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Delito de Opinião

Cadernos de um enviado especial ao purgatório (31)

Luís Naves, 31.08.14

No fundo, há duas grandes correntes de pensamento: a crítica aos excessos do materialismo e a crítica às insuficiências da ideologia.

Para muitos autores, o mundo contemporâneo está em declínio, por ter perdido os seus valores e por se basear no insaciável apetite das classes dominantes. O culto do eu leva ao caos social e condena a sociedade à decadência. Há quem defenda a necessidade do regresso à tradição e, quanto maior o choque com a realidade exterior, mais estes movimentos se encolhem na concha dos respectivos fundamentos ideológicos. As críticas à modernidade podem vir de religiões ou de movimentos anti-capitalistas, mas convergem na ideia de que o mundo está à beira de uma transformação inevitável e que essa transformação nos conduz a algo de fundamental. Existe sempre ali a ideia do regresso a um passado idealizado.

Do outro lado do espelho estão os que se afirmam do mundo pragmático. Para eles, as utopias não passam de ilusões, modas ou resistência ao progresso. Segundo afirmam, o mundo material permite fornecer à maioria dos consumidores as bases essenciais do bem-estar, sendo pouco compreensível o descontentamento que alastra nas sociedades contemporâneas. E perguntam esses materialistas: não será a proposta utópica equivalente a trocar uma vida segura por um estado permanente de incerteza?

Os dois lados estão cada vez mais entrincheirados e o debate alastra à generalidade dos temas, conduzindo ao seguinte problema: nunca fomos tão ricos, tão livres e tão cultos como agora, mas também nunca terá havido vidas tão conscientes do seu vazio; por outro lado, se fôssemos mais felizes, viveríamos com o mesmo acesso à riqueza, liberdade e cultura?

 

Na urgência de Santa Maria

Teresa Ribeiro, 31.08.14

- Pois, no raio x não se vê nada de especial, mas a verdade é que este não é o exame mais indicado para avaliar o seu problema. Idealmente deveria fazer uma endoscopia, mas não lha posso prescrever aqui. Só se fosse um caso de vida ou de morte. Lamento...

 

Dito isto a simpática interna, à falta de melhor, baseou-se no instinto e receitou-me umas coisas. Depois de ter esperado quatro horas pela consulta e de ter pago 20 euros de taxas moderadoras.

Só que não correu bem e tive que voltar à urgência no dia seguinte. Apanhei mudança de turno, de modo que comecei a consulta com uma médica e acabei-a, já depois de feitos os exames, com outra. A primeira mandou-me fazer um novo raio x. Apeteceu-me objectar, mas a minha experiência diz-me que não adianta contestar os actos clínicos, porque nunca levamos a melhor, de modo que não levantei ondas. A segunda, comentou: a minha colega pediu um raio x, só que um raio x é inútil nestes casos.

Perante a falta de exames conclusivos, optou pela solução mais prática. Receitou-me medicamentos para tratar cada um dos meus sintomas. Este tipo de medicina também eu sei praticar em casa, com a minha farmácia doméstica, pensei. 

Mas estas coisas acontecem sempre ao fim-de-semana, nada a fazer. Amanhã lá terei que marcar uma consulta a sério. Entretanto gastei mais vinte euros em taxas moderadoras e 14 horas, distribuídas pelos dois dias que passei pelo banco do hospital.

 

Assim vai o SNS.

Leituras

Pedro Correia, 31.08.14

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«Tuvo largos y cordiales encuentros con um Mário Soares descreído o desencantado. En uno de ellos, el jefe de Gobierno portugués le dijo una frase que después el español repetia con alguna frecuencia, sobre todo en los momentos de desolación o incomprensión por parte de la oposición. Sonaba así, en un español aportuguesado: "Desengáñese, Suárez, a política é merda, e os políticos son as moscas".»

Fernando Ónega, Puedo Prometer y Prometo - Mis años con Adolfo Suárez, p. 228

Ed. Plaza & Janés, Barcelona, 2013

Agosto: estação pateta?

