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Delito de Opinião

Regresso ao passado

Pedro Correia, 28.03.13

José Sócrates tem, naturalmente, todo o direito à palavra. Ninguém aliás lhe negou esse direito: o ex-primeiro-ministro quebrou só agora o silêncio porque assim o entendeu. E vai voltar a quebrá-lo em sessões contínuas no canal público de televisão, algo sem paralelo na Europa. Ninguém imagina Tony Blair a analisar a governação de David Cameron como comentador residente da BBC, ou José Luis Zapatero a fazer marcação a Mariano Rajoy com púlpito semanal na TVE, ou Nicolas Sarkozy a dissecar regularmente os actos de François Hollande como animador político nos estúdios da France 2.

O problema de Sócrates não é o silêncio. O problema não é sequer esta originalidade tão portuguesa de ter como comentadores televisivos, como se fossem figuras isentas, alguns dos maiores protagonistas da cena política doméstica, que a todo o momento teriam necessidade de fazer declarações de interesses: afinal de contas, só os escuta quem quer.

O problema de Sócrates é surgir como um insólito plágio de si próprio. Para ter verdadeira eficácia, precisaria de ser um Sócrates reinventado. Precisaria de surpreender os portugueses, recriando-se como figura pública neste seu regresso ao comentário televisivo num remake do tirocínio mediático que o guindou à liderança do PS, em 2004.

Mas, na longuíssima entrevista à RTP, surgiu afinal o Sócrates de sempre.

A entrevista esgotou-se num anacrónico regresso ao passado, transportando-nos a 2011. E serviu para confirmar como a vida política acelera de forma vertiginosa. Foi apenas há dois anos e parece ter sido há duas décadas.

Na política, como no teatro, é fundamental não falhar o tempo - por lentidão excessiva ou manifesta precipitação. Sócrates é um actor consumado, mas ficou-me a sensação de que falou no tempo errado. Algo ainda mais estranho porque foi ele mesmo que o escolheu.

Também aqui

 

Sócrates

Patrícia Reis, 27.03.13

Sócrates parou o país. Literalmente. O telejornal foi um preview da entrevista e pouco mais, como se nada de interessante se passasse no mundo (Obama entregou as secretas a uma mulher? Será notícia? Sismo nas Caraíbas? Adiante...). José Rodrigues dos Santos fez uma espécie de crónica/comentário. A grande reportagem eram os contra e os a favor do ex primeiro-ministro às portas da RTP. Até no Japão, Paulo Portas foi incomodado com a entrevista - o fim do silêncio! - de Sócrates. Respondeu inteligentemente, como é seu timbre, e foi à vidinha e fez muito bem. Os dois entrevistadores, um deles sub director de informação, especialista em economia, não acertaram nos números e não tinham capacidade para... bom, para entrevistar um homem que, para todos os efeitos, anda há muitos anos a virar frangos nesta coisa da política e que, tendo repetido a palavra "narrativa" até à exaustão, arrasou o Presidente da República e nem mencionou o nome do primeiro-ministro (leia-se: não lhe deu importância, simplesmente, o que só prova a falta de carisma que o primeiro-ministro em funções exala). Citou Dante. O meu filho comentou: ena pá, o homem é cultural.

A seguir juntaram-se não sei quantos comentadores - não sei se pro bono, mas que importa isso depois do Sócrates ter dito que "tomava a palavra" a convite e sem receber um tostão? - para falar e analisar a entrevista. Portanto, mais uma vez, Sócrates parou o país. Só conheço outra situação similar: um jogo Benfica-Porto ou Benfica-Sporting.

Como sempre foi

José Navarro de Andrade, 27.03.13

Karl Theodore acumulava títulos, tanto como nos seus celeiros se amontoava o trigo, oiro da terra. Kurfürst Karl Theodor von der Pfalz e Kurfürst von Bayern, o que trocado por miúdos leigos e lusos dir-se-á Duque da Baviera e Grande Eleitor do Palatinado do Reno – um dos mais notáveis Príncipes-Eleitores do Sacro Império Romano.

