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Delito de Opinião

Como é que se costuma dizer?

José António Abreu, 31.07.14

Quem contrai dívidas de 400 mil euros em seu nome junto de um banco arranja um problema a si próprio se não as conseguir pagar. Quem contrai dívidas de 400 milhões de euros em seu nome junto de um banco arranja um problema ao banco se não as conseguir pagar.

É mais ou menos isto. Mas agora também:

Quem contrai dívidas de 4 mil milhões de euros em nome do banco que dirige arranja um problema ao banco, ao governo e aos contribuintes se não as conseguir pagar.

E ainda:

Quem contrai dívidas de 140 mil milhões de euros em nome do país que dirige arranja um problema aos governos seguintes, aos bancos e aos contribuintes se… não, peço desculpa, neste caso a culpa é dos credores e o problema deve ser-lhes remetido via recusa de pagamento total ou parcial – um processo indolor, como se sabe (vide Argentina há uma dúzia de anos e, de novo, na noite passada).

Motivação nas organizações

Rui Rocha, 31.07.14

Há, seguramente, milhões de estudos, teorias, propostas e abordagens ao tema. No fundo, trata-se de descobrir o mecanismo que faz com que um trabalhador tenha uma súbita vontade de esforçar-se (ainda) um pouco mais. De fazer (dizem os consultores) an extra mile. O clique que faz com que, diríamos nós em bom português que por alguma coisa não somos consultores, um trabalhador tenha um desejo genuíno, altruísta e indomável de correr pela sua empresa. Pois bem. Após anos e anos de trabalho de campo, estou em condições de revelar ao mundo (e a si, leitor do DELITO DE OPINIÃO, em estreia absoluta), o único método verdadeiramente infalível  e com validade universal (aplicável a todos os níveis hierárquicos), testado em milhares de situações, para pôr um trabalhador de uma organização a correr. Na verdade, é muito simples. Basta seguir rigorosamente os seguintes passos.

 

  1. Escolha um corredor ou passagem da empresa com mais de 5 metros de comprimento
  2. Coloque-se estrategicamente junto de uma porta do corredor ou passagem
  3. Aguarde pacientemente que um trabalhador da empresa surja no horizonte
  4. Quando a pessoa em causa estiver ainda razoavelmente distante da sua posição (não menos de 3 metros), segure a porta, fazendo-a perceber, através de linguagem corporal contida mas explícita, que aguardará todo o tempo necessário pela respectiva passagem e só depois retomará o seu caminho.

 

Estou certo que conseguirá pôr  a pessoa a deslocar-se em passo muito mais rápido ou até a correr, ainda que se trate do CEO da empresa. Nos milhares de casos em que testei o método, apenas não consegui resultados satisfatórios com o Lopes que tinha sido operado à coluna. Aqui fica pois esta partilha desinteressada. Apenas peço em troca que aplique o método e que nos traga, a benefício da ciência da motivação, notícia dos resultados alcançados.

Penso rápido (34)

Pedro Correia, 31.07.14

O Estado Social é inseparável do crescimento económico: nos 30 anos subsequentes à II Guerra Mundial, estas duas realidades progrediram a par. Potenciadas por múltiplos factores entretanto desaparecidos: mercados coloniais, matérias-primas baratas, petróleo a bom preço, taxa de natalidade muito elevada, proteccionismo industrial, restrições à circulação de produtos, pessoas e bens. Tudo isso terminou. Fomos os últimos a fazer cair o pano com o fim do nosso império, em 1975. As três décadas seguintes caracterizaram-se pela inversão dos dados anteriores. E, portanto, pela atrofia europeia enquanto as restantes regiões do globo registavam índices de prosperidade jamais alcançados. Alguns que tanto defenderam a globalização - a quebra de fronteiras e barreiras - sentem-se agora vítimas dela e pretendem regressar ao quadro anterior. Que é impossível. Não há colónias como mercado de escoamento de bens manufacturados e fonte de matérias-primas baratas. Nem petróleo a preços reduzidos. Nem restrições à circulação de pessoas e capitais. Nem filhos em número suficiente. Nem pode haver, por tudo isto, o Estado Social que houve em tempos anteriores.

