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Delito de Opinião

O que estou a ler (5): A Maldição de Ondina, de António Cabrita

jpt, 02.07.13

 

(Re)acabei agora este "A Maldição de Ondina" de António Cabrita. O autor, patrício imigrado em Moçambique há uma série de anos, que o XXI vai passando, poeta, prosador, jornalista, argumentista, crítico, professor, bloguista, editor, tradutor, vai tendo por cá uma actividade intensa, constante e profunda, afixada em vários livros, disseminada em múltiplos textos, um ritmo que não lhe prejudica densidade e ponderação. Este romance, publicado inicialmente no Brasil (Letras Selvagens, 2011) sairá em breve em Portugal (Abysmo), e também por isso aproveito esta nossa "série" no Delito de Opinião para o anunciar, coisa que vem do interesse do livro e desta vontade de amiguismo, que o Cabrita é um tipo que vale a pena e também porque se o bloguismo vale para algo é para dar uns abraços a quem nos apetece.

Aqui deixa o seu olhar, desencantado parece-me, sobre o seu Moçambique, esse onde nos encastramos. Um verbe mais depurada do que a sua habitual. Sem pitada de exotismos, das belezas tropicais ou das pobrezas bíblicas, sem mistérios austrais ou abismos pós-coloniais, utopias desvanecidas ou boas causas, mais ou menos poetizadas, que abundam em tantos outros. Com recurso a uma linha policial - e nisso, só nisso, se aparentando a algumas outras construções ficcionais portuguesas recentes sobre o país -, que acaba por ser apenas o fio de prumo para equilibrar as múltiplas variáveis do bailado melancólico que avassala as personagens.

Um manifesto iluminista, até expresso no título, em que o Cabrita se insurge com a persistência da história (de uma tradição moderna, direi), que vê como desagregadora, violadora da reciprocidade necessária ao bem comum, comunitarista que assim se desvenda o autor. Ainda assim, talvez paradoxal, europeu desiludido, deixando entender como é a prática africana que alimenta a acção europeia - é assim que vejo a articulação entre os dois protagonistas, o moçambicano Raul e o pós-moçambicano César (neste habitando algo do próprio autor, digo eu). No final, optimista trágico (?), deixa o autor a ténue esperança de uma mitigada redenção.

Raramente gostei tanto de um livro com o qual tanto discordo. Leiam-no, é a minha palavra.

 

E a seguir virão as (actuais) leituras da Laura Ramos.

Tudo correrá bem

José António Abreu, 02.07.13

Depois de andar a fazer voz grossa durante um par de semanas, Nuno Crato cede aos professores e mostra que nem sob intervenção externa o Estado português é reformável. A Troika percebe-o e, porque se não vai pelo anafado sector público, tem que ir pelo esganado sector privado, avança as propostas de diminuir o salário mínimo e cortar ainda mais nas indemnizações por despedimento. O Ministro das Finanças também o percebe e demite-se. Que a sua substituta esteja debaixo de fogo por causa dos contratos swap e não tenha peso no universo político interno nem no universo financeiro externo é, numa visão global das coisas, quase irrelevante.

Tendes saudades?

Gui Abreu de Lima, 01.07.13

Tendes nada. Mas eu andava a criá-las. Queria. A porta aberta para a rua, o vento a dançar com a cortina e o cão a pensar que é gente, a noite, o muito tarde da noite, a brisa que me afaga as pernas, e esse ar, que por onde andou ninguém sabe mas é um sopro do amor.

O "Sol" incendiário

jpt, 01.07.13

 

O jornal português "Sol" tem uma edição moçambicana, composta por uma mescla de material integrando a edição portuguesa e outro produzido em Moçambique. O director é também o arquitecto José António Saraiva. A ideia desta composição é até interessante, ainda que o resultado seja algo ambivalente, e explicitamente ambíguo.

 

Em Moçambique o momento político é difícil, com as investidas da Renamo dos últimos meses no centro do país. O país está algo suspenso das negociações em curso, em busca da necessária pacificação. As avisadas palavras do ex-presidente Joaquim Chissano no último 25 de Junho, apelando a uma negociação entre os partidos, a um "amolecimento do coração de Dhlakama", sintetizam bem a vontade generalizada da manutenção do diálogo e da paz.

 

Neste contexto acabo de ler o jornal dirigido por José António Saraiva, em Lisboa, na sua edição moçambicana. Aí consta o habitual "edital", o cunho político semanal que o jornal produz para Moçambique, assinado pelo português Vítor Gonçalves (que sempre se apresenta nos textos como sendo moçambicano), julgo que responsável pelo dossier moçambicano do "Sol". O texto é absolutamente incendiário. Refutando a dimensão política da situação, reduzindo-a a um caso criminal, apelando à pura intervenção policial e radical intervenção dos tribunais.

 

É certo que cada um escreve o que lhe apetece, e que a liberdade de imprensa é um valor fundamental em democracia. Mas se foi para publicar imbecilidades inconscientes destas o arquitecto José António Saraiva podia deixar o seu jornal na nossa terra, e não vir armar-se em incendiário para terra alheia. Num registo inacreditável, o mais baixo possível. Sem rodeios, desprezível.

Obviamente demita-se.

