Há palavras que, por bons ou maus motivos, vão caindo em desuso. Tem acontecido com a palavra intelectual: poucos vocábulos foram tão trivializados e pervertidos como este. Muitos dos chamados intelectuais estiveram na primeira linha da defesa das causas mais indefensáveis, erguendo loas a sistemas totalitários que escravizaram corpos e espíritos. Ao contrário do que a nobre palavra indiciava, padeciam de "fuga da razão", segundo o certeiro diagnóstico feito por Paul Johnson.
Subsistem no entanto alguns intelectuais genuínos: senhores de uma cultura vastíssima, ancorada na reflexão permanente e no estudo constante do lastro milenar da sabedoria clássica de que somos transitórios legatários com a missão indeclinável de transmiti-la às gerações futuras. Com elevado sentido estético jamais dissociado de parâmetros éticos.
O intelectual genuíno recusa render tributo à ignorância travestida de sapiência, mesmo que seja propagada mil vezes pelas trombetas mediáticas: pelo contrário, é aquele que sabe questionar a falsa sabedoria erigida em dogma e tem a noção muito clara de que quanto mais sabemos mais adquirimos a certeza de que nunca saberemos o suficiente para impor a nossa verdade aos outros. Como ainda há dias nos ensinava a cientista Maria de Sousa numa notável intervenção no programa televisivo Expresso da Meia-Noite, mesmo naquele ramo do saber que se convencionou catalogar com o rótulo de ciências exactas a certeza não deve sobrepor-se à dúvida. "O que nos deve motivar não é o que sabemos mas o que não sabemos."
Ainda existem intelectuais que honram o carácter primordial desta palavra e do seu ambicioso conceito, mas para nosso mal são cada vez menos. Acabamos de perder um deles: Vasco Graça Moura -- poeta, ensaísta, novelista, cronista, tradutor de Dante, Petrarca, Racine, Molière, Shakespeare, Rilke e Lorca, com mais de meio século de vida literária -- morreu hoje, aos 72 anos. Tinha sido alvo de uma tardia homenagem do Estado -- sempre muito lesto a colectar impostos e demasiado lento a reconhecer o mérito dos cidadãos -- há menos de três meses. Homenagem que se arriscou a ser post mortem: naquela altura já se encontrava muito doente.
Antes disso fora justamente distinguido pela sociedade civil. Com o Prémio Pessoa e os prémios de Poesia do PEN Clube Português e da Associação Portuguesa de Escritores, que também lhe atribuiu o Grande Prémio de Romance e Novela. Foi quase imperdoável não ter recebido o Prémio Camões: desde logo porque raros contemporâneos estudaram tanto e tão bem o autor d' Os Lusíadas como ele.
Devemos-lhe muito. Também no campo da mobilização cívica, pelo seu infatigável combate ao chamado "acordo ortográfico" imposto pelo poder político à revelia da comunidade científica portuguesa. Fui um dos seus mais modestos discípulos nesta luta contra uma "perversão intolerável da língua portuguesa", como justamente lhe chamou. E devo-lhe palavras simpaticíssimas a que talvez um dia faça pública referência: não é hoje o momento para isso.
Fica-nos dele a memória de um intelectual à moda antiga: alguém que nunca deixa a cultura para segundo plano sem perder um olhar crítico perante a actualidade, como demonstra o seu último texto, publicado há quatro dias no Díário de Notícias.
Fica-nos também o exemplo: devemos travar um combate persistente e bem fundamentado pelas causas que acreditamos serem justas.
E fica-nos sobretudo a obra, que merece ser lida e relida -- desde logo a obra poética, notável a todos os títulos.
Como bem demonstra este seu Soneto do Amor e da Morte, que aqui transcrevo em comovido preito ao grande português que agora nos deixou.
"quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.
quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não
tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão."