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Delito de Opinião

Figura nacional de 2014

Pedro Correia, 31.12.14

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CARLOS ALEXANDRE

O juiz que está no centro de todas as atenções, à frente dos mais mediáticos processos de instrução criminal, foi a personalidade eleita como Figura Nacional do Ano pelo DELITO DE OPINIÃO, destacando-se claramente das restantes.

Poucos se lembrarão de uma entrevista dada por este discreto magistrado que tem 53 anos e nasceu em Mação. Mas não é possível ignorar o papel que desempenhou em processos que fizeram e continuam a fazer manchetes, com destaque para o dos vistos dourados - que o levou a deter diversos altos funcionários, incluindo o director do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e a secretária-geral do Ministério da Justiça - e o do ex-primeiro-ministro José Sócrates, que conduziu à detenção do antigo chefe do Governo, também por decisão de Carlos Alexandre.

Estes casos surgidos em 2014 deram-lhe particular notoriedade. Mas também lhe trouxeram declarados inimigos. Proença de Carvalho, talvez o mais poderoso advogado português, acusou-o de ser o "herói dos tablóides" e de procurar protagonismo pessoal através do mediatismo dos processos em que intervém. Mário Soares não se coibiu de o criticar abertamente após uma visita a Sócrates no estabelecimento prisional de Évora ao proferir a já célebre frase: «Todo o PS está contra esta bandalheira!»

Com vaias ou aplausos, fica como um dos rostos de uma visível mudança na justiça em Portugal.

 

A segunda figura mais votada pelos 26 autores do DELITO que participaram neste escrutínio foi o banqueiro Ricardo Salgado, que em 2014 deixou de ser o dono disto tudo, como antes lhe chamavam: o grupo empresarial de que era o lider indiscutido ruiu com estrondo este Verão. Em terceiro ficou José Sócrates, que nunca deixou de ser notícia ao longo do ano.

Na quarta posição, ex-aequo, ficaram Cristiano Ronaldo, vencedor da Bota de Ouro e novamente considerado o melhor futebolista do mundo, e Carlos do Carmo, galardoado com um Emmy em 2014.

Houve ainda votos isolados no novo secretário-geral do PS, António Costa, na procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, e no advogado António Marinho Pinto, que emergiu como líder político ao ser eleito deputado europeu, em Maio, fundando mais tarde o Partido Democrático Republicano.

Também o povo português ("que se lixa como o mexilhão") e a figura do corrupto, sem estar personalizada, receberam um voto cada.

 

Figura nacional de 2010: José Mourinho

Figura nacional de 2011: Vítor Gaspar

Figura nacional de 2013: Rui Moreira

Excerto (18)

Patrícia Reis, 31.12.14

« Avançámos até ao fim da avenida e continuámos pela cidade velha. Demorei a encontrar a saída. À medida que avançava, o carro mergulhava num dédalo de ruas estreitas e sentidos únicos, onde cada opção parecia conduzir a um interior mais profundo, a uma rua ainda mais apertada, a um lugar mais distante de qualquer princípio de organização. O rapaz olhava alternadamente para mim e para as ruas que diante de nós se iam contraindo, com os muros cada vez mais colados às rodas do carro. Via-me prosseguir pelos empedrados, hesitar nos cruzamentos, continuar nos sentidos obrigatórios. Fixava o fim da rua, parecendo duvidar que o carro aí coubesse, voltava-se para mim. De um lado e do outro, paredes brancas, janelas com grades, portas fechadas. Levantava-se no banco e espreitava para trás, como se suspeitasse que a única saída viável fosse meter a marcha atrás e refazer, invertido, o percurso que ali nos conduzira. Metro a metro, centímetro a centímetro. Refazer o caminho, refazendo as dúvidas e as hesitações, e assumindo o erro de ter pretendido optar onde não havia opção. Tarde ou cedo acabaríamos numa rua barrada por um muro caiado. Continuámos ainda durante mais vinte minutos. Um percurso circular. Reconhecia as ruas, os edifícios, os empedrados. Por fim, ele sugeriu que deveríamos parar e perguntar a alguém. Respondi-lhe que não perguntava.
«Nunca.»
Acenou com a cabeça. Talvez compreendesse. Acelerei. Minutos depois acabámos por desembocar junto do rio, não muito longe da ponte romana. Nenhum de nós disse nada. Contornámos os bairros antigos e apanhámos as avenidas novas. Duas faixas em cada sentido.»