De tanto potencial e poder resultou uma figura por demais dada às artes – patrono das de palco, das ornamentais e das filosóficas, famoso amigo de Voltaire – e a essoutras artes da caça, tanto da grossa do bosque como da fina e feminil de salão. Descreviam-no portanto como um diletante, sem vontade política, preguiçoso e egoísta, rodeado de bastardos, tão prolíficos que deles nem tinha vagar para decorar os nomes.

Em 1763 a pintora Anna Dorothea Therbusch, píncaro do Rococó germânico, e que esplêndido de volutas e panejamentos ele foi, talvez sem igual, fixou a imortalidade de Karl Theodore a óleo, preservado hoje no museu de Mannheim.

Vem este portento a propósito de uma comparação. 13 anos antes o preciso Thomas Gainsborough havia retratato Mr. and Mrs. Andrews. O casal encosta-se a um canto da tela para que a maior área pictórica registe a extensão dos seus domínios. O Cavalheiro confirma o seu poderio com espingarda e cão, símbolos do ócio senhorial, e para que não restassem dúvidas, encosta-se sobranceiramente com displicência e de perna traçada, ao cadeirão onde posa a sua hirta Senhora.

 

 Robert Andrews era parte da gentry rural inglesa, o que não coibiu seu pai de ter ampliado a fortuna com generosos juros de empréstimos financeiros e no comércio com as colónias, para o qual dispunha de uma frota naval. Em 1748 Robert desposou Frances Mary Carter que trouxe no dote as propriedades de Aubrey, à frente das quais ambos posam. O pai de Frances, também ele era um industrial têxtil que prudentemente converteria o capital em terras.

Duas Europas em contraste tão exposto que o podemos ver explicado em dois quadros. Uma Europa até hoje pouco alterada desde esta segunda metade do séc. XVIII, no dealbar do Iluminismo e das Revoluções .

E Portugal?

Portugal na mesma, como se pode atestar no pobríssimo retrato de D. Lourenço de Lencastre, Marquês de Minas e Conde do Prado pelo casamento, muita grandeza porém muito paroquial, oiros brasileiros mas benzeduras de vilão. Obra do sofrível Vieira Lusitano, a mão direita de Lourenço será igual à de Karl, a fazer um gesto que sublinha o óbvio poderio, mas na esquerda, em vez da arma de fogo em descanso blasée de Andrews, olhem-na toda pimpona de canos para o ar. Ao peito, nem os arminhos teutónicos ou a casaca mercantil do inglês; ao baú dos avoengos há-de ter ido vasculhar a armadura negra de pretéritos heroísmos, reclamados como seus por mera infusão sanguínea.

Já éramos tão poucochinhos naqueles dias.  

Coisas privadas

José António Abreu, 27.03.13

Why not leave their private sorrows to people? Is sorrow not, one asks, the only thing in the world people really possess?

Vladimir Nabokov, através do professor Timofey Pnin, resmungando contra a psicanálise (um dos seus ódios de estimação) em Pnin, meio século antes da criação das redes sociais. 

Olivais, Lisboa: a autofilia camarária

jpt, 27.03.13

Cresci no bairro dos Olivais, em Lisboa. Uma urbanização dos anos 1960s, uma mescla sociológica ("melting pot" a la Portugal de então) a acolher a alvorada da macrocefalia urbana no país, o crescimento da cidade "capital do Império" de então - estatuto bem marcado na toponímia do bairro, os Olivais-Sul com as ruas nomeadas segundo as localidades ultramarinas (eu sou "da Bolama") e as dos Olivais-Norte dedicadas a evocar os mortos na guerra colonial (a minha irmã viveu na "Alferes Barrilaro Ruas").

