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Delito de Opinião

Blogue da semana

João Campos, 28.04.14

Desta vez, escolho para blogue da semana aqui no Delito o Intergalactic Robot. E não é (só) pela amizade ao Artur Coelho, companheiro de armas nas andanças da ficção científica e afins; é, sim, pelas excelentes sugestões de banda desenhada (contemporânea e não só), pelas críticas literárias sempre pertinentes, e por algumas das melhores reflexões sobre o género que podemos ler actualmente em português. Para nem referir as belíssimas fotografias, claro. Para os interessados e curiosos, fica a sugestão. 

Uma data especial!

Helena Sacadura Cabral, 27.04.14

Hoje gostaria de ter estado nas celebrações de santificação de João XXIII e de João Paulo II. Pela primeira vez dois Papas são santificados ao mesmo tempo que um Papa e o seu antecessor assistem juntos a tal cerimónia.
A fé é algo que se não discute. Ou se tem ou não se tem. Mas para um crente não ter fé não o dispensa de lutar por ela. Sei do que falo, porque os meus Pais deixaram ao meu critério essa escolha. Por isso, apenas fui baptizada aos 19 anos e de forma muito consciente. A fé não foi, portanto, algo que tenha nascido comigo. É, sim, algo por que luto diariamente, que todos os dias me faz confrontar comigo própria, que guia os meus passos e que, julgo, me torna uma pessoa melhor. Mas percebo quem não tem fé e admiro quem, sem esse suporte, vive a sua vida com a maior dignidade.
Talvez por tudo isto, gostaria muito de ter assistido a estas cerimónias. Mas já me dou por feliz de ter vivido o tempo suficiente para, através da televisão, ter podido assistir a elas neste mês de Abril de tão más recordações.
Eu sei que estas palavras só tocam uma parte daqueles que me lêem. Mas o testemunho também serve para que aqueles que não acreditam possam entender aqueles que crêem.

Vasco Graça Moura

Patrícia Reis, 27.04.14

As meninas
as minhas filhas nadam. a mais nova
leva nos braços bóias pequeninas,
a outra dá um salto e põe à prova
o corpo esguio, as longas pernas finas:

entre risadas como serpentinas,
vai como a formosinha numa trova,
salta a pés juntos, dedos nas narinas,
e emerge ao sol que o seu cabelo escova.

a água tem a pele azul-turquesa
e brilhos e salpicos, e mergulham
feitas pura alegria incandescente.

e ficam, de ternura e de surpresa,
nas toalhas de cor em que se embrulham,
ninfinhas sobre a relva, de repente.

 in "Antologia dos Sessenta Anos"

Sempre a doer de tanta perfeição

Pedro Correia, 27.04.14

 

Há palavras que, por bons ou maus motivos, vão caindo em desuso. Tem acontecido com a palavra intelectual: poucos vocábulos foram tão trivializados e pervertidos como este. Muitos dos chamados intelectuais estiveram na primeira linha da defesa das causas mais indefensáveis, erguendo loas a sistemas totalitários que escravizaram corpos e espíritos. Ao contrário do que a nobre palavra indiciava, padeciam de "fuga da razão", segundo o certeiro diagnóstico feito por Paul Johnson.

Subsistem no entanto alguns intelectuais genuínos: senhores de uma cultura vastíssima, ancorada na reflexão permanente e no estudo constante do lastro milenar da sabedoria clássica de que somos transitórios legatários com a missão indeclinável de transmiti-la às gerações futuras. Com elevado sentido estético jamais dissociado de parâmetros éticos.

O intelectual genuíno recusa render tributo à ignorância travestida de sapiência, mesmo que seja propagada mil vezes pelas trombetas mediáticas: pelo contrário, é aquele que sabe questionar a falsa sabedoria erigida em dogma e tem a noção muito clara de que quanto mais sabemos mais adquirimos a certeza de que nunca saberemos o suficiente para impor a nossa verdade aos outros. Como ainda há dias nos ensinava a cientista Maria de Sousa numa notável intervenção no programa televisivo Expresso da Meia-Noite, mesmo naquele ramo do saber que se convencionou catalogar com o rótulo de ciências exactas a certeza não deve sobrepor-se à dúvida. "O que nos deve motivar não é o que sabemos mas o que não sabemos."