Pedro Correia, 31.08.14

Estação pateta? Que estação pateta? Há quem goste de apresentar Agosto como o mês supremo da silly season.

Nada mais falso, como em 2014 voltou a comprovar-se.

 

Recapitulemos: decorre um conflito armado entre a Ucrânia e a Rússia por interpostos rebeldes separatistas, um autoproclamado Estado Islâmico promove massacres étnicos e religiosos no Iraque, África sobressalta-se com a epidemia do ébola e Eduardo Campos, candidato à presidência do Brasil, morre num acidente aéreo em plena campanha eleitoral. A imprensa, à escala mundial, deu destaque a tudo isto.

Nada a ver com silly season. Nada mesmo.

 

Mas este Agosto de 2014, repito, não constitui excepção. O oitavo mês do ano é, por tradição, uma época fértil em acontecimentos de máxima relevância. Foi em Agosto (de 1914) que começou a I Guerra Mundial. Foi também em Agosto (de 1939) que Moscovo e Berlim assinaram o pacto que esteve na origem directa da II Guerra Mundial.

Agosto, mês de luto e de lutas. As bombas atómicas destruiram Hiroxima e Nagasáqui neste mês (em 1945). A Revolução Cultural chinesa teve o arranque decisivo em Agosto (de 1966). Os tanques do Pacto de Varsóvia invadiram a Checoslováquia em Agosto (de 1968). E o início da violência no Ulster, em Belfast e Londonerry, ocorreu igualmente em Agosto (de 1969).

O primeiro governo pós-comunista na Polónia tomou posse neste mês, em 1989, exactamente quando o futuro Nobel da Paz Frederik de Klerk iniciava funções como presidente de uma África do Sul em acelerada transição para a era pós-apartheid. No ano seguinte, também em Agosto, Saddam Hussein invadia o Koweit. E Agosto de 1991 foi marcado por um súbito sobressalto em Moscovo: a tentativa frustrada de golpe para derrubar Gorbatchov.

Em 2008 houve uma guerra no Cáucaso entre a Rússia e a Geórgia, atentados terroristas no Xinjiang, os mais concorridos jogos olímpicos de sempre e um brutal acidente aéreo em Madrid com 154 mortos.

 

Houve mais – muito mais. Roosevelt e Churchill assinaram a Carta do Atlântico em Agosto de 1941. Um ano depois, no mesmo mês, o exército alemão chegava a Estalinegrado. Em Agosto de 1944, iniciou-se o heróico levantamento de Varsóvia. Agosto de 1961 ficou tristemente célebre pela edificação do Muro de Berlim. Também em Agosto, Richard Nixon abandonou a presidência dos Estados Unidos (1974), foi assinada a Acta de Helsínquia (1975), deu-se a rebelião negra no Soweto (1976), ocorreu a grande greve dos estaleiros de Gdansk que acelerou o fim do comunismo na Polónia (1980), foi assinado o acordo sino-britânico sobre o futuro de Hong Kong (1984).

Agosto foi o mês em que se tornaram independentes vários países. Alguns exemplos: Índia (1947), Chipre (1960), Jamaica (1962), Lituânia e Azerbaijão (1991). A concessão do direito de voto às mulheres nos Estados Unidos também aconteceu em Agosto (de 1920), tal como a elevação do Havai a estado norte-americano (em 1959).

Em Agosto foram assassinados Lorca (1936), Trostky (1940) e o democrata filipino Benigno Aquino (1983). Em Agosto (de 1954) o presidente brasileiro Getúlio Vargas suicidou-se, com um tiro no coração, no seu gabinete do Palácio do Catete - o que inspirou um excelente romance de Rubem Fonseca. E este mês viu também desaparecer figuras tão díspares como Marilyn Monroe (1962), Ian Fleming (1964), Lindbergh (1974), Fritz Lang (1976), Elvis Presley e Groucho Marx (ambos em 1977), Ingrid Bergman e Henry Fonda (ambos em 1982), Rudolf Hess (1987) e a princesa Diana (1997).

