VOZ DO SANGUE, VOZ DA TERRA
Pais e Filhos, de Ivan Turguéniev
«Uma folha seca do ácer arrancou-se e cai no chão; o seu movimento é perfeitamente idêntico ao voo de uma borboleta. Não é estranho? O mais triste e morto parecido com o mais alegre e vivo.» (p. 142)
A família, matéria-prima do romance por excelência. Dela tudo nasce, a ela tudo regressa com uma espécie de fatalismo que seduziu tantos escritores. O título desta obra não engana: escrevendo na Rússia imperial, com o czar Alexandre II no trono, Ivan Turguéniev (1818-1883) faz da família o principal condimento deste livro, que Vladimir Nabokov não hesitou em considerar o melhor romance do prolífero autor, "um dos maiores do século XIX" - opinião corroborada em listas como esta.
Todo o enredo, desenrolado como um novelo, é aqui pura filigrana. Tendo na mira principal dois jovens estudantes, Arkadi e Bazárov, de visita às respectivas casas paternas, algures na Rússia profunda. Vêm iluminados pelas luzes e pelas letras da cosmopolita Petersburgo e ambos, cada qual à sua maneira, sentem um choque cultural neste regresso às origens, no contacto subitamente reatado com o país rural que parece perpetuar-se na imobilidade desde os confins dos tempos.
São duas personagens em movimento constante, contrastando com esse aparente imobilismo da pátria-mãe - vão de casa em casa, de emoção em emoção, de paixão furtiva em paixão furtiva. Viajam em duplo sentido - no espaço e no tempo, trocando confidências incessantes que permitem ao leitor estabelecer laços de intimidade com qualquer deles.
Arkadi é mais cordato, mais convencional. Bazárov, aprendiz de biólogo, proclama-se niilista e resume toda a sua filosofia ao livre fluir das sensações, apossado por uma insólita fúria de viver: «Cada homem está pendurado por um fio, o abismo pode abrir-se por baixo dele a qualquer momento.» Conhecem-se há tempo suficiente para se considerarem o melhor amigo um do outro, ignorando ainda que a voragem dos dias não tardará a diluir os alicerces dessa amizade à medida que outras personagens forem surgindo em cena.
E este é precisamente um livro com riquíssimas personagens, em que a paisagem humana configura toda a atmosfera do romance.
Arkadi é filho de um próspero aristocrata rural, que confunde a voz do sangue com a voz da terra. O pai, viúvo, apaixonara-se na sua ausência por uma rapariga órfã que acolheu em sua casa e entretanto lhe dera outro filho, ainda bebé. Na mansão familiar vive também um tio solteirão, Pável, que "entrava naquele tempo incerto, crepuscular, em que as nostalgias se parecem com esperanças e as esperanças se parecem com nostalgias, em que a juventude já passou e a velhice ainda não chegou".
Bazárov - "primeiro bolchevista surgido na literatura russa", na opinião de alguns críticos - é o maior orgulho de um casal humilde, simultaneamente dilacerado pela ausência do filho único. Quando regressa, por apenas três dias ao fim de três anos, enche de alegria a velha mãe que já pensava nunca mais o ver.
Os dois jovens têm sonhos grandiosos - querem singrar na vida, pretendem distinguir-se da massa informe dos restantes mortais, ambicionam atingir patamares de felicidade nunca alcançados pelas gerações precedentes. O destino, no entanto, encarrega-se de comprovar que existe sempre um abismo entre o sonho e a realidade. Cada geração tende, muitas vezes, a emular o conservadorismo e a mentalidade conformista das gerações precedentes numa espécie de tributo ao instinto de sobrevivência. Quando isso não sucede, o preço a pagar pode ser a morte.
Pais e Filhos, publicado originalmente em 1862 (com excelente edição portuguesa da Relógio d' Água, datada de 2007 e traduzida do russo por António Pescada), contribuiu em larga medida para a sólida reputação da ficção russa do século XIX - talvez a mais invejada e decalcada de todos os tempos. A par de Tolstoi, Dostoievski, Gogol e Tchekov, Ivan Turguéniev é uma das figuras cimeiras dessa ficção que mudou para sempre a literatura universal e continua a assombrar o mundo.
Este foi um romance que inspirou muitos jovens a iniciar-se na escrita literária: aconteceu, por exemplo, com Ernest Hemingay, que o leu pela primeira vez em Paris, na década de 20, e nunca deixou de incluí-lo entre os seus livros preferidos. Percebe-se bem o fascínio do autor de Adeus às Armas por Turguéniev, aliás na vida real também caçador e viajante como ele: nestas páginas, como em todos os bons romances de Hemingway, a personagem principal é tocada pela tragédia e enfrenta a morte com corajosa galhardia.
Esse fascínio prolonga-se nas gerações contemporâneas. E não custa explicar porquê: como sempre sucede na melhor literatura, a de Turguéniev é profundamente ancorada na sua época - abordando temas como os primórdios da emancipação feminina e a inaceitável servidão feudal - sem deixar de ser também profundamente universal ao falar-nos de temas que nunca passam de moda, confirmando o que dizia Balzac: "O romance é a história privada das nações."
Pais e Filhos fala-nos do que permanece imune à passagem do tempo, da natureza que cumpre o seu destino indiferente às paixões humanas e dos genuínos afectos, capazes de formar de modo mais decisivo um carácter do que toda a sabedoria académica.
É um romance quase musical, cheio de admiráveis diálogos e onde inesperadamente surge um trecho de Schubert ou Mozart que imaginamos mesmo escutar, tal é o poder sugestivo do escritor. Ivan Turguéniev acreditava - como depois dele aconteceria com Henry James ou Joseph Conrad, por exemplo - que o maior dever moral de um romancista é escrever bem.
E é também um romance cheio de cenas inesquecíveis. A do fugaz beijo trocado entre Bazárov e a jovem madrasta de Arkadi. A do duelo que culmina uma relação de ódio entre o biólogo niilista e o aristocrata eslavófilo, incapaz de aceitar os novos tempos. A do definitivo adeus de Bazárov, que tantas vezes se despede neste romance. A daqueles pais revisitando o túmulo do filho, amparando-se mutuamente num afago cúmplice que por vezes só a dor propicia, com um pranto indizível perante um ciclo existencial que inesperadamente se quebrou.
O sangue do seu sangue devolvido à terra, raiz e fim de tudo.
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