Não se pode nunca ter o melhor de dois mundos.

Cadernos de um enviado especial ao purgatório (4)

Luís Naves, 31.07.14

Carl Von Clausewitz defendia a doutrina de guerra incisiva, na qual a população do inimigo tinha de ser submetida às necessidades políticas dos beligerantes. Esta tese tornou-se dominante no século XX, sobretudo durante as duas Guerras Mundiais, onde os exércitos invasores executaram acções brutais contra populações civis. Segundo se pensava, impor o terror era uma das formas de vencer, mas na prática isso apenas aumentou a resistência, dificultando a vitória.

A forma violenta como o exército israelita está a lidar com a situação em Gaza aponta para um exemplo clássico da estratégia de Clausewitz: guerra curta, tácticas que não poupam populações, a intenção de esmagar a liderança política, neste caso, do Hamas.

Em 1804, ao saber do assassínio do Duque de Enghien (fuzilado de noite, de forma impiedosa, com uma lanterna ao peito) o ministro da polícia de Napoleão, Joseph Fouché, afirmou para a posteridade: “Pior que um crime, é um erro”. A frase é cínica, mas aplica-se ao que Israel tenta fazer na Faixa de Gaza. A brutalidade contra populações civis só vai radicalizar o Hamas e aumentar a simpatia da opinião pública por este grupo radical. Haverá vítimas inúteis em maior número e um ciclo de violência mais prolongado. Em vez da submissão, apenas se encontrará resistência redobrada.

O Hamas pode ser esmagado, mas se isso acontecer, vão crescer como cogumelos novas organizações ainda mais radicalizadas. Os EUA, que fornecem as munições, terão dificuldade em manter as suas alianças no Médio Oriente. Em Israel, um quinto da população é árabe, mas alguns políticos extremistas israelitas defendem um Estado exclusivamente judaico, há até quem queira a expulsão de cidadãos.

De facto, pior que um crime, tudo isto parece ser um monstruoso erro.

Religião, realidade e felicidade

João André, 31.07.14

Nos últimos tempos um estudo que indica que as crianças religiosas são menos capazes de distinguir fantasia e realidade tem feito umas piscinas no Facebook. Todos os dias algum dos meus contactos o indica, seja para o apresentar, defender ou denegrir. Não tendo possibilidade de ler o estudo científico original, decidi dar uma espreitadela a artigos que o citam e acabei a ler outros artigos que referem mais uns estudos dentro da mesma área.

 

Antes de mais o óbvio: o estudo que toda a gente refere foi feito com 66 crianças e, pormenor importante, não estabelece uma clara distinção em relação às histórias fantásticas (que no exemplo usam um nome muito facilmente identificável como bíblico). As crianças seculares terão maior tendência para identificar a história fantástica como não real, mas de acordo com as notícias não existe uma divisão absoluta neste aspecto entre elas e as crianças religiosas. Num outro estudo referido aqui, o mesmo tipo de teste mas algo diferente foi também administrado a crianças. A diferença é que no segundo estudo foram usados episódios bíblicos ou, segundo o artigo, com inspiração em episódios bíblicos.

 

Os estudos são portanto limitados na extensão e poderão não ser os ideais em termos de metodologia. Haveria também que contabilizar a localização: se os estudos forem feitos em regiões de maior fervor religioso, é óbvio que a influência da religião será superior, em ambos os grupos de crianças (as crianças seculares receberiam uma educação mais reactiva à influência do meio religioso circundante).