 

Portugal não é excepção à regra. A primeira Constituição republicana, de 1911, foi aprovada em Agosto, mês em que tomaram posse os presidentes Bernardino Machado (1915) e António José de Almeida (1919). Salazar cai da cadeira em Agosto (de 1968). O inconfundível V Governo Provisório, de Vasco Gonçalves, e a sangrenta guerra civil de Timor dominaram a actualidade em Agosto de 1975.

Foi em Agosto que Maria de Lurdes Pintasilgo, primeira mulher à frente de um governo português, tomou posse (1979), que PS e PSD assinaram a primeira revisão constitucional (1982), que o Chiado ardeu (1988) e o general Spínola, primeiro Chefe do Estado pós-25 de Abril, faleceu (1996).

E quem se esquece do escaldante mês de Agosto de 2004, com o arranque do frágil executivo de Santana Lopes, enquanto o PS mergulhava na crise que conduziu à troca de Ferro Rodrigues por José Sócrates?

Neste mesmo Agosto de 2014 assistimos à derrocada definitiva do Banco Espírito Santo e a uma inédita campanha interna socialista para designar o candidato do partido às próximas legislativas.

Por favor, não voltem a falar na Estação Pateta. Agosto é tudo menos isso.

Grandes romances (19)

Pedro Correia, 30.08.14

 

 

O PASSADO É UM PAÍS DISTANTE

A Marcha de Radetzky, de Joseph Roth

 

«Nasci em 1881 num grande e poderoso império, na monarquia dos Habsburgos, mas não a procurem no mapa: foi erradicada sem deixar rasto. (...) Entre o nosso hoje, o nosso ontem e o anteontem, todas as pontes foram cortadas.»

Stefan Zweig, O Mundo de Ontem

 

Faz agora cem anos, a Europa entrava numa das maiores convulsões da sua história. Ruía um mundo, outro havia de emergir das cinzas provocadas pela guerra, com o seu estendal de ideologias em confronto, radical reconfiguração de fronteiras e explosões de nacionalismos identitários.

Uma das vítimas dessa Grande Guerra que tornou irreconhecível a face milenar do Velho Continente foi o Império Austro-Húngaro, pedra angular do majestoso edifício oitocentista prestes a entrar em colapso. A coroa imperial de Francisco José estendia-se do Palácio de Schönbrunn, na Viena da dinastia Habsburgo, sobre um vasto mosaico de súbditos que integrava húngaros, alemães, eslovenos, croatas, boémios, italianos, polacos, ucranianos e rutenos russos.

Era um império demasiado vasto para permanecer incólume aos ventos de mudança que sopraram com a chegada do século XX. A sua derrocada marcou a despedida de uma época de ouro em que Viena era capital internacional das artes, das letras e das ciências. Ali se concentravam filósofos, escritores, pintores, músicos e cientistas como Sigmund Freud, Gustav Mahler, Ludwig Wittgenstein, Egon Shiele, Arnold Schönberg, Georg Lukacs, Hermann Broch, Arthur Schnitzler e Gustav Klimt.

 

Estas décadas de esplendor e decadência do Império Austro-Húngaro tiveram dois cronistas de excepção: Stefan Zweig, que nos legou em testamento O Mundo de Ontem, o mais fascinante livro de memórias sobre este período, e Joseph Roth, que celebrou as luzes e sombras do reinado de Francisco José num romance inesquecível: A Marcha de Radetzky.

Significativamente, é um romance que começa e termina sob o signo da derrota. Da batalha de Solferino (1859), em que as tropas sardo-piemontesas derrotaram o exército austríaco na segunda guerra pela independência italiana, à morte do imperador (1916), prenunciando o desfecho da I Guerra Mundial.

A acção do livro decorre entre estes dois marcos, percorrendo quase todo o reinado de Francisco José num suave declínio rumo ao desfecho inexorável. Como se, no fundo, os indivíduos nada pudessem contra a irreprimível pressão do devir histórico -- dando corpo a uma tese que teve em Tolstoi um dos principais cultores.