 

Ainda existem intelectuais que honram o carácter primordial desta palavra e do seu ambicioso conceito, mas para nosso mal são cada vez menos. Acabamos de perder um deles: Vasco Graça Moura -- poeta, ensaísta, novelista, cronista, tradutor de Dante, Petrarca, Racine, Molière, Shakespeare, Rilke e Lorca, com mais de meio século de vida literária -- morreu hoje, aos 72 anos. Tinha sido alvo de uma tardia homenagem do Estado -- sempre muito lesto a colectar impostos e demasiado lento a reconhecer o mérito dos cidadãos -- há menos de três meses. Homenagem que se arriscou a ser post mortem: naquela altura já se encontrava muito doente.

Antes disso fora justamente distinguido pela sociedade civil. Com o Prémio Pessoa e os prémios de Poesia do PEN Clube Português e da Associação Portuguesa de Escritores, que também lhe atribuiu o Grande Prémio de Romance e Novela. Foi quase imperdoável não ter recebido o Prémio Camões: desde logo porque raros contemporâneos estudaram tanto e tão bem o autor d' Os Lusíadas como ele.

 

Devemos-lhe muito. Também no campo da mobilização cívica, pelo seu infatigável combate ao chamado "acordo ortográfico" imposto pelo poder político à revelia da comunidade científica portuguesa. Fui um dos seus mais modestos discípulos nesta luta contra uma "perversão intolerável da língua portuguesa", como justamente lhe chamou. E devo-lhe palavras simpaticíssimas a que talvez um dia faça pública referência: não é hoje o momento para isso.

Fica-nos dele a memória de um intelectual à moda antiga: alguém que nunca deixa a cultura para segundo plano sem perder um olhar crítico perante a actualidade, como demonstra o seu último texto, publicado há quatro dias no Díário de Notícias

Fica-nos também o exemplo: devemos travar um combate persistente e bem fundamentado pelas causas que acreditamos serem justas.

E fica-nos sobretudo a obra, que merece ser lida e relida -- desde logo a obra poética, notável a todos os títulos.

Como bem demonstra este seu Soneto do Amor e da Morte, que aqui transcrevo em comovido preito ao grande português que agora nos deixou.

 

"quando eu morrer murmura esta canção

que escrevo para ti. quando eu morrer

fica junto de mim, não queiras ver

as aves pardas do anoitecer

a revoar na minha solidão.

 

quando eu morrer segura a minha mão,

põe os olhos nos meus se puder ser,

se inda neles a luz esmorecer,

e diz do nosso amor como se não

 

tivesse de acabar, sempre a doer,

sempre a doer de tanta perfeição

que ao deixar de bater-me o coração

fique por nós o teu inda a bater,

quando eu morrer segura a minha mão." 

A guerra no horizonte.

Luís Menezes Leitão, 27.04.14

 

Os antigos romanos, com a sua infinita sabedoria, diziam: "Si vis pacem para bellum". Ou seja, se queres a paz, prepara-te para a guerra. Infelizmente, no entanto, o actual Ocidente perdeu totalmente essa perspectiva e arrisca-se a deixar desencadear uma guerra mundial, por total incapacidade de previsão e antecipação das consequências das decisões estratégicas que tomou.

 

Barack Obama, talvez confortado por a Academia de Estocolmo lhe ter dado o Nobel da Paz mal se sentou no cargo, apostou totalmente no isolacionismo americano, abandonando a postura intervencionista que desde Reagan sem excepção os Presidentes Norte-Americanos vinham seguindo. O resultado, como não poderia deixar de ser, foi o de que a América deixou de ser temida no mundo, sem deixar de ser odiada. Hoje, qualquer milícia pró-Rússia na Ucrânia acha que pode livremente tomar reféns, da mesma forma que os estudantes iranianos tomaram a Embaixada Norte-Americana em Teerão durante a presidência de Carter, que se mostrou incapaz de fazer fosse o que fosse. E como se isso não bastasse, o inenarrável Presidente da Coreia do Norte insulta o Presidente Norte-Americano, ao mesmo tempo que prepara mais testes nucleares, sabendo-se bem com que fim.