  

 [O Presidente da República, Almirante Américo Thomaz, descerrando a lápide onde se perpetua o nascimento da nova urbanização (imagem encontrada aqui)]

 

Obra de regime, do Estado Novo tardio. Na ideologia, no simbólico, na visão sociológica. E no urbanismo projectado. Um ideal "civilizador" baseado num irenismo sociológico, "vizinhando" diversos estratos sociais, crente nas "boas influências", nos mecanismos de integração cultural e, até, na possibilidade de assim induzir alguma mobilidade social e cultural. Desde uma classe média mais abonada, o pessoal "das vivendas", ali à "rotunda do relógio", passando pelo funcionalismo público de alto estatuto (os tempos eram diferentes ...) agregado nos "prédios dos juízes" ou dos "militares" (oficiais superiores) ou às vivendas para quadros com prole avantajada (que ainda os havia). E, no outro extremo da pirâmide, mas contíguos nas residências, outro tipo de habitação social para reinstalados de zonas pobres, até refugiados das cheias que avassalaram Lisboa em finais dos 1960s, alguns conjugados em zonas que adquiriram nomes pitorescos como "Aldeia dos Macacos" ou "Vietname", que o célebre "Cambodja" era além-fronteiras, apesar destas porosas, já no início de Chelas.

Locais esses, e outros, temidos em criança, de onde vinham as vagas de perigosos "ciganos" (que não o eram), primeiro para nos roubar as bolas e outros "gadgets" (que não se chamavam assim e eram bem poucos), depois para nos entre-aliarmos, aprendendo a viver no mundo como ele é, e, finalmente já como criança-mor, os invadirmos para comprar as diversas drogas com que esfuziámos a chegada da idade. Caldeirões destas mezinhas eram as "escolas" de então, o célebre D. Dinis (também lá em Chelas mas frequentado por gente do "nosso" lado), a "Piscina", os "Viveiros" que fundei e onde andei durante anos, em cima daquela areia vermelha que afinal era tóxica. Escolas de peculiar funcionamento, cuja memória sempre me faz sorrir diante dos tontos queixumes d'agora, esses de que "a escola dantes é que era boa".

Enfim, nisso resultou uma enorme freguesia, então com uma população jovem e descabelada (um dia deu-me a saudade e escrevi este "Olivais", memórias quase em regime etnográfico). Com uma cultura "regional", "tribalista" se se quiser. Calão, percursos, ícones, referências próprias. E mecanismos de solidariedade, que foram ficando, mesmo que algo esgarçados pelas décadas passadas - ainda hoje em Maputo descubro, de quando em vez, um tipo dos Olivais. "Do norte ou do sul?" logo é a questão, "do Modesto, do Tó ou Tosta, do Brisa?", logo segue o inquérito, a ver das raízes e percursos traduzidos pelos cafés, fortins de então, exactamente como outros perguntam colégios ou duplas consoantes ou falsos tios. E fico de olho no "tipo dos olivais", a ver se precisa de algo (e, confesso, se justifica a atenção). Tudo isso porque a gente gostou de lá crescer. Há alguns anos os projectistas, alguns arquitectos que vieram ser célebres, fizeram rescaldo e lamentaram o rumo do bairro e até deixaram entender que reconheciam erros. Talvez. Mas os utilizadores gostaram.

Bem, vem esta memória a propósito do que vai acontecendo no velho bairro. E também para justificar esta minha atenção. Pois um tipo dos Olivais, mesmo que vivendo do outro lado do mundo, fica atento ao que lá se passa.

 

No centro dos Olivais um baldio ficou "esquecido" durante décadas. Originalmente pensado para "centro social", comercial e cultural, mas as convulsões da sociedade nos 70s e 80s estancaram o processo. 

 

 

O baldio foi mato até à democracia. Então aconteceu a reforma agrária. No Alentejo e não só. Pois também ali o terreno foi tomado pela população, as franjas mais "populares" circundantes foram-se a ele e retalharam-no em courelas, dedicadas ao auto-consumo, lembro que em particular de viçosas couves. Cresci nestes prédios, literalmente com machambas diante do nariz.