 

Outro aspecto a considerar seria então a influência da religião ao educar crianças para serem adultos na sua sociedade. Nesse aspecto parece, segundo outro estudo, que as crianças religiosas têm uma melhor saúde mental, são mais equilibradas e felizes. Como qualquer bom cientista, o autor aponta para o facto de a causalidade não estar provada, sendo que poderá estar aqui envolvida uma questão do tipo ovo ou galinha. Por outro lado, outros estudos indicam que a religião não é necessariamente um factor importante para o desenvolvimento mental da criança. Muita da sua importância estará relacionada, mais uma vez, com o meio ambiente: num meio religioso, a religião serve como factor identificativo e de integração para a criança e - igualmente importante - a sua família. Em meios seculares, seriam crianças seculares a integrarem-se melhor.

 

Por fim há a questão da idade a considerar: estas diferenças acentuam-se durante o tsunami emocional/hormonal da adolescência mas reduzem-se na idade adulta. Isto demonstra que, no final de contas, a religião não é assim tão decisiva (positiva ou negativamente) na formação das crianças e adultos quanto muitas pessoas poderão pensar. Influencia obviamente a felicidade em função da sociedade em que o indivíduo está inserido, mas também escolhas políticas, desportivas ou amorosas o poderão fazer. Para quem é intrínsecamente religioso, a religião oferece conforto e uma sensação de pertença a algo de superior, de transcendente. Para quem é, como eu, intrínsecamente ateu, essa falta de crença oferece um outro tipo de conforto, mais intelectual e que ajuda a admirar as maravilhas pelo lado dos factos.

 

No fim de contas, o essencial será a sociedade em que cada indivíduo está inserido. Enquanto ateu, cresci num país essencialmente católico. A minha bússola moral demonstra-o claramente quando me comparo com protestantes. O mesmo se pode dizer para um amigo, ateu que cresceu num país muçulmano e outro, judeu, que cresceu num país católico. Isto deveria ser óbvio para qualquer pessoa sem ter necessidade de contar argumentos científicos (a ironia...) como espingardas.

Sous les pavés, la plage!

Luís Menezes Leitão, 31.07.14

 

Tal como a Helena, eu, que há dias tinha uma posição neutral nas primárias do PS, começo a desejar ardentemente que António Costa ganhe de vez o partido  e liberte  Lisboa o mais rapidamente possível das constantes ideias disparatadas que sistematicamente executa, para grande desespero de quem ainda aqui vive (e são cada vez menos). Primeiro, transformou o Marquês de Pombal numa rotunda onde não se consegue circular e os carros ficam sistematicamente parados. Dizem-nos que é para aliviar a poluição, como se os engarrafamentos automóveis numa rotunda não causassem poluição. Depois colocou os sentidos da Avenida da Liberdade de pernas para o ar, recuperando uma ideia de Nuno Abecasis, que deu tão mau resultado nessa época, que ele nem sequer voltou a recandidatar-se à Câmara. Como bem disse então Gonçalo Ribeiro Telles, em Lisboa tinha deixado de ser possível ensinar as crianças a atravessar a rua. Finalmente, António Costa despachou a recolha do lixo para as freguesias, passando essa recolha a ser irregular, o que deixa as ruas num estado lastimável.

 

Mas claro que tudo isto são preocupações prosaicas, para quem pensa com romantismo constantemente em ideias cada vez mais absurdas para Lisboa. Assim, como não poderia deixar de ser vamos regressar a Maio de 1968, e ao slogan Sous les pavés, la plageVai haver assim uma "praia urbana bem no coração de Lisboa", com "sol, água, areia e muita animação". O coração de Lisboa, imagine-se, é o lindíssimo jardim do Torel, com uma das vistas mais fascinantes da capital, que vai ser assim inundado de areia e água, para que alguns possam chapinhar, a que se vai associar o ruído estridente de foliões, perturbando o sossego dos visitantes do jardim. Tenho a certeza de que o coração de Lisboa, que já está entupido com a má circulação e os resíduos nas artérias, vai pura e simplesmente estoirar com esta nova agressão. Que mal fizeram a António Costa os cidadãos de Lisboa para ele lhes fazer isto?