 

Quanto à União Europeia, que tem mostrado durante a crise financeira que tem muito pouco de união e ainda menos de europeia, limita-se a satisfazer os desejos de hegemonia de Berlim. Precisamente por isso mergulhou de cabeça na crise ucraniana apoiando precipitadamente um governo de extremistas formado na Praça Maidan, o que teve como contraponto a revolta das populações russas do país. Depois de a Rússia já ter anexado o que lhe interessava, ou seja a Crimeia, sem precisar de disparar um tiro, assiste-se a uma verdadeira guerra civil, em que de um lado estão os "terroristas" e do outro os "nazis", enquanto os desgraçados dos observadores da OSCE são mandados para uma zona de guerra observar não se sabe o quê, sendo logo feitos reféns e qualificados como prisioneiros de guerra, sem que ninguém tome qualquer medida de retaliação.

 

Enquanto na Ucrânia e na Coreia do Norte os sinais de guerra são cada vez mais ameaçadores, a resposta do Ocidente continua a ser ridícula. As agências de rating consideram a dívida da Rússia como lixo financeiro, julgando que em caso de guerra os investidores continuarão a comprar dívida como se nada se passasse e a seguir os prestimosos conselhos destas agências. O Governo interino da Ucrânia acusa a Rússia de querer a terceira guerra mundial. E Obama acusa a Rússia de não levantar um dedo para resolver a crise ucraniana. Quanto à Europa, amarrada pelo colete de forças do euro, não tem quaisquer condições de ter a mínima presença militar, assobiando agora para o lado do sarilho que causou na Ucrânia. Continuem com os cortes orçamentais, deixem os países europeus sem defesa, e vão ver aonde vamos parar.

Cedo demais

Helena Sacadura Cabral, 27.04.14
Morreu Vasco Graça Moura, poeta e tradutor de grandes poetas, romancista, ensaísta, dramaturgo, cronista, advogado, político, gestor cultural.
De Graça Moura poderá dizer-se que foi um espírito renascentista a viver num presente demasiado conturbado para o seu gosto pela ordem e pela disciplina.
Autor de quase 30 livros de poemas foi um tradutor de textos particularmente difíceis, como a Divina Comédia e a Vita Nuova de Dante, as Rimas e Triunfos de Petrarca, os Testamentos de François Villon, ou ainda a integral dos Sonetos de Shakespeare.
Escolhas a que, cremos, não terá sido alheio a sua enorme vontade de enriquecer o património literário disponível em língua portuguesa.
É por estas duas dimensões - de poeta e de tradutor -, que é mais reconhecido, e foram elas que lhe valeram as principais distinções atribuídas à sua obra, de que se destaca, em 1995, o Prémio Pessoa.
Dois combates haviam de marcar igualmente a sua vida: a intervenção política e a crítica feroz conduzida contra Acordo Ortográfico, que considerava um crime de lesa-língua.
Mesmo que nos fiquemos pela sua obra literária, talvez seja necessário recuarmos a Jorge de Sena, para encontrarmos um antecessor da sua qualidade. Ambos partiram cedo demais!

O comentário da semana

Pedro Correia, 27.04.14

«Talvez a liberdade de uma só pessoa diga apenas respeito ao seu intimo. Liberdade para matar é crime, porque atenta contra a espécie/sociedade, mas liberdade para matar outras espécies é necessidade de alimento, logo não ter liberdade para matar é equivalente a ter liberdade para o fazer, uma é tão necessária como a outra, pois ambas culminam em sobrevivência. Socialmente, o humano deixa de ser humano a partir do momento em que deixa de respeitar o próximo, porque a liberdade não é mais do que partilhar. As fronteiras variam, mas há limites impostos, e alguns são pela decência. Um deles é o de respeitar os mortos, pois afinal de contas estamos todos de passagem.
E em vez de apontar os defeitos mudemos de perspectiva e aprendamos a aprender com quem morreu mas percorreu em vez de querer viver sem nada fazer.»

Do nosso leitor Manuel. A propósito deste meu texto.