Guiados pelo talento narrativo de Roth, acompanhamos este percurso crucial da história do centro da Europa através de uma família de leais servidores da coroa, oriunda dos confins do império. Por mero acaso, o tenente Trotta salva a vida a Francisco José em Solferino. Ascende a capitão, é nomeado barão pelo monarca reconhecido e passa a chamar-se Joseph von Trotta von Sipolje, em alusão à aldeia eslovena onde nascera.

Nunca mais os destinos de ambos, o imperador e os Trotta, ficarão dissociados.

 

O avô do barão fora um pequeno agricultor eslavo. O pai, sargento da Guarda Nacional junto à fronteira sul do reino, perdera um olho ao defrontar contrabandistas na Bósnia, o que lhe valera a aposentação como inválido militar. Joseph Trotta, barão de Sipolje, desligava-se enfim da «longa cadeia dos seus antepassados» agrilhoados à terra: instruiu o filho Franz no alemão, língua veicular do império, e viu-se imortalizado como Herói de Solferino nos manuais escolares, que romanceavam a proeza com pormenores inventados. «O destino transformou em austríacos a nossa família de lavradores de fronteira. Assim queremos continuar a ser», escreverá por sua vez Franz ao filho, Carl Joseph. Palavras com a força de um lema. Ou de uma fatalidade.

 

 

Este é um livro com banda sonora: a célebre Marcha de Radetzky foi composta em 1848 por Johann Strauss (pai) para celebrar o fausto do Império Austro-Húngaro, simbolizando-o em Joseph Radetzsky (1766-1858), nobre e militar austríaco que se destacou em tempo de guerra e também na paz, como participante no Congresso de Viena (1814-15).

É com indisfarçável nostalgia que Joseph Roth a invoca, ao ponto de lhe atribuir o título do romance. Não custa perceber porquê: judeu de expressão alemã, jornalista conceituado, observador atento da sociedade do seu tempo, Roth escreveu A Marcha de Radetzky no início da década de 30, com a Europa novamente em turbulência. Em 1932, quando o livro é publicado em Viena, já os tambores nazis ameaçavam agrilhoar a Alemanha e, a partir dela, todo o continente. A evocação da época imperial tornara-se um doce anacronismo.

 

O fascínio de Radestzkymarsch -- incluída no cânone de literatura alemã -- deriva precisamente da pulsão nostálgica que se desprende das suas páginas, sem ignorarmos desde muito cedo que os protagonistas serão tocados pela tragédia em doses crescentes, à medida que se aproxima o crepúsculo do império.

É um mundo rígido, protocolar, organizado, de gestos contidos e poucas palavras, dominado por códigos masculinos e onde as mulheres perpassam apenas como sombras efémeras.

É um mundo que desfila ao som de Strauss. Um mundo em que se criam o comissário distrital Franz von Trotta, governador civil numa cidade da Boémia, e o seu filho, aluno da escola de cavalaria, fadado para a vida militar, como o avô, e já com o destino traçado. «Sentia-se em parte família dos Habsburgos, cujo poder o pai aqui representava, e pelo qual ele próprio um dia marcharia para a guerra e para a morte. (...) A melhor das mortes seria morrer por ele [imperador] ao som da Marcha de Radetzsky(p. 29 da edição portuguesa, com chancela da Difel e tradução de Maria Adélia Silva Melo)

O  fim dos Van Trotta simboliza mais do que a irreversível decadência da coroa imperial: simboliza a extinção de uma certa ideia de Europa, mais integradora, mais cosmopolita, mais plural, mais tolerante, mais fervilhante de ideias. A Europa que vigorou durante cem anos exactos -- de 1814, ano em que Napoleão ruma ao desterro em Elba após a derrota em Leipzig, até 1914, quando começaram a soar os canhões da Grande Guerra.

«Este reino tem de acabar. Logo que o nosso imperador fechar os olhos, desmanchamo-nos em cem bocados. Os Balcãs vão ser mais poderosos do que nós. Todos os povos vão fundar os seus estadozinhos miseráveis, e até os judeus vão aclamar um rei na Palestina», vaticina uma personagem do romance, sem ilusões sobre os ventos da História. (p. 132)

 

Filho de pai austríaco e mãe russa, Moses Joseph Roth nasceu em 1894 em Brody, na actual Ucrânia Ocidental -- noutra das extremidades do império, onde a cultura judaica era preservada e socialmente aceite. Estudou Filosofia e Literatura Alemã na Universidade de Viena, quando «toda a cidade não era mais do que um gigantesco pátio do palácio» de Francisco José.