A efemeridade do poder

Sérgio de Almeida Correia, 31.07.14

Desconheço se em Portugal as pessoas se têm apercebido da forma como as autoridades de Pequim, pela mão da poderosa estrutura do Partido Comunista Chinês, têm levado a cabo uma profunda operação de limpeza em relação àqueles elementos que tendo atingido posições de grande destaque na hierarquia chinesa, mais ostensivamente exibiam a sua riqueza, poder e impunidade.

Têm sido vários os casos, mas aquele que mais está a dar que falar é o do até há pouco tempo intocável Zhou Yongkang. Filho de uma família pobre de Jiangsu, depois de ter começado a carreira na área do petróleo e da indústria do gás, Zhou Yongkang foi vice-ministro da Indústria do Petróleo (1985-1988), subindo na estrutura até atingir o topo da China National Petroleum Corporation. A partir daí foi ministro da Terra e dos Recursos Naturais, chefe do PCC em Sichuan, tendo desempenhado vários outros cargos até se tornar no homem que dominava todo o aparelho de segurança da RPC. Zhou Yongkang foi o ministro da Segurança Pública entre 2002 e 2007, assumindo logo depois o cargo de secretário da Central Politics and Law Comission. Membro do Comité Permanente do Politburo do PCC, Zhou retirar-se-ia em 2012, após o 18.º Congresso do PCC.

Actualmente são cinco os membros da sua família que são alvo de investigações, na linha das que levaram à queda em desgraça, no curto espaço de um ano e meio, de Li Dongsheng (vice-ministro da Segurança Pública), Li Chongxi (Presidente da Divisão Provincial de Sichuan da CPC do PCC), Tang Hong (membro da unidade paramilitar de polícia do Ministério da Segurança Pública), Yu Gang (adjunto da Politics and Law Comission), Guo Yongxiang (Presidente do Círculo das Artes e Literatura de Sichuan), Ji Wenlin (vice-governador da Província de Hainão), Jiang Jiemin (Presidente da SASAC) e de Li Chuncheng (vice-secretário do PCC em Sichuan), sem esquecer Bo Xilai, antigo dirigente máximo do PCC em Chongqing, entretanto condenado a uma pena de prisão perpétua por corrupção e abuso de poder.

Mas o que há de mais extraordinário no caso de Zhou Yongkang é que se tratava de um verdadeiro czar. É até hoje o mais alto dirigente do PCC a ser visado num processo desta natureza. Não se trata, pois, de peixe miúdo. O filho, Zhou Bin, tendo-se licenciado em 1994 na Universidade do Texas, em Dallas, construiu um império à sombra das influências do pai. Zhou Bin, sem que se lhe reconheçam especiais capacidades, tornou-se detentor de vastas participações em empresas da área do petróleo, do imobliário e até da indústria cinematográfica, sendo que uma das suas empresas - Zhongxu Sunshine Energy Technology - vende equipamento à China National Petroleum Corporation.

Esta manhã, Gillian Wong escreveu um artigo no Macau Daily Times que pode ajudar a perceber melhor o que se está a passar. Para o South China Morning Post, também de hoje, que citava fontes do inner circle do PCC, Xi Jinping está à procura do seu lugar na História, ao lado dos grandes do PCC. Só que para isso acontecer terá de consolidar o seu poder e enfraquecer a resistência interna às suas reformas. Em vez de se deixar ficar quieto e sem levantar grandes ondas, como fez o seu antecessor, o actual n.º 1 decidiu marcar o caminho.

No próximo mês terá lugar o encontro de Beidaihe e Xi Jingping continua a cumprir a agenda que prometeu. Quando em 2012 assumiu o poder declarou uma guerra sem quartel à corrupção que minava o PCC e toda a sua estrutura de poder. Ao apertar o cerco a Zhou Yongkang, Xi Jingping não podia ser mais claro. Ninguém está acima da lei, não há intocáveis. E os reformados ricos não serão poupados. A mensagem vai chegar a todo o lado. Espera-se que a Portugal também.