Anos passados, na euforia da europa e da "economia de serviços", finalmente se avançou com a urbanização. Prédios de habitação, escritórios e um centro comercial (entretanto, após o Acordo Ortográfico, chamado shopping centre). E mais haveria, hotel para o Euro-2004, se calhar mesmo pensado para a EXPO-98, para apoiar o aeroporto, enfim. Claro que ainda não está pronto. A obra começou há 20 anos, em 1993, como mostra esta retrospectiva apresentada no Olivesaria, um blog colectivo dedicado ao bairro que partilhei com alguns velhos amigos-vizinhos.

 

 

 

 

 (Abril de 1993)

A primeira parte do projecto ficou assim, uma "grande muralha", completamente esquecida do tom original do bairro, sempre residencial. Esquecida qualquer ideia de zona verde (certo que há uns canteiros dentro do shópingue). Muitos logo protestaram, até porque o estabelecimento de serviços cívicos, culturais se se quiser, foi apagado. Pois nestes tempos "sem ideologias" o cívico é o centro comercial, que a gente ou vai às compras ou vai ver as montras. E os calhamaços.

 

[grandemuralha.jpg]

 

 (Primeira parte do projecto concluída)

 

Depois, logo depois, avançou-se para a segunda parte do projecto. Mais prédios, nada mais do que prédios. Tudo tão apertadinho, tão utilizado, que um deles está mesmo, literalmente, em cima do passeio. Apesar do grande espaço daquela rotunda. O espantoso é que vinte anos depois do início do projecto as obras não estão concluídas. Claro, há anos que os últimos prédios terminados estão vazios e que vários outros estão ainda em estrutura. A demência, a cupidez, a irracionalidade económica na república da "economia de serviços", da "indústria da construção civil" e do sacrossanto "poder local".

Repito: há vinte anos que começou a construção na rotunda central dos Olivais, entretanto passado de bairro arrabalde a zona central da cidade, pelo crescimento a leste, pela Expo-98. E ainda não está terminada. Nem há actividade construtora.

Neste festim de betão surgiu o óbvio, já anunciado há décadas atrás. Tanto foi o espaço ocupado, inutilizado, e a falta de planificação, que o estacionamento no centro daquele bairro residencial se tornou um quebra-cabeças. A solução camarária demorou. Mas depois foi simples. (Quase literalmente) Lapidar.

 

 

 

Foi-se à rotunda (esta, onde está um tal de "Spacio Shopping") e instalou o sentido único para os automóveis. Para facilitar o estacionamento em espinha, claro. Mas assim constituindo um autódromo.

Dada a dimensão da área é uma total violência naquela área urbana. Sob o ponto de vista urbanístico. E também securitário, tornando uma aventura pedonal uma mera ida às compras. Ainda para mais num universo tão envelhecido ("pai, porque há tantos velhos em Portugal?" pergunta-me a minha filha, espantada, aquando nos Olivais).

A desmesurada e irreflectida medida está em "experiência" durante este semestre. Alguns olivalenses, de rija têmpera, lançaram agora uma petição. Para refutar esta insensatez. Urbanística. E também securitária. A petição está aqui: contra as alterações no trânsito e na mobilidade nos Olivais Sul.

Não será apenas um assunto para "olivalenses". Será, com toda a certeza, assunto para qualquer habitante do país com sensibilidade . Para qualquer peão. Para qualquer cidadão. Nem que seja apenas para ensinar algo aos autarcas. Educá-los, civilizá-los. Exactamente, o tal propósito que alimentou o projecto "Olivais" ...

Sócrates entrevistado pelo Delito de Opinião

Rui Rocha, 27.03.13

Goste-se ou não, o regresso de Sócrates à RTP constitui um facto político da máxima relevância. Em todo o caso, é justo recordar que  o DELITO DE OPINIÃO obteve em exclusividade, já em Setembro de 2011, a primeira entrevista do anterior primeiro-ministro. Face à relevância histórica desse acontecimento, aqui se recordam as respostas de José Sócrates:

 

DELITO DE OPINIÃO - Religião:

JOSÉ SÓCRATES- Em certas circunstâncias, admito que possa ser um bom investimento. Um dia, talvez possa ter uma. A minha.