Ainda muito jovem, testemunhou dois acontecimentos históricos que o marcaram para sempre: a I Guerra Mundial, onde serviu como voluntário na frente oriental, e o colapso do império, que o deixaria órfão de pátria.

Em 1920, era jornalista em Berlim: ao serviço do Frankfurter Zeitung percorreu grande parte da Eurpopa. Com a ascensão de Hitler ao poder, em 1933, abandona de vez a Alemanha, acabando por instalar-se em Paris, onde morreu prematuramente em Maio de 1939, consumido pelo álcool e pela saudade do seu mundo que ruíra.

Stefan Zweig, que lhe sobreviveu menos de três anos, descreveu esse tempo desta forma bem expressiva: «Não havia país para onde se pudesse fugir, silêncio que se pudesse comprar. Sempre e em todo o lado a mão do destino nos apanhava e puxava de volta ao seu jogo insaciável.»

 

O êxito literário alcançado por Roth na última década de vida não lhe atenuou a mágoa provocada por uma dupla deserção: primeiro o pai, que abandonou a mãe ainda grávida e nunca o conheceu; depois a História, que lhe roubou a identidade e até grande parte da memória de infância (Brody tornou-se território da Polónia e em 1940 foi um dos palcos mais sangrentos da guerra sovieto-polaca).

Os filhos n' A Marcha de Radetzky nunca recebem manifestações de verdadeiro afecto dos pais: a comunicação entre eles processa-se através de carta ou de monossílabos. O grande progenitor da nação austríaca acaba por ser aquele monarca que parecia eterno -- figura tutelar dos povos do império e presença viva neste romance de que acaba por ser protagonista e suscita algumas das suas páginas mais brilhantes. «Não gostava de guerras -- porque sabia que as perdia -- mas gostava das coisas militares, dos jogos de guerra, dos uniformes, das paradas, dos desfiles e dos exercícios de campanha.» (p. 208) «Durante toda a sua vida tinha-se levantado quase sempre antes de o sol nascer, como o soldado se levanta sempre antes do seu superior.» (p. 211)

Também ele enviuvou cedo, como sucedeu aos Van Trotta. Também ele perdeu o filho, como virá suceder a Franz.

 

 Francisco José e a imperatriz Sissi

 

Era um tempo de fronteira: nada do que veio depois seria igual.

«Naquela altura, antes da Grande Guerra (...), ainda não era indiferente o facto de um ser humano viver ou morrer. Quando alguém se apagava no bando dos terrestres, não entrava logo outro para o seu lugar, para fazer esquecer o falecido, mas ficava um vazio no lugar onde ele faltava, e as testemunhas próximas ou longínquas do morto calavam-se sempre que viam esse vazio. Quando um incêndio destruía uma casa de um bloco de uma rua, o lugar do incêndio ficava ainda durante muito tempo vazio. Porque os pedreiros trabalhavam devagar e pensativos, e os vizinhos mais próximos, assim como os transeuntes de acaso, lembravam-se, quando olhavam para o local, da forma e das paredes da casa desaparecida. Era assim naquela altura! Tudo o que crescia precisava de muito tempo para crescer; e tudo o que desaparecia precisava de muito tempo para cair no esquecimento. Mas tudo o que alguma vez tivesse existido deixava vestígios e vivia-se antigamente de recordações, como hoje em dia se vive da capacidade de esquecer rápida e forçosamente.» (p. 109)

Destinos individuais entrelaçados com o destino colectivo naqueles anos de ilusória paz que dariam lugar à mais mortífera das guerras.