(Nora Tam, SCMP)

Delitos poéticos (31)

Ana Vidal, 31.07.14

 

(Instalação de Rebeca Horn)

 

IMPOSSÍVEL REGRESSO

 

Quando no fim
aquele tema torna, não é para encerrar
num círculo fechado uma odisseia em teclas,
mas para colocar-nos perante a lucidez
de que não há regresso após tanta invenção.

Jorge de Sena, "Bach:Variações Goldberg", ARTE DE MÙSICA

 

 

(Glenn Gould - Goldberg Variations var.26-30 & Aria Da Capo)

e será que alguém se comove?

Patrícia Reis, 30.07.14

 

Quantos jornalistas portugueses estão em Gaza? Ah, esqueci-me, estamos à beira das primárias do PS e há o Ricardo Salgado. Ok. Como jornalista, com carteira e no sindicato, com contas em dia, não entendo. Alô? Está alguém a dirigir os jornais? As televisões? Quem são? De onde vêem? São jornalistas? E os donos dos órgãos de comunicação social são apenas isso: proprietários de imprensa escrita ou outra? Terão outros interesses? Devem ter.

Reflexão do dia

Pedro Correia, 30.07.14

«Vladimir Putin está a cometer demasiados erros de avaliação, o que é perigoso. A tragédia do avião da Malásia mostrou os riscos da sua política ucraniana e da perda de controlo sobre os bandos "separatistas". A seguir, perdeu a oportunidade de contribuir para uma desescalada sem perder a face. Está agora confrontado com a perspectiva de sanções mais duras, que poderão constituir uma séria ameaça para a economia russa. Na sua lógica, não recuará -- isto é, calcula que não pode recuar por razões de prestígio e de poder doméstico -- e ampliará consequentemente a dimensão da crise.»

Jorge Almeida Fernandes, no Público

Cadernos de um enviado especial ao purgatório (3)

Luís Naves, 30.07.14

Nas redes sociais encontram-se textos muito violentos contra Marcelo Rebelo de Sousa e Miguel Sousa Tavares, por nenhum deles ter condenado publicamente o banqueiro Ricardo Salgado. São variações de um artigo do cómico João Miguel Tavares, que insistia na mesma tecla: devido às suas ligações de amizade, os dois comentadores recusaram criticar em público o amigo banqueiro. Portugal procura um bode expiatório para os seus problemas e já escolheu aquele que serve às mil maravilhas. Quem no passado opinou que Ricardo Salgado tinha charme (rigorosa verdade) é agora insultado nas redes sociais e equiparado a traidor da Pátria. Os comentadores que evitaram falar do seu amigo, esses, embora revelassem carácter, são agora fustigados por alegada omissão. E depois surgem os heróis que ninguém viu, mas que agora reivindicam denúncias corajosas. Repito: um comentador ou jornalista que evita falar dos seus amigos revela dignidade. Marcelo Rebelo de Sousa e Miguel Sousa Tavares evitaram criticar o banqueiro Ricardo Salgado, avisando que não se pronunciavam devido à ligação que tinham com ele. Compreendo: também não critico os meus amigos em público. Aliás, este problema da amizade em contraste com a verdade pode ser levado mais longe: em última análise, um comentador teria de vergastar publicamente as pessoas que ama. Toda a gente tem defeitos e, levando a tese ao absurdo, sendo a crítica um dever, o hipócrita terá a suprema obrigação de lançar a primeira pedra. Vivemos nos tempos do purgatório, ninguém pode ter amigos e há até quem se gabe de não os ter.