DELITO DE OPINIÃO - Felicidade:

JOSÉ SÓCRATES - Sempre. Enquadrada por uma política de Estado destinada a promovê-la e a incentivá-la. No futuro, também a medi-la.

DELITO DE OPINIÃO - Auto-estima:

JOSÉ SÓCRATES - Completamente. Quem inventou o conceito não devia esconder-se na sua modéstia. Mas, não esqueço que a opinião dos outros é a fonte do meu sucesso. É fundamental influenciá-la. Tal e qual como faço com o meu espelho.

DELITO DE OPINIÃO -Arte:

JOSÉ SÓCRATES - Fundamental. Interessam-me todos os artistas ainda vivos. Não existe nenhuma vantagem em dedicar tempo aos clássicos, a todos os que já desapareceram. Nenhum deles pode falar bem de mim. Prescindir dos clássicos deixa-me à vontade para promover todos os que estão vivos e esperar o retorno.

DELITO DE OPINIÃO - Polémica:

JOSÉ SÓCRATES - Indispensável. Encaro-a como instrumento de notoriedade. Tudo o que nos rodeia é tão relativo como o gosto literário. Tornarmo-nos objecto de polémica ou polemizar sobre os mais diversos temas, daí retirando todo o benefício inerente, deveria ser o nosso objectivo prioritário.

DELITO DE OPINIÃO - Convicções políticas:

JOSÉ SÓCRATES - Tenho. Mas, não me revejo nas causas da militância tradicional. A esquerda e a direita são divisões redutoras. A esquerda de quem desce é a direita de quem sobe.

DELITO DE OPINIÃO - Ética:

JOSÉ SÓCRATES - Sou um crítico da ética da responsabilidade. A ética deve ser mediada pelo resultado. Prefiro a ética do cálculo e do benefício. Não há justiça, só êxito. O enriquecimento rápido, que muitos criticam, é para mim prova de competência. É claro que existe sempre uma corrente conservadora que se alimenta de inveja e de escândalos. Os escândalos são para mim, todavia, um sintoma do sucesso.

DELITO DE OPINIÃO - Causas:

JOSÉ SÓCRATES - Todas. Exerço em permanência a minha liberdade de escolha. Escolho as minhas marcas, a moda, as minhas referências. O socialismo de mercado que defendo é isso mesmo. O espaço onde o romantismo das causas e a bolsa de valores se encontram, em síntese, mas com clara prevalência para esta última. É o mercado que nos proporciona o momento da afirmação da nossa identidade.

DELITO DE OPINIÃO - Pobreza:

JOSÉ SÓCRATES - Não gosto. Os intelectuais é que gostam de pobreza. Eu sou um pragmático. É preciso que os pobres tenham tudo o que for necessário para que a minha aspiração de sucesso material tenha legitimidade. Não suportaria um país em que a minha ambição pessoal, as minhas férias, os meus gadgets, os meus jantares, pudessem ser considerados ofensivos por quem não tem nada. É para isso que serve, entre outras coisas, o Estado Social.

DELITO DE OPINIÃO - Filosofia e Pensamento:

JOSÉ SÓCRATES - Senti a vertigem da descoberta ao ler Nietzsche na sua vertente niilista. Para além disso, aprecio muito Des Cartes. E Des Epistoles também.

DELITO DE OPINIÃO -Amizade:

JOSÉ SÓCRATES - Os meus cães. Tenho com eles o entendimento perfeito. Não há competição entre nós, nem conflito de vontades. Eu mando e eles obedecem.

DELITO DE OPINIÃO - Relação consigo próprio:

JOSÉ SÓCRATES - Não podia viver sem mim.

Lidar com o comentador

João André, 26.03.13

Não posso dizer que tenha simpatias por José Sócrates. Não votei nele nem teria intenções de o fazer. Para mim, a única coisa que fazia dele um socialista era a sua palavra e sabemos qual o valor que tem (quase nenhum, mas superior ao de qualquer actual ministro).