 

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Últimos textos desta série:

 

Martin Eden - Não há sucesso como o fracasso

O Leopardo - O sono em vez do sonho

Agosto - Um mar de lama

O Homem que Via Passar os Comboios - Fora dos carris

O Adeus às Armas - Frágil como o mundo

A Oeste Nada de Novo - Geração perdida

O comentário da semana

Pedro Correia, 30.08.14

«A norma, bem ou mal, fez-se em 1911. A questão deveria ter ficado terminada aí; não ficou porque o Brasil, com o seu habitual chauvinismo, não gostou de ser excluído de tal questão por um país soberano que estava a legislar sobre assuntos internos. Desde então se tenta fazer o impossível, isto é, unificar a ortografia de dois países que continuarão a mudar a ritmos diferentes e que têm díspares níveis de alfabetismo, com todas as consequências que isso causa na estabilidade da norma - no caso do Brasil, com um vertiginoso nível de analfabetismo funcional, onde se escreve como se ouve, isso significa que a ortografia será sempre mais instável do que num país razoavelmente alfabetizado como Portugal, pelo que nenhuma norma pode servir ambos países ao mesmo tempo.
Todos os acordos desde o de 1911 têm sido inúteis e nocivos; apenas resultam na obsolescência de manuais escolares e livros e em gastos de actualização de milhares de palavras em montras, repartições, estabelecimentos, ministérios, etc., pelo país fora. Quanto se gastará, por exemplo, a converter cada Direcção-Geral numa Direção-Geral? Quem fez estudos sobre isso? Qual será a factura? Alguém quer saber, alguém se interessa por isso?
Melhor teria sido se cada país tivesse aceitado que, estando separados geográfica, política, cultural e economicamente, as suas normas seguirão por sendas diferentes, a ritmos diferentes e ao sabor dos condicionalismos que cada um tem de enfrentar, e que não havia nada a fazer senão respeitar a diferença de cada. Nada mais justo, nada mais tolerante. Mas justiça e tolerância não são virtudes estimadas pelas elites políticas luso-brasileiras.»

 

Do nosso leitor Miguel. A propósito deste meu texto.

Está a fazer um mês

Sérgio de Almeida Correia, 30.08.14

"O que é que segue a seguir? Um reconhecimento de que o banco é inviável, e que tem que ir para a falência? Não, de todo não. Esse cenário está afastado. (...) Atenção que este banco já foi sujeito a quatro rondas sucessivas de testes."

 

"Falência, no teu entender, está fora de causa? Nem pensar, nem pensar. O que vai acontecer é uma recapitalização do banco. (...) Essa situação só se poria em caso de falência, o que não vai acontecer."

Excerto (9)

Patrícia Reis, 30.08.14

 "Os porcos são um autêntico mistério, é o que é, disse. O que é que uma pessoa consegue saber sobre um porco? Não muito. Ando a guardar porcos desde os meus tempos de catraio e nunca consegui chegar a percebê-los muito bem. E não tenho dúvidas que outros como eu tiveram a mesma experiência. Um porco é um porco. Pura e simplesmente. E é mais ou menos tudo que se pode o se pode dizer sobre ele. E são espertos, não penses que não. Espertos comó diabo. E não te deixes enganar por um que não tenha a pata fendida, porque esse é tão endiabrado comós outros.
Acho que os porcos são porcos e pronto, comentou Holme."

 

Nas Trevas Exteriores, Cormac McCarthy.

Excerto de um diálogo inesquecível entre um porqueiro e o Culla Holme.

A colónia escocesa (episódio da História do Fracasso)

Luís Naves, 30.08.14

Dentro de semanas, a Escócia votará em referendo se pretende manter-se ligada ao Reino Unido ou se prefere a independência. O resultado da consulta é incerto. A união com a Inglaterra teve momentos em que quase ocorreu a ruptura, tendo a última rebelião armada, dos clãs das Terras Altas, Highlander, terminado apenas em 1746, 39 anos após o acto da união.

Na realidade, Inglaterra e Escócia tiveram relações conflituosas durante séculos, mas a formação de cada um dos reinos não se explica sem a interacção com o vizinho. Nas décadas anteriores à união, consumada em 1707, a economia escocesa sofrera com a concorrência do comércio inglês e com uma sucessão de más colheitas. Os conflitos entre clãs eram endémicos.