Luís Menezes Leitão, 01.07.13

 

Não sinto qualquer pena pela saída de Vítor Gaspar. A meu ver, já vai tarde. Esta carta de demissão é, no entanto, a demonstração cabal do absoluto défice de coordenação política do Governo. Passos Coelho sustentou até ao limite do sustentável um Ministro das Finanças que não acertava uma, para vê-lo fugir precisamente na altura em que a troika vai começar mais uma avaliação. E não arranja mais ninguém para o substituir do que a Secretária de Estado que tem estado debaixo de fogo por causa dos swaps. Pareceria uma brincadeira de mau gosto se o assunto não fosse sério de mais. Vítor Gaspar era o verdadeiro Primeiro-Ministro deste Governo. Agora que se foi embora, é mais que altura de Passos Coelho o seguir. Porque já toda a gente percebeu que com estes protagonistas não vamos a lado nenhum.

Creio de certeza que efectivamente parece

José Navarro de Andrade, 01.07.13

Blah, Blah, Blah, painting by Mel Bochner

Mel Bochner, "Blah, blah, blah"

 

É cómico ver a quantidade de senhores na TV, graves e argutos, a descreverem definitivamente como procederia Paulo Macedo assim que tomasse posse do magistério das Finanças e prosseguirem, sem uma beliscadura no tom e na pose, em dissertações de supina ciência acerca do que fará Maria Luís Albuquerque mal ouviram que foi afinal ela a nomeada.  

A saída de Gaspar estava prevista no Borda d´Água

Rui Rocha, 01.07.13

Depois de há uns tempos termos ficado a saber que o estado do tempo influencia o investimento, não é sem espanto que constatamos agora que a saída de Vítor Gaspar do governo, hoje consumada, tinha sido já anunciada pelo Borda d´Água. Na verdade, na edição deste ano, pode ler-se que 1 de Julho de 2013 é o Dia do Salvamento:

 

Lucky Lucas

Rui Rocha, 01.07.13

 

Diz-se por terras de Espanha que um Sol assim é de justicia. Como se a situação meteorológica extrema antecipasse, aqui pelo calor, noutros cantos pelo frio, pela chuva ou por outra manifestação exasperada da natureza, a prestação final de contas que, diz-se, todos devemos fazer ao Criador mais tarde ou mais cedo. Pois assim estamos, a um punhado de quilómetros de Almeria, expiando as nossas faltas às mãos impiedosas deste astro que nos vai torrando, cogitando que talvez fosse melhor fazê-lo, a final, de uma só vez e de uma vez por todas. O almoço foi frugal, mas mesmo assim pesa nas pernas. Ou será o alcatrão em chamas que nos derrete os passos. Há, ao virar da esquina, nesse callejón que se estatela lá mais abaixo num mar que parece ter furtado todas as cores ao arvoredo, uma promessa de bar. Na barra, desvio o olhar das tapas de pimento, aceituna y queso de cabra e das cañas que dois locais vão aquecendo, à conversa, antes de irem tentar a sorte na máquina tragaperras em que depositam diariamente toda a esperança e uma parte do subsídio de paro que ainda recebem. A entrada é subitamente tomada por uma sombra. O homem de pernas arqueadas entra castigando o soalho com os tacões. Empurra o banco junto à barra com a ponta da bota. E senta-se cuidadosamente mirando em todas as direcções. Parece ter escolhido deliberadamente o único lugar em que é possível ver todo o bar. Aquilo que a vista não alcança directamente, encontra no espelho. Com a mão, desloca ligeiramente o chapéu para cima, num aceno imperceptível ao dono do local. Hola, Lucas. Qué te pongo?  Pues pá qué preguntas, Manolo? El carajillo de todos los días… Tem a voz rouca dos andaluzes, a fala cantada e o desplante desafiador. Crava-me os olhos azuis e dispara. Y tu de onde eres, forastero? Apanhado de surpresa, engasgo-me com a água gelada, e explico em cristiano ronaldês que de Portugale, qué por supuesto y hombre qué de vacaciones. A conversa prossegue entre curiosidade de Lucas e orações entrecortadas da minha parte. Neste jogo parece existir uma regra tácita que me obriga agora a devolver-lhe as perguntas. Y ustiede qué hace en la vidia? Pues, hombre, yo soy coubói. Arregalo os olhos de espanto. Enquanto as colunas de som vão misturando o ar frio do ar condicionado com a melodia de Get Lucky dos Daft Punk, Lucas explica-me que trabalha agora no deserto de Tabernas, a alguns quilómetros dali. No local onde foram filmados os westerns de Leone, existem agora réplicas de cidades do velho oeste onde se fazem espectáculos de índios e cow-boys para turistas. Vamos, qué he tenido suerte, afirma Lucas. Quando a bolha da construção rebentou, também foi para o paro, como os outros dois que vão aquecendo as cervejas ali mais ao fundo. E se não fosse o trabalho de cow-boy, pois aqui estaria a depositar toda a esperança na máquina tragaperras do bar do Manolo. Enfin, qué soy Lucky Lucas, diz com um sorriso nos lábios, enquanto vai roendo ao canto da boca uma barba de milho que não sei de onde diabo apareceu. Lucky Lucas despede-se: qué lo pases bien, forastero. Sai do bar com um pontapé na porta vai-vem de madeira. Fecho os olhos e imagino-o a montar um cavalo branco numa rua empoeirada, rumo a lugar nenhum. Pago a água gelada e saio a correr. Esfrego os olhos para me habituar à intensidade da luz. Lá fora não há ninguém. Caminho lentamente em direcção ao mar. Lá ao fundo, a carcaça enorme de um prédio abandonado a meio da construção. Atrás de mim, fica o barulho de portas que se fecham. Quando me volto, ainda vejo o Manolo a dobrar a esquina apressadamente depois de encerrar o Last Chance.

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