Bem-vindos ao admirável mundo novo. O do trabalho sem direitos, o das jornadas laborais sem horários. Não me refiro às lúgubres linhas de montagem da China ou do Bangladeche, onde mulheres e crianças são atiradas, a troco de quase nada, para satisfazer as delícias consumistas das sociedades "emergentes". Refiro-me a outro género de escravatura contemporânea. À promovida pelos esclavagistas engravatados da City londrina, que utilizam jovens trabalhadores precários como peões da sua alucinada engrenagem do compra-e-vende, espécie de proletariado do nosso tempo que começa a trabalhar ainda antes de nascer o sol e continua agarrada à cadeira e ao telefone depois de o sol se pôr (porque há sempre uma Bolsa a abrir algures, noutro continente).
Um admirável mundo novo cheio de suicidas, em paragens tão diversas como Paris ou Tóquio. E com um novo mártir: um rapaz de 21 anos, oriundo da Alemanha, que trabalhou literalmente até morrer.
Chamava-se Moritz Erhardt, estava há sete semanas como estagiário da sede londrina do Bank of America Merrill Lynch, no sector da banca de investimento. Tinha como herói uma figura do cinema: Gordon Gekko, o implacável corretor interpretado por Michael Douglas em Wall Street, de Oliver Stone. O mesmo Gekko que proclamava: "A ganância é que faz mover o mundo."
Colegas que partilhavam a residência estudantil com o jovem alemão encontraram Moritz morto no duche, há duas semanas. Vinha de 72 horas consecutivas de trabalho, sem pausa para dormir. Num meio onde é frequente trabalhar entre 12 e 16 horas diárias, seis a sete dias por semana.
Trabalha-se em piloto automático, muito para além dos primeiros sinais de fadiga e esgotamento começarem a ser emitidos pelo corpo humano: 110 horas semanais, sem fins de semana. Para satisfação permanente da ganância de alguns.
O jovem alemão morreu a 15 de Agosto, dia de festas e romarias em Portugal nas quais se conjugam o sagrado e o profano. Dia que chegou a estar na lista dos feriados nacionais a abolir entre nós, por vontade dos Gordon Gekkos lusitanos, pífios aprendizes de Estaline - sem bigode e com camisas Hermès em vez da samarra comunista.
O ditador soviético promovia a "heróis do socialismo" aqueles operários que mais horas consagrassem à patriótica tarefa de produzir em doses brutais. O maior de todos eles foi Andrei Stakhanov, um mineiro que, no dia 31 de Agosto de 1935, terá conseguido extrair 102 toneladas de carvão em cinco horas e 45 minutos.
No amplo formigueiro estalinista, Stakhanov foi apontado como exemplo a seguir: recebeu um caloroso abraço de Estaline, passou a ostentar a Ordem de Lenine, ascendeu a deputado no Soviete Supremo da URSS, teve honras de capa na capitalista Time e deu até origem a novas palavras: stakhanovismo e stakhanovista.
Milhões de soviéticos procuraram seguir este padrão, para louvor e glória da "pátria dos trabalhadores", conduzida pelo grande ditador.
Moritz Erhardt não teve tempo para receber o abraço de ninguém. Infeliz Stakhanov dos nossos tempos, escravo de gravata, sucumbiu em Londres, à hora em que abria a Bolsa de Tóquio, deixando tanta acção por vender e por comprar. "Money never sleeps", como Gordon Gekko ensinou aos seus contemporâneos.
Imagens, de cima para baixo: Moritz Erhardt (foto The Times); Michael Douglas, protagonista de Wall Street (1987); Andrei Stakhanov num selo soviético