Os motivos que conduziram à união das duas coroas são numerosos e complexos, mas um deles destaca-se pelo insólito: em 1698, a Escócia tentou estabelecer uma colónia no actual Panamá, na baía de Darien, mas o fracasso da iniciativa consumiu grandes quantidades de capital e levou muita gente à falência. Darien ajuda a explicar o apoio da aristocracia feudal escocesa à união com os ingleses e o fracasso do império escocês foi, sem dúvida, uma das bases para três séculos de Reino Unido.

 

 

Os sonâmbulos.

Luís Menezes Leitão, 29.08.14
Aproveitei este período de férias para ler o livro Os sonâmbulos (The Sleepwalkers), de Christopher Clark, que explica perfeitamente como a Europa se deixou de disparate em disparate arrastar para a guerra em 1914, que levou à destruição dos países envolvidos e à reformulação geopolítica do continente. O autor demonstra claramente como a causa próxima do conflito, o tiro disparado pelo sérvio bósnio Gravilo Princip, foi afinal o simples rastilho de uma guerra que foi desencadeada pela inconsciência dos governantes europeus, que se deixaram arrastar de escalada em escalada até à guerra total.  

 

É precisamente o que hoje se está a passar na Ucrânia. Sempre achei que a questão ucraniana tem que ser tratada com pinças, uma vez que é um estado dividido ao meio entre um ocidente pró-europeu e um leste pró-russo e cuja importância estratégica para a Rússia é absolutamente decisiva. Lenine dizia que os soviéticos podiam perder a cabeça mas não podiam perder a Ucrânia e Putin tem exactamente o mesmo posicionamento. Precisamente por isso desde a queda de Ianukovitch que me parece que tudo se encaminha para um confronto directo do Ocidente com a Rússia. A situação poderia ter sido evitada com a eleição de Poroshenko, mas este optou por esmagar a rebelião de Donetsk e Lugansk pela força das armas, lançando o exército ucraniano contra os rebeldes. Ora, era evidente que Putin não iria permitir o esmagamento dos rebeldes russos na Ucrânia, pelo que quanto mais vitórias Poroshenko tivesse no terreno, mais se tornaria inevitável a intervenção da Rússia. No fundo, a situação não é diferente da guerra da Coreia, em que a tomada de Pyongyang por McArthur arrastou imediatamente a China para o conflito, obrigando os EUA a voltar a recuar para sul do paralelo 38, uma vez que a única alternativa — e que foi proposta por McArthur — era uma guerra nuclear dos EUA com a China.

 

 

Neste momento, já é a própria diplomacia alemã a reconhecer que a situação na Ucrânia ameaça ficar fora de controlo. O que me espanta é que a diplomacia alemã não se tenha apercebido disso desde o início. Mais uma vez, o que isto lembra é 1914. O Kaiser e o Czar trocavam telegramas em que se tratavam carinhosamente por Willy e Nicky, enquanto arrastavam os seus países para o apocalipse.

Reflexão do dia

Pedro Correia, 29.08.14

«A palermice em que anda a discussão em torno do Acordo Ortográfico exige que se tomem decisões rápidas. A mais recente proposta veio do congresso dos deputados, no Brasil, onde umas luminárias decidiram propor o fim de toda e qualquer filiação etimológica, retirando 'h' não pronunciados e transformando a ortografia numa dependência aleatória e analfabeta da fonética - resultados da "linguística estrutural oral" dos anos setenta e do populismo "antielitista" que afoga o sistema escolar brasileiro. Esta procissão de doidos, libertados para a arena sem qualquer atestado de sanidade, ameaça tornar irrelevante todo e qualquer respeito pelos dicionários, pela gramática, pela lógica, pelo bom senso - e, finalmente, por uma língua milenar.»

Francisco José Viegas, no Correio da Manhã

Cadernos de um enviado especial ao purgatório (30)

Luís Naves, 29.08.14

Quando li pela primeira vez este texto, nem quis acreditar. Li de novo e, de facto, trata-se de uma crítica ao “jornalismo concreto” que, segundo a autora, tem excesso de agressividade, sendo uma “nova forma de jornalismo”, em oposição a métodos mais honestos, como será o caso de um jornalismo de fantasia. O texto é uma crítica e o “jornalismo concreto” não deve ser praticado.