H.G. Cancela, Impunidade, Relógio d' Água, um grande livro de que a crítica não quis saber

conto de fim de ano

Patrícia Reis, 31.12.14

Caro Manuel

Escrevo-lhe da praça do Muro das Lamentações em Jerusalém. Perdoe-me. Não estarei para a Consoada. Agradeço-lhe o convite, sabe que sim, sei que não se esquece de mim. Devo ser uma espécie de sem-abrigo afectivo na sua vida, condição altamente recomendável para um viúvo e, sabendo que não desdenho as fatias paridas e o bacalhau com couves da nossa Cecília, a verdade é que fugi dessa coisa natalícia, artificial e luzente que não compreendo. Ou já não compreendo.
Tempos houve que saía de casa para ver as luzes na avenida, espreitar as decorações, o cheiro do frio de Dezembro, a conversa das prendas e toda a organização das festas. Fazia o presépio no primeiro domingo de Dezembro. Fazia-o com cuidado, comprava musgo na florista, desvendava cada figura guardada em papel de jornal, conseguia algumas diferenças na composição de ano para ano, mas coisa pouca.
Não tenho força para nada disso, descer à arrecadação, procurar os enfeites de natal e viver esse momento, julgo ter perdido o sentido da vida, de estar e ser com os outros. Respiro apenas, meu amigo. Respiro e o coração bate sem emoção. Isto não é vida. É outra coisa. Quando comecei a ver o carro carregado com as iluminações, as gruas e os homens a preparem o natal, percebi que não conseguiria ficar indiferente.
Como uma espécie de tortura, optei por viajar e escolhi, de todos os lugares do mundo, imagine, Israel. E agora aqui estou no lugar fundador de tudo, na estranheza desse princípio que está no nosso código genético, no nosso imaginário.

Está frio, sabe, que entra nos ossos. Talvez seja apenas a velhice. Digo-lhe que isto do frio é muito limitador. Ando pelas ruas a esfregar as mãos. Fiz o percurso dos tristes, desses turistas que surgem com guias a debitar informação, guarda-chuvas erguidos como uma placa sinalizadora de presença, americanos lamentavelmente ruidosos, nipónicos sem expressão, grupos de peregrinos italianos que murmuram orações enquanto fazem a Via Sacra.
Vou, sem destino, como uma sombra na perseguição dos outros. Tenho no quarto de hotel um guia, o melhor, o American Express; páginas repletas de informações sucintas, apenas o essencial. Ainda não o abri. Penso que não quero saber. A história, as religiões monoteístas, os monumentos. Nada disso me interessa.

