura (e mesmo à literacia) e vivia sob regimes autoritários altamente classistas. Jarmusch parece assim lamentar o processo de democratização da cultura, por – segundo ele – induzir um decréscimo de qualidade. Trata-se de uma tendência comum em que eu próprio já caí. Mas, ainda que possa ter uma componente de verdade, é simplista.
O que salva o filme? Acima de tudo, o romantismo. A relação intensa, paritária, separada do mundo, entre Adam e Eve. O estilo, também – é mais um Jarmusch nocturno, desolado mas belo, em que os bairros abandonados de Detroit surgem como paradigma da decadência humana e as ruas de Tânger como uma hipótese de comunidade. Os actores, excelentes, ainda que desempenhando papéis que se prestam a tal. Tilda Swinton, Tom Hiddleston, John Hurt e a ubíqua Mia Wasikowska (seis filmes nos últimos dois anos, sendo que abordarei outro no terceiro texto desta mini-série) agarram com unhas e dentes papéis que (nos casos de Swinton, Hiddleston e Hurt) lhes permitem exprimir de forma inteligente e plena de estilo (estes são vampiros tão cool que até dói) a propensão para o pessimismo – para o niilismo, mesmo – que afecta a parte bem pensante da sociedade actual.
Para o espectador (para mim, em todo o caso), Só os Amantes Sobrevivem é um mergulho culposo no prazer do pessimismo e da depressão, em nome da capacidade salvífica da cultura (como elemento verdadeiramente diferenciador do ser humano) e de um romance belíssimo, resistente à passagem dos séculos, que (e será esse o verdadeiro raio de luz do filme) permite acalentar esperanças na existência de uma versão à escala humana, com a duração de algumas décadas.
O relançamento do sector da construção é capital para duas coisas: gerar ilusões e voltar a dar a mão a empresários amigos. Claro que terá efeitos no futuro do país. Os conhecidos do passado.
Queremos mudar o mundo, queremos mudar o sistema, queremos mudar a sociedade. Tudo seria mais fácil se começássemos por mudar a nossa relação com os outros. Se adquiríssemos o talento de unir o que vemos fragmentado, de congregar o que está disperso. Se soubéssemos ir ao encontro de quem nos rodeia. Às vezes basta um gesto apaziguador, uma palavra amável, um sorriso que se rasga na face sempre sisuda. "Na superfície das coisas vê-se a essência das coisas", escreveu Saul Bellow em Ravelstein.
A sociedade, o sistema, o mundo não mudam se não começarmos por mudar também algo de essencial na nossa relação com os outros. Nos actos mais singelos do quotidiano.
Escrevo estas linhas enquanto o sol vem espreitar-me da janela: é quanto basta para sentir-me grato por este primeiro dia do novo ano. Penso nos que sofrem sob o mesmo sol que me aquece e me inspira e me ilumina. E questiono-me o que poderei fazer para atenuar a angústia ou aliviar a dor de alguém. Não da Humanidade em abstracto, como me sugerem os demagogos de plantão, mas de uma pessoa em concreto.
Uma palavra, um sorriso, um gesto, um abraço, um olhar. Às vezes só isto é necessário. E somos incapazes de dar esse passo. Como se quiséssemos o sol todo só para nós.
Texto reeditado
Note-se que hoje, pela hora do jantar, serão 20.15 do ano 2015. Impressionante, não? Mais ainda se tivermos em conta que, de acordo com diversos estudos científicos, este fenómeno só se repetirá mais 364 vezes.
21 personalidades dos séculos XX-XXI escolhem as vinte e uma personalidades portuguesas do milénio
Prefácio de António Ramalho Eanes
Coordenação de José da Cruz Santos
Entrevistas e notas de Valdemar Cruz
(edição Modo de Ler, 2014)