 

Seja como for, as reacções à sua ida para comentador são geralmente ridículas. Variadíssimos comentadores sem qualquer qualidade ou credibilidade populam os nossos media e nós não pedimos a sua exoneração, iniciamos petições para boicotar o media em questão ou de uma forma geral fazemos muito barulho. Sei que muita desta indignação é fabricada para poder desviar atenções daquilo que o governo vai fazendo. É estratégia tão velha que Carbono-14 não serve para a datar. E funciona.

 

Há, no entanto, uma forma muito mais simples de evitar ouvir as opiniões de José Sócrates: desliguem a televisão. Também se evita assim muito outro lixo televisivo bem pior que as declarações de um ex-governante.

A subserviência à troika

Luís Menezes Leitão, 26.03.13

 

A subserviência e a falta de sentido de Estado dos nossos políticos perante a troika é algo que brada aos céus. António José Seguro anuncia uma moção de censura no Parlamento, mas antes mesmo de a apresentar escreve uma carta à troika, justificando que a moção é apenas dirigida ao Governo e explicando que nunca porá em causa o memorando. O Parlamento só debaterá assim a moção de censura depois de a troika sobre a mesma se pronunciar, o que leva a uma total menorização do Parlamento português perante instituições estrangeiras. Há efectivamente muitas razões para censurar o Governo mas, depois desta carta que escreveu, António José Seguro deveria era começar por censurar-se a si próprio. 

Balada breve

Ana Vidal, 26.03.13

Batem forte, fortemente,
Nesta invernia sem fim.
É mais chuva, certamente,

E mais vento, e frio silente,

Que gente não bate assim.


Quem bate assim, cegamente,
Com tão estranha malvadeza,
Que bem se ouve, bem se sente?
Além do tempo inclemente,
É o Gaspar, com certeza.


Que quem é mais gastador
Sofra tormentos, enfim.
Mas aos portugueses, Senhor,
Porque lhes dais tanta dor?
Porque padecem assim?



(Augusto Gil revisitado, versão 2013)

Duas acusações recorrentes

José António Abreu, 26.03.13

Passos Coelho e Vítor Gaspar não conhecem o país.