Ando pelas ruas há dois dias. A velha cidade de Jerusalém é maior do que a China. Parece-me diferente todos os dias, como um mar atormentado que se transfigura num espelho de acalmia para depois voltar a uma certa fúria. Do bairro judeu ao árabe, a fronteira desenha-se na pedra, nos cheiros, na arrumação que se opõe ao caos de uma espécie de souk. Fascina-me esta divisão. A ordem e limpeza dos judeus são admiráveis e, talvez não me faça compreender como gostaria, caro Manuel, mas a verdade é que é um pouco assustador.
Passei há pouco o detector de metais para chegar aqui, ao Muro das Lamentações. Descobri ontem que estou contra a minha educação, as minhas raízes. Não sinto qualquer comoção no Santo Sepulcro. Devo ser um mau cristão. Sempre suspeitei ser um pobre cristão, indigno e fatalmente obtuso para os mistérios maiores. Aqui, no Muro, sento-me numa cadeira de plástico, no lado reservado aos homens, e consigo ouvir as mulheres do outro lado, mulheres que de pé se encostam ao muro e rezam alto, como uma cantilena, um choro triste e repetido. Deus abandonou-nos. Estamos sozinhos. Ele não está no muro, na igreja, na mesquita. Escapou-nos. Há quanto tempo? Desde sempre, parece-me.  
Não o quero ofender, Manuel, sei da sua devoção. Perdoe este seu amigo. Li algures que nada mata mais do que a solidão, sobretudo se estamos mesmo sozinhos. Talvez esteja aquém da salvação, do entendimento, de uma ideia melhor. Terá Deus um propósito específico para mim? Sim, sei que devo acreditar na Sua bondade. Um dia talvez O reencontre.
Decidi agora que não lhe mandarei esta carta, meu amigo, vou deixá-la numa fresta do Muro das Lamentações, numa pequena reentrância entre pedras de outra memória, a sua carta e milhares de orações, pedidos, agradecimentos que só consigo imaginar com enorme esforço.
Desejo-lhe um Santo Natal.
Um abraço,
Eduardo

Valsinha

Teresa Ribeiro, 31.12.14

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Um dia ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar,

olhou-a displicentemente e mostrou-lhe muitas contas por pagar

e maldisse a vida tanto que nem era jeito de se lhe falar

e deixou-a só num canto e para seu grande espanto saiu para não voltar.

 

Então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar,

com um vestido decotado que comprou nos saldos sem pestanejar

e cheia de ternura e graça foi para o facebook e começou a facebookar...

 

E aí facebookou tanto que o grupo de amigos todo despertou

e foi tanta felicidade que toda a comunidade se iluminou

e foram tantos likes loucos tantos lol's roucos como não se ouvia mais...

que o mundo compreendeu e o novo ano amanheceu em paz. 

Estamos bem lixados com esta coisa da aceleração da história

Rui Rocha, 31.12.14

Os factos:

 

  • Reis Magos do Oriente. 13 dias para percorrer os milhares de quilómetros que os separavam do menino. Em camelo e guiados por uma estrela.

 

  • António Costa. 36 dias para percorrer os 130 quilómetros que o separavam do menino. Num Mercedes topo de gama com GPS.

 

Aceleração da história? Irra... Er... Digo... Mirra!

Um balanço

Luís Naves, 31.12.14

O mundo é caótico e difícil de interpretar. No final de cada ano, as pessoas procuram sinais que permitam compreender o que lhes acontece, fazem o deve e haver da vida quotidiana, dos insucessos e momentos de felicidade, das suas desilusões e vivências memoráveis, das novas angústias e velhos receios. Há quem se convença de ter encontrado uma grelha de leitura dos mistérios da vida, mas no final toda a gente vai passando pelo tempo que lhe calhou em sorte a acumular inquietações.

Este é o dia dos balanços, queiram desculpar o desabafo. Aparentemente, vivi um ano péssimo e anuncia-se outro ainda pior. E, no entanto, nunca fui tão livre das opressões do espírito. Estou cheio de dúvidas e tudo me parece mais claro. Sinto uma verdadeira serenidade e, apesar das ruínas da minha vida anterior, sei agora que não importa tanto a escolha ou o acaso, mas o que tiramos desta breve oportunidade para contemplar o esplendor do mundo.

Este pode ter sido um ano genuinamente mau, mas um dia talvez olhemos para ele de outra forma. Por mais modernas que as sociedades sejam, as mudanças são sempre contidas pela solidez da cultura. Existe uma inércia que atenua as grandes transformações, tal como a areia da praia trava a onda e a transforma em espuma. O pessimismo e a crise talvez nos tenham feito mais fortes. O que ficará da nossa passagem pelo tempo será sempre um enigma, fruto das circunstâncias, mas também em parte escolha nossa.