O pior é que este texto não foi escrito pelo tontinho da aldeia. A autora de Vai e Vem, Estrela Serrano, é uma especialista em comunicação social, ensina ou ensinou essa matéria e devia saber que só existe “jornalismo concreto”, tudo o resto sendo conversa da treta, limonada pseudo-informativa, com perguntas para embalar bebés. Os políticos têm obrigação de responder a questões autênticas e os jornalistas têm a obrigação de saber se eles disseram alguma coisa, se as suas propostas são viáveis ou se estão a omitir posições relevantes.

No entanto, na sua crítica, a especialista Estrela Serrano escreve que este mau exemplo “é um jornalismo que só se interessa pelo concreto e pelo imediato”, embora a frase seja uma excelente definição de bom jornalismo, que deve questionar exactamente esses dois elementos, o concreto e o imediato, expondo a retórica balofa e o empurrar com a barriga. 

Agora percebo muito melhor a crise da imprensa, a razão da fuga dos leitores. O jornalismo que questiona o concreto e o imediato tornou-se uma raridade que merece a crítica severa dos mandarins da comunicação social. Assim, os jornalistas que exercem a sua profissão devem acalmar-se e fazer apenas as perguntas mais dóceis.

O retorno

Helena Sacadura Cabral, 29.08.14

Judite de Sousa voltou ontem ao ecrã da TVI, com uma entrevista a Cristiano Ronaldo. As marcas da dor pela qual passou - e passa - estão bem visíveis. Não no rosto, ou no vestuário, impecáveis. Mas no olhar e na voz porque, esses, não há tecnologia que disfarce. Pelo contrário, intensifica-os.

Nunca escondi a minha admiração por Cristiano Ronaldo. Pelo homem que veio menino sozinho para Lisboa traçar o seu futuro, pelo desportista que fez mais pelo nome de Portugal do que muitos "emproados" que a tal se outorgam e pelo chefe de família em que se transformou. Mas, sobretudo, por esse orgulho de ser quem é, de ser português e de nunca renegar as suas origens. Não é pouco, no mundo actual. O resto são floreados.

A primeira parte da longa entrevista referiu-se, sobretudo, à vida profissional. Não sendo especialista na matéria, julgo que Cristiano respondeu sabiamente às perguntas que lhe foram feitas. Já não é, mais, o jovem que cometeu alguns erros. É um homem que soube tirar deles as devidas lições e que os não nega. 

Tocou, aliás, numa matéria muito importante: a ideia que cada um tem de si próprio. Para dizer que precisa de se considerar o melhor para fazer o que faz, mas que isso não implica que ele seja o melhor. Só esta resposta merecia, por si só, uma entrevista. A ele Cristiano e a muitos de nós.

Judite esteve bem. Triste, mas boa profissional. Hoje veremos, ao que sei, a parte afectiva e familiar do nosso craque. Da qual falarei amanhã, se a matéria o justificar.

Mas dei por bem empregue o tempo que passei junto ao televisor. É que a conversa valeu muito mais do que os medíocres debates televisivos a que, por norma, estamos sujeitos.

Verão no fim

Sérgio de Almeida Correia, 29.08.14

"Os políticos são maus porque os portugueses não exigem melhor" - João Pereira Coutinho, Jornal de Negócios

 

"Re[c]tificativo: só um terço da derrapagem com despesa de pessoal se deve ao Constitucional" - Jornal de Negócios

 

"Taxas no aeroporto de Lisboa sobem sete vezes desde a privatização" - Diário Económico

 

"Costa abafa negócio de meio milhão"; "Gestor do banco de Portugal compra e vende no BES"; "Silveira Godinho protegido por Carlos Costa"; "Ex-ministro do PSD não assume preço das obrigações"; "Quando comprou já estava na supervisão do BdP"- Correio da Manhã

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