Com uma parte desta acusação é fácil simpatizar: eu também preferiria que a carreira profissional dos actuais líderes políticos fosse mais rica. Mas convém não ter ilusões: em Portugal como noutros países (afinal, que carreira fora da política teve François Hollande, essa momentaneamente imprescindível referência da esquerda?), os líderes políticos emergem dos partidos, pouco mais tendo feito na vida que não política. Nem sequer é difícil perceber a razão: muitos empresários e gestores preferem quedar-se na sombra, beneficiando de um regime de interesse mútuo, e os restantes, aqueles verdadeiramente dinâmicos e competentes, não têm tempo nem apetência para os meandros insalubres do jogo político (excepção feita a esse expoente da qualidade governativa e do conhecimento das necessidades dos cidadãos chamado Silvio Berlusconi, evidentemente). Esta última razão aplica-se também a médicos, académicos, juristas, economistas, cientistas, contabilistas, funcionários de escritório, comentadores televisivos e surfistas. Sendo que conviria reconhecer um ponto importante: quando muito, a diferença no conhecimento do «mundo real» – ou, noutra expressão adorável, do «país real» – entre políticos como Passos Coelho ou Vítor Gaspar (ou António José Seguro) e a maioria dos médicos, académicos, juristas, economistas, cientistas, contabilistas, funcionários de escritório, comentadores televisivos e surfistas não ultrapassa dois ou três pontos numa longuíssima escala – e estou a ser simpático para os médicos, académicos, juristas, economistas, cientistas, contabilistas, funcionários de escritório, comentadores televisivos e surfistas. Na verdade, quem se pode reclamar da capacidade de conhecer o «país»? Mais: o que é «o país»? Um pescador de caxinas, um maquinista da CP, um doutorado pela Católica, um reformado sentado num banco de jardim, um broquista da indústria da cortiça, o Fernando Ulrich, o sem-abrigo que dorme junto à porta do balcão da Praça da Galiza do BPI (no kidding), o proprietário de um café em Olhão, um investigador bolseiro, o emplastro que aparecia na televisão atrás de políticos e desportistas, um elemento dos No Name Boys, o António Lobo Antunes, o pensionista que, em conluio com o patrão, passou anos a declarar apenas três dias de trabalho por semana e agora se queixa do montante da pensão de reforma, uma dona de casa de Castelo de Vide, um cirurgião da unidade cardiotorácica dos Hospitais de Coimbra, um pastor da Serra da Estrela, a presidente da Assembleia da República e a sua reforma aos 42 anos, o vimaranense que gritou «Messi, Messi, Messi» porque o Ronaldo não lhe ligou às miúdas? Ou será o próprio Ronaldo e o seu Lamborghini Aventador? O país é demasiadas coisas para que alguém possa reclamar conhecê-lo bem e não são três, dez ou vinte anos numa empresa (ou em duas ou em três), ou numa universidade, ou num escritório de advocacia que permitem conhecê-lo. Não da forma como parecemos exigi-lo aos líderes políticos. Mas talvez consigamos chegar a uma resposta satisfatória acerca do que significa «o país» e, muito especialmente, «conhecer o país» notando que Sócrates, com o seu currículo de ligações a câmaras municipais e a projectos manhosos, com as suas políticas beneficiando invariavelmente os empresários amigos e as classes habituadas a serem prioritárias em qualquer decisão governamental, raramente ouviu a acusação. Deve ser isto, então, «conhecer o país»: estar mergulhado nos seus vícios e disponível para os perpetuar. De resto, só assim se entende que alguns comentadores incluam nos pontos negativos a circunstância de Passos, Gaspar e Seguro, para além de nunca terem tido um emprego «normal», nunca terem sequer desempenhado cargos em governos anteriores ou autarquias – o que, equivalendo a acusá-los de fazerem parte do sistema por não terem desempenhado um papel oficial no sistema, tem lógica porque, na realidade, o que toda a gente continua a desejar é continuidade: as políticas e a retórica do costume. Só que Portugal não precisa de continuidade. Precisa de mudança. E, infelizmente, para a implementar, talvez Passos – como muitas pessoas em torno dele; como Seguro – ainda conheça o país demasiado bem. Só assim se explicam a força inabalável com que avançou para os aumentos de impostos e todas as dúvidas que parecem restar-lhe quanto ao corte da despesa.

 

Eles só olham para os números; as pessoas não são números.

Depois de tantas previsões falhadas por parte de Vítor Gaspar, esta parece hoje uma acusação incongruente mas, há três ou quatro meses, o Bloco de Esquerda, benza-lhe Deus o voluntarismo, até colocou a segunda parte da frase num cartaz. É verdade que, nas últimas décadas, à medida que as pessoas iam conseguindo melhores níveis de vida do que em alguma outra época da História, o calor humano parecia descer. A posse – nisto os marxistas tinham razão – implica egoísmo. É também verdade que muita gente em cargos de responsabilidade possui mais bagagem teórica do que experiência prática. Mas o nosso problema não advém de os nossos governantes olharem demasiado para os números. Pelo contrário: o problema nasceu ou, pelo menos, agravou-se muito para além do necessário por, ao longo de anos, não terem olhado o suficiente. Tivessem-no feito, e tivessem agido em função do que viam, e as pessoas estariam hoje melhor. As mesmas pessoas que, não sendo números, deviam aprender que eles querem dizer algo, que têm consequências práticas nas suas vidas – e deviam aprender a exigir aos políticos que olhassem bem para eles e não apenas numa perspectiva de curto prazo. Mas ignorar os avisos (enquanto o pau vai e vem, folgam as costas, certo?) ou até, como no caso do Bloco de Esquerda, do PC, da CGTP, exigir continuamente medidas que agravam as hipóteses de «os números» virem a ter consequências nefastas e depois regurgitar clichés é tão mais fácil, não é?