 

A todos os companheiros de blogue e a todos os leitores desejo um óptimo 2015.

Conto de Ano Novo

José António Abreu, 31.12.14

«Cinco. Quatro. Três. Dois. Um. Feliz Ano Novo!»

Os quatro homens e as duas mulheres deslizaram suavemente uns até junto dos outros e abraçaram-se. Um dos americanos mantinha o olhar no painel de instrumentos.

«OK. Já chega. Estamos de volta a 2014.»

 

«Cinco. Quatro. Três. Dois. Um. Feliz Ano Novo!»

Os dois americanos trocaram um high-five. Os dois russos bateram no ombro um do outro e abraçaram a colega russa. A italiana, mais efusiva, fez questão de abraçar toda a gente.

«OK. Já chega. Estamos de volta a 2014.»

 

«Cinco. Quatro. Três. Dois. Um. Feliz Ano Novo!»

Excepto por uns quantos sorrisos, ninguém se manifestou. Um dos russos perguntou: «Dá tempo para abrir a garrafa?»

O americano que vigiava o painel abanou a cabeça. «Não. Ainda estamos em 2015 mas não vai durar.»

Ficaram todos em silêncio durante algum tempo.

«OK. Estamos de volta a 2014.»

 

«Cinco. Quatro. Três. Oh, que se lixe. Feliz Ano Novo.»

Ninguém se mexeu. Ouviu-se uma voz: «Alfa, tudo bem?»

O americano respondeu: «Tudo normal.» Depois acrescentou: «Da próxima vez abrimos a garrafa.»

Passaram alguns minutos. A italiana disse qualquer coisa sobre uma tradição milanesa. A russa comentou que em Vozdvizhenka os costumes eram mais asiáticos do que europeus. Um dos americanos perguntou: «Isso é mesmo ao lado da Coreia do Norte, não é? Como é que eles celebram a passagem do ano?» A russa não sabia. O outro americano disse: «Vêem The Interview na internet.» Os americanos riram, a italiana também.

Instalou-se o silêncio. Apesar do espaço ser exíguo, os três russos formavam um grupo ligeiramente à parte. Nas últimas semanas, os dois homens, pilotos da força aérea, vinham-se perguntando qual a forma adequada de lidar com os americanos, agora que os problemas na Ucrânia haviam levado não apenas a um arrefecimento nas relações entre os dois países como a uma crise económica na Rússia. A colega, engenheira, tendia a contemporizar. Dizia que a política não era para ali chamada.

«OK. Estamos de volta a 2014.»

 

«Feliz Ano Novo. Acho que podemos abrir a garrafa.»

O outro americano disse: «Mas a passagem ainda não é definitiva.»

Um dos russos disse: «Para a Rússia, é.»

O americano que anunciava as passagens replicou: «Essa é uma posição egoísta. Se era para ser assim, mais valia não nos termos reunido.»

O outro americano resmungou entre dentes: «E ainda faltam cinco meses.»

A italiana tentou contemporizar: «Alora, calma.»

O primeiro americano disse: «Podes falar. Itália também está quase. Aliás, já está.»

A italiana sorriu e levantou os braços, numa celebração irónica. O americano cedeu e deixou escapar um sorriso.

O russo que falara antes disse: «Estamos a demorar demasiado.»

A russa aproveitou: «Pois estamos. Fica para a próxima.»

«дерьмо», resmungou o colega.

O silêncio caiu de novo. A italiana teve a impressão de que passavam horas sem ninguém o voltar a quebrar. Evidentemente, tratava-se apenas de uma sensação.

«OK. Estamos de volta a 2014.»

 

«2015 outra vez.»

O russo mais impaciente pegou na garrafa.

«Cuidado com a rolha. E não deixes sair champanhe. Parece que no ano passado deu merda.»

A italiana sorriu. «Deve ser giro beber champanhe em suspensão no ar.»

«Pois. O problema é quando atinge os instrumentos.»