Nihil obstat

Rui Rocha, 27.04.14

Já está. O Papa Francisco declarou hoje santos João XXIII e João Paulo II perante centenas de milhares de fiéis de todo o mundo. Pelo visto, à cerimónia assistiram 98 delegações de Estados e organizações internacionais, incluindo 24 chefes de Estado e monarcas, do Rei de Espanha a Robert Mugabe. Sei como são tortuosos os caminhos do Senhor, mas talvez fosse caridade cristã informar o Presidente do Zimbabué que o Vaticano ainda certifica santos mas já não vende indulgências. São tradições que se perdem e é pena. Imagine-se, por exemplo, o jeito que não daria por estes dias às crianças do Corno de África aquela coisa da multiplicação dos pães. O certo é que houve milagres, embora de outra natureza. São João Paulo II fez, só à sua conta, dois. E São João XXIII cometeu um. Temos portanto dois Papas e milagres temos três que é, como se sabe, a conta que Deus fez. Pelo que, se recorrêssemos à estatística que é uma outra forma de produzir milagres (veja-se a já estafada questão dos dois frangos comidos por um só mas que estatisticamente divididos por dois dão um frango a cada um), sairia a coisa à média de milagre e meio por Papa hoje santificado. Mas a manipulação, de números ou outra, não é para aqui chamada. Os milagres agora certificados em folha azul de vinte e quatro linhas foram devidamente analisados, estudados, escrutinados e finalmente reconhecidos por uma comissão de sábios e peritos lúcidos e independentes que aplicou no processo, Deus me perdoe, verdadeiro rigor científico. Veja-se o caso, por exemplo, de um dos milagres de São João Paulo II. Floribeth Mora Dias tinha um aneurisma que a medicina não podia curar. A 1 de maio de 2011, às duas da manhã na Costa Rica, esta católica acompanhou pela televisão a beatificação do Papa polaco, apesar de habitualmente não conseguir “acordar normalmente” e voltou a adormecer. “Às oito da manhã ouviu uma voz no quarto que lhe dizia "levanta-te”, recordou. Apesar de estar sozinha, voltou a ouvir "levanta-te, não tenhas medo” e identificou a origem do apelo numa revista comemorativa da revista de João Paulo II, com o Papa polaco na capa, com as mãos levantadas. E pronto, macacos me mordam se não estava curada sem necessidade daquelas mezinhas que o Bruxo de Fafe obriga os seus clientes a emborcar. Natureza diferente têm os outros dois milagres papais. Para que não se diga que santos da casa não os fazem, a cura dirigiu-se desta vez a membros da própria Igreja. João Paulo II curou a freira Marie Simone Pierre que sofria de Parkinson. E João XXIII salvou a religiosa  Caterina Capitani de morrer devido a uma perfuração gástrica hemorrágica. Ora aqui confesso a minha decepção. Apesar de maravilhosos, estes dois milagres, não desfazendo, parecem-me poucochinho. Noto que João Paulo II e João XXIII conseguiram curar as religiosas das suas doenças mas, apesar dos seus imensos poderes, foram incapazes de as fazer celebrar missa.

Imagens ao domingo (5)

João André, 27.04.14

Esta foto foi tirada no Egipto, enquanto esperava para passar as comportas de Esna, no Nilo. No bote estavam uns vendedores de túnicas que avançavam para os barcos de turistas e atiravam as túnicas para apreciação e, de imediato, se afastavam, evitando que as túnicas lhes fossem enviadas de volta de imediato e acabassem compradas. Era um quase bailado engraçado que naquelas águas adquiria uma beleza intensa.Não resisti e fiz esta fotografia.

Ler

Pedro Correia, 26.04.14

25 de Abril sempre - o que é sempre? Do João Lopes, no Sound+Vision.

O meu 25 de Abril. Do José Paulo Fafe.

O meu 25 com quarenta. Do Rui Bebiano, n' A Terceira Noite.

Quarenta anos depois. De Bruno Alves, n' O Insurgente.

Saber passar o 25 de Abril. Do Pedro Rolo Duarte.

26 de Abril. Do José Meireles Graça, no Gremlin Literário.