Torquato da Luz

jpt, 26.03.13

 (Imagem encontrada aqui)

 

Leio a nota que sua filha colocou ontem no seu tão cuidado blog Ofício Diário, anunciando-nos, aos fiéis leitores, a morte de Torquato da Luz. Sabia-lhe o nome, o papel na imprensa portuguesa, em particular em tempos épicos da instauração da democracia. Mas foi nesse "Ofício Diário" que o conheci, acompanhando-o ali, onde durante anos, desde 2004, de um modo paciente, apaixonado e tão sóbrio, partilhou a sua poesia.

 

Sou um mau leitor de poesia, impaciente, quantas vezes buscando-lhe o rumo e mesmo desenlaces que ela não quer ter. Ou que eu não consigo descortinar. E nisso lembro agora que, há um mês, ao chegar ao "Sem drama", último poema que ali deixou, me senti retratado naquele, nada acusatório mas tão descansadamente irónico, transpirando a bonomia do homem vivido e sábio, "Poucas pessoas gostam de poesia, / embora a maioria, / como é sabido, diga que sim. / (...) / Vicejando em qualquer lado, / há quem a ponha na lapela / para o encontro aprazado. / Outros mostam-na à janela / no lugar do cortinado. / Mas, sem que nisso haja drama, / raros são decerto aqueles / que a fazem dormir com eles / noite após noite na cama". Pensei até enviar-lhe nota dessa minha sensação de retratado, "sem drama" claro. Falhei nisso, perdendo-me em demoras.

 

Com gentileza, que me foi até surpreendente, e que inicialmente atribuí à solidariedade no seio desta confraria bloguística, foi-me enviando os livros que ia publicando. Agradeci-lhos, com sinceridade, mas nunca me atrevi a perguntar-lhe da razão de ofertar este leitor sempre silencioso. Fiquei-me com a ideia, fico-me com ela, pois me é agradável, que fosse forma dele remeter o seu trabalho para este Maputo, o ex-Lourenço Marques, onde um dia, longínquo das quatro décadas já decorridas desde 1971-2, entrou com os seus poemas nessa espantosa, até lendária, aventura do "Caliban", revista como-se-fundacional capitaneada por António Quadros (então J.P. Grabato Dias) e Rui Knopfli. Sendo assim meio de refutar, pelo menos em parte, aquilo do "Tudo o que outrora soube e já esqueci: / os nomes, coisas, datas e lugares. / (...) / Tudo o que tive e nunca mais terei." (em "Tudo"), neste caso um seu lugar de ombrear poético.

 

Assim sendo, deixando-me crer nesta versão, nesta sua morte regresso ao Torquato da Luz de "Caliban", neste meu volume que um dia, abençoado seja, José Soares Martins e Nelson Saúte, abençoados sejam, decidiram reeditar e reavivar. A um Torquato da Luz invejável, capaz de deixar isto (será que o viveu?, e se sim ainda mais invejável ..., invejo-o eu, sempre estancado diante da aflição):

 

Apenas aflição

 

Apenas aflição e nada mais.

Um arrepio correndo o corpo todo.

Estar aflito é um modo

de estar com os demais.

 

Aflito. Como se um rio

de súbito saído do seu leito

afogasse o navio

do corpo a que estou sujeito.

 

Não temas. É aflito que escrevo.

Aflito realizo

ser de tudo o que vejo o dono e o servo.

 

Tudo o mais que preciso

é saber que me devo

um permanente aviso.

 

(Caliban, nº 3-4)

 

Ana Vidal deixa nos comentários ao postal um poema auto-retrato de Torquato da Luz. Mais do que se justifica trazê-lo para aqui:

 

O QUE DER E VIER

Tributário apenas da verdade,
avesso a peias e grilhetas,
feito da massa dos poetas
e dos que amam a liberdade,
sensível à dor própria e à dor alheia,
lutando até ao fim por uma ideia
de peito aberto e sem ter medo
de nada nem de ninguém,
capaz de guardar segredo
mas de o revelar também,
eis como sempre hei-de ser
para o que der e vier.