Tudo correu bem e o champanhe pareceu suavizar o ambiente - de tal modo que, bastante mais tarde, o americano que anunciava as passagens admitiu: «Raios, distraí-me. Estamos outra vez em 2014.»

Ninguém lhe ligou.

 

«2015.»

«Oh, cala-te.»

 

 

A Estação Espacial Internacional tem a bordo seis astronautas: dois russos, uma russa, dois americanos, uma italiana. Demora 92,74 minutos a dar a volta ao planeta, rodando com uma inclinação orbital de 51,65º. Como o movimento rotacional da Terra é bastante mais lento, na noite de passagem de ano a Estação vai ficando cada vez mais tempo em fusos horários que já se encontram no ano que entra, antes de voltar a fusos ainda no ano que sai. Isto se não me enganei na lógica da coisa. Em qualquer dos casos: Feliz Ano Novo, Happy New Year, Felice Anno Nuovo e С Новым годом.

O que fica das memórias

Sérgio de Almeida Correia, 31.12.14

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A primeira imagem que retive quando saímos da turbulência foi a dos campos de arroz de Surabaia. Chovia com intensidade. Pouco antes, o piloto avisara-nos de que teríamos de rumar a Juanda para reabastecer a aeronave em virtude de não haver combustível suficiente para se continuar à espera de uma aberta que nos permitisse aterrar em Denpasar. Não sei porquê, mas o verde dos campos de arroz tem sobre mim um efeito estranhamente tranquilizador. Talvez porque mesmo nos dias de chuva, quando o céu está mais pesado e o seu cinzento mais carregado e com tendência a deprimir-nos, a profundidade desse verde me faça comungar da explosão de vida que dos campos irradia. Há muito que queria ver os terraços de arroz e os cumes dos vulcões, embrenhar-me na floresta e mergulhar nas águas quentes daquela ponta do Índico, cujo nome de repente se mistura com o de dezenas de mares e estreitos feitos do apelo ao desconhecido. Recordava-me de há muitos anos ter lido um artigo, amplamente ilustrado, cujo título era "Flores after the storm", e depois mais alguns outros que tinham em comum o facto de referirem que as águas indonésias ficavam mais ricas depois dos temporais. Quando a vida regressava à normalidade, quando a transparência voltava, havia mais alimento e os grandes cardumes também regressavam. Com os campos de arroz também se passará algo semelhante. Parecem mais verdes, mais puros. Por razões várias, incluindo a inexistência de relações diplomáticas entre Portugal e a Indonésia, a minha confrontação com aquelas águas e campos foi sendo adiada. Concretizou-se agora. A realização de velhos sonhos sempre traz consigo um turbilhão de emoções. Mais intenso quando há todo um conjunto de circunstâncias a rodeá-los, onde se mistura a alegria com a apreensão, com a saudade e a ausência, com a preocupação com terceiros que estão longe, carentes, e aos quais não se pode acudir num momento tão especial como o Natal. Não sou de balanços, mas não sendo insensível ao que fica para trás sou incapaz de seguir em frente sem rever o passado. Quando volto a cabeça e atiro um olhar sereno sobre o que jaz, sobre a memória que nos transportará para o momento seguinte, para o trilho de novos sonhos, vejo a minha alma soltar-se durante breves instantes, fazer a triagem e cuidadosamente recolher o que nos permitirá seguir em frente e nos acompanhará no futuro que se avizinha. Nesse exercício percorro palavras, cores, gestos, olhares, momentos de ternura, de verdadeiro afecto, num caleidoscópio que se aproxima e se afasta até parar imóvel no momento em que num rápido semi-cerrar das pálpebras me endireito, olho para o que tenho diante de mim e me preparo para o dia seguinte.

Do passado sabemos apenas que existiu. Que foi. Do futuro teremos sempre a certeza do que connosco transportamos. E o que transportamos é o que não nos trai. É isso que nos dá a felicidade. A certeza de que existimos. Uma palavra, um sorriso, um beijo, uma imagem. Por vezes, apenas o cheiro da terra húmida, o sabor a sal, a paz de um campo de arroz. O que não nos trai é o que fica das memórias.