Excertos (2)

Patrícia Reis, 30.07.14

1

  

A primeira vez que a vi, a Ginga olhava o mar. Vestia ricos panos, e estava ornada de belas jóias de ouro ao pescoço, e de  sonoras malungas de prata e de cobre nos braços e calcanhares. Era uma mulher pequena, escorrida de carnes, e no geral sem muita existência, não fosse pelo aparato com que trajava, e pela larga corte de mucamas e de homens de armas a abraçá-la. 

 

Foi isto no Reino do Sonho, ou Soyo, talvez na mesma praia que lá pelos finais do século XV viu entrar Diogo Cão e os doze frades franciscanos que com ele seguiam, ao encontro do Mani-Soyo – o Senhor do Sonho. A mesma praia em que o Mani-Soyo se lavou com a água do baptismo, sendo seguido por muitos outros fidalgos da sua corte. Assim, cumpriu nosso senhor Jesus Cristo a sua entrada nesta Etiópia ocidental, desenganando o pai das trevas. Ao menos, na época, eu assim o cria.

 

Na manhã em que pela primeira vez vi a Ginga, fazia um mar liso e leve e tão cheio de luz que parecia que dentro dele um outro sol se levantava. Dizem os marinheiros que um mar assim está sob o domínio de Galena, uma das nereidas, ou sereias, cujo nome, em grego, tem por significado calmaria luminosa, a calmaria do mar inundado de sol.

 

Aquela luz, crescendo das águas, permanece na minha lembrança, tão viva quanto as primeiras palavras que troquei com a Ginga.

 

Indagou-me a Ginga, após as exaustivas frases e gestos de cortesia em que o gentio desta região é pródigo, bem mais do que na mais caprichosa corte europeia, se eu achava haver no mundo portas capazes de trancar os caminhos do mar. Antes que eu encontrasse resposta a tão esquiva questão, ela própria contestou, dizendo que não, que não lhe parecia possível aferrolhar as praias.

 

Nos dias antigos, acrescentou, os africanos olhavam para o mar e o que viam era o fim. O mar era uma parede, não uma estrada. Agora os africanos olham para o mar e vêem um trilho aberto aos portugueses, mas interdito para eles.

 

José Eduardo Agualusa, A Rainha Ginga

Teste Delitoratura - 6

Teresa Ribeiro, 30.07.14

Saiu para comprar rins para o pequeno almoço da mulher. Regressou a casa cerca de 24 horas depois, na ressaca de uma bebedeira monumental, final apoteótico de um dia em que nada de extraordinário se passou, a não ser as coisas extraordinárias que se passam num dia normal. Consegue situar este enredo?

 

Solução da pergunta anterior: Quem assim cogitava era Charles Swann em Um Amor de Swann, incluída na obra Em Busca do Tempo Perdido de Marcel Proust. Vencedor: o nosso leitor Carlos Cunha.

Cadernos de um enviado especial ao purgatório (2)

Luís Naves, 30.07.14

Evito escrever sobre questões internacionais, mas não é falta de assunto, é perplexidade. As revoluções árabes falharam quase todas, com particular estrondo no Egipto, e nasceu um califado no Iraque a na Síria (imagine-se, um recuo de mil anos). A civilização ocidental entrou numa fase estranha, incapaz de controlar os excessos ou de reduzir um sistema de consumo que ameaça a estabilidade do próprio clima do planeta. Alguns Estados caem fora do ninho e condenam-se à extinção; há milhões de pessoas sem qualquer futuro visível. E esta exclusão também ocorre dentro dos países chamados ricos, onde as desigualdades podem destruir democracias construídas com labor e sacrifício. Muitos pobres ficarão no exterior das classes consideradas humanas e, assim condenadas à pobreza e à incultura, deixarão simplesmente de existir, ignoradas por meios de comunicação obcecados apenas pelo espectáculo. O capitalismo é insaciável. Cada um fecha-se nas suas razões: estamos a construir um mundo de condomínios privados que bombardeiam faixas de gaza

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