A grande transformação. Do Luís Naves, no Fragmentário.

Cadernos da mudança (I): o diagrama de Mandelbrot. Do Filipe Nunes Vicente, no Nada os Dispõe à Acção.

Mas os totalitaristas são donos da luta contra o totalitarismo? Do Joel Neto, no Regresso a Casa.

A liberdade é mesmo para ser livre. Do Manuel S. Fonseca, no Escrever é Triste.

Foto-fitas do dia. De Luísa Correia, no Corta-Fitas.

Páscoa e "progresso". Do João Gonçalves, no Portugal dos Pequeninos.

Isto não é uma parábola pascal. Da Ana Cristina Leonardo, na Meditação na Pastelaria.

Marcação de território. Do Carlos Azevedo, no The Cat Scats.

É muito? É pouco? Do Luciano Amaral, no És a nossa Fé.

Adepto da arte. Do Eduardo Saraiva, n' O Andarilho.

Cruzeiro. Da Tânia Raposo, no Not quite sun not quite the moon.

Às vezes. Do Luís Novaes Tito, n' A Barbearia do Senhor Luís.

Wann kommt der wind. Da Eugénia de Vasconcellos, na Cabeça de Cão.

Pode este cacilheiro ser considerado uma obra de arte?

Rui Rocha, 26.04.14

De todas as discussões possíveis, política, futebol, costumes, há uma e uma só de que qualquer tipo sensato foge como Jorge Jesus das regras gramaticais elementares. Trata-se, já adivinharam, de qualquer tentativa de estabelecer critérios que permitam decidir se determinada produção ou objecto é ou não uma obra de arte. Mas há momentos em que é preciso arriscar. E não é todos os dias que um objecto de discussão deste calado dá à costa. Costa, o presidente da edilidade lisboeta, como Gepeto dentro da barriga da baleia, já teve oportunidade de se pronunciar afirmando que esta é uma oportunidade única de viajar dentro de uma obra de arte. Aconselha todavia a prudência que avancemos um pouco mais devagar, que os cacilheiros não se fizeram para grandes velocidades. Ora vejamos. Um cacilheiro, este cacilheiro, dificilmente poderia ser considerado uma obra de arte no sentido clássico. Mas as coisas evoluem e devemos a nós próprios a obrigação de não nos tornarmos uns completos botas de elástico. Arejemos pois mesmo os cantos mais recônditos das nossas mentes. E admitamos o passo seguinte.  O de saber se este cacilheiro tem os requisitos mínimos que parece serem exigidos às obras de arte nos nossos dias (notaram por certo a elegância com que evito os termos moderna ou contemporânea e outras designações do mesmo calibre). Este cacilheiro cumpre, isso é certo, a regra da transversalidade dos suportes: qualquer coisa serve para fazer arte, desde atacadores de sapatos até cafeteiras. Por outro lado, responde também ao imperativo da diluição dos significados inteligíveis. Na verdade, caríssimos, hoje em dia um bom indício de que estamos perante uma obra de arte resulta de existir um catálogo, um guia, uma tabuleta, um jornalista, um Presidente de Câmara vá, que nos diga que aquilo é de facto uma obra de arte, conclusão a que não chegaríamos simplesmente olhando para ela. Em decorrência, verifica-se também a tendência nihilista que toda a produção artística contemp... (raios, quase que caía) deve apresentar: é desejável que o objecto não se possa enquadrar em nenhuma referência sólida ou padrão estético. Da mesma maneira, este cacilheiro cumpre integralmente o desígnio da obliteração da busca do belo que contaminava a arte clássica. Ainda assim, e apesar de todos estes indicadores apontarem para estarmos perante uma obra de arte no sentido modern... (irra, que foi quase), o certo é que lhe falta ainda qualquer coisa. Falta-lhe, como poderei dizer, o sentido do efémero que por estes dias é absolutamente indispensável. Isto é, este cacilheiro não é ainda uma obra de arte, mas pode bem vir a sê-lo. Basta torná-lo perecível. Para que este cacilheiro possa ser considerado um objecto inquestionavelmente artístico é preciso afundá-lo.