Um Bom Ano para todos vós.

 

Mais um ano

Joana Nave, 31.12.14

Mais um ano passou. Passaram os meses, os dias, as horas recheadas de momentos, uns bons outros nem tanto. No tempo que ainda resta para fechar a porta ao velho e abri-la ao novo, fazem-se os habituais balanços, recordam-se os dias felizes, os projectos realizados, lamenta-se um ou outro episódio menos feliz e elaboram-se planos para o futuro. Um novo ano é como um livro em branco que anseia por ser escrito com novos desafios, conquistas e emoções. Todos os dias que passamos são dádivas, ainda que sejam duros, ainda que tenhamos dificuldade em entendê-los, são oportunidades únicas de aprendizagem e desenvolvimento pessoal. Há dias que são quase insuportáveis, em que a dor magoa com uma profundidade atroz, mas tudo passa e o sol brilha sempre mesmo depois de uma tempestade. Temos de pensar no que de bom nos acontece e concentrar tempo e energia nesses pensamentos, para que se multipliquem, para que ganhem forma e se materializem na nossa vida. Que 2015 seja o ano da esperança, no melhor para nós, mas sobretudo em sermos melhores.

O que valeu a pena ver em 2014 - 3/3

José Navarro de Andrade, 31.12.14

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Ida antes de ouvir John Coltrane

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 Ida ouvindo John Coltrane

 

Polónia, anos 60, catolicismo (a protagonista é freira), culpa (a tia da protagonista, ex-juíza, condenou inimigos do estado à morte nas purgas vermelhas de 50) e John Coltrane. Se não fosse o último item tudo em “Ida” seria demasiado óbvio à partida, mesmo que à chegada acabássemos por sentir a espada fria do desalento – haverá verões na Polónia? – que corta todo o filme. Planos longos e muito quedos (e tensos), enquadramentos esvaziados de quinquilharia cenográfica e ritmo pouco atribulado, não são meras marcas de estilo – do estilo que se espera das cinematografias outrora “do leste”, hoje da “europa central” – mas uma necessidade dramática. Não havia outra maneira de mostrar nem de transmitir isto. “Isto”, posto em filme contemporâneo, é um formidável ajuste de contas da Polónia com o seu presente, fingindo que se mostra o passado. O tema “Naima” de John Coltrane (“Giant steps”- 1959), posto aqui e posto assim, é o rasgão de luz efémera que por momentos cintila em “Ida”, capaz de alinhar todas as peças no seu lugar e virar o tabuleiro ao contrário – um golpe de génio, tão comedido como a narrativa do filme. Noutras cinematografias prefere-se a auto-punição ou o género sempre-em-festa, ambas formas de não olhar, nem sequer para o umbigo. Chama-se Pawel Pawlikoswski o autor desta pérola.

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Estreou-se neste ano de 2014 mais um troço da extensíssima perquirição de Frederick Wiseman (84 anos de idade) às instituições públicas contemporâneas, que já tem 43 peças. Por junto Wiseman oferece-nos a mais formidável memória futura da nossa civilização – se um dia ela desaparecesse, bastariam os seus filmes para entendê-la. Desta vez escalpela a National Gallery de Londres de maneira mais breve que o habitual, só durante 180 minutos. Se o tivesse visto seria decerto um dos filmes do ano.

Divisões sobre a Rússia

Luís Naves, 30.12.14

Alguns países europeus têm dúvidas sobre as sanções à Rússia. A discussão, agressiva e até agora discreta, vai aquecer nos próximos meses. Os americanos estão a exercer forte pressão sobre países que, por serem mais afectados pela destruição do seu comércio com a Rússia, não querem aumentar a parada nas sanções. O facto é que a ordem mundial financeira e política não pretende tolerar o desafio colocado por Vladimir Putin, que fez uma jogada de alto risco na Ucrânia e agora tem poucas hipóteses de conseguir sair da situação. Alguns países do centro da Europa estão relutantes em humilhar completamente a Rússia e querem apenas acabar com o conflito ucraniano, mas os falcões americanos pretendem usar este episódio para dar uma lição aos russos e acreditam que as elites de Moscovo estarão em breve a discutir a eventual substituição do seu presidente.

Desta história conclui-se que a política externa americana segue por vezes ao sabor das conveniências do calendário doméstico e muitas iniciativas surgem na forma de grandes ideias inatacáveis. Quando dominou o mundo, o Império Britânico mandou as suas esquadras defender causas humanitárias (a luta contra a escravatura, por exemplo), mas na maioria das decisões externas a política interna não era tão forte como acontece no caso americano. No que diz respeito aos EUA, os democratas precisam de parecer duros, pois a percepção de fraqueza no mundo será a sua maior debilidade na campanha para 2016. Os republicanos estão a condicionar a estratégia nesta crise e nas sanções contra Moscovo. Quando o facciosismo condiciona a estratégia, o resultado costuma ser desproporcionado ou incoerente. Os europeus, por seu lado, não podem tolerar tácticas de intimidação e a anexação de um território de um país mais fraco por outro mais forte, mas há diferentes níveis de prejuízos comerciais e nem todos se podem dar ao luxo de exigir acção imediata.  

Arrumações de fim de ano

Rui Rocha, 30.12.14

Certo. Todos sabemos que a vida em sociedade obriga a que aceitemos um determinado nível de hipocrisia. A exposição sem filtro de todos os nossos pensamentos envolver-nos-ia, muito provavelmente, em muitíssimas situações desagradáveis. Mais ou menos, acabamos por apreender a pôr algum travão na forma como nos revelamos aos outros. Imagine-se, para não entrarmos noutros campos, uma situação de tensão, uma daquelas discussões azedas sobre um qualquer tema, muitas vezes demasiado fútil. É verdade que nesses casos acabamos em algumas circunstâncias por perder o controlo e verbalizamos ou manifestamos muito. Mas, mesmo aí, nem sempre (quase nunca) dizemos tudo, exactamente tudo, absolutamente tudo, o que nos vem à cabeça. Ainda aí, apesar de sermos capazes de insultar, de gritar, de magoar, raramente vamos até ao extremo de exteriorizar todo o pensamento fugaz, o breve lampejo, a pulsão mais básica e instantânea, a ira mais descontrolada, a lâmina do punhal em forma de palavra que por um momento atravessou o nosso pensamento. Mas aí surge uma outra questão. São esses pensamentos, essas pulsões, esses momentos que nos assaltam, que melhor definem a essência do que somos ou somos realmente, e sobretudo, definidos pela forma como imediatamente os repelimos e amordaçamos? 

Contra a indiferença

Pedro Correia, 30.12.14

Leio num diário o título “Estado Islâmico terá executado quase duas mil pessoas desde Junho”. E uma vez mais me interrogo até que ponto um certo jornalismo asséptico, capaz de conferir um tom de relatório à mais chocante tragédia humana, pode por isso mesmo ser cúmplice da barbárie.

A utilização das palavras nunca é neutra. Quem opta pelo verbo “executar” – como se estivéssemos perante o cumprimento de uma obrigação legal - em vez de “assassinar”, “liquidar”, “massacrar” ou simplesmente “matar”, está de algum modo a contemporizar com um movimento terrorista que faz do desprezo pelos direitos humanos uma divisa e uma bandeira.

Esta mesma indiferença perante o sofrimento das vítimas do terrorismo ajuda a explicar a designação acrítica do dito movimento como Estado Islâmico. Assim mesmo, com veneradoras maiúsculas sem aspas. Como se este bando de assassinos merecesse um átomo de respeito em vez de justificar todo o nosso repúdio e toda a nossa indignação.

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