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Delito de Opinião

Recordações

Rui Rocha, 31.03.13

Há recordações que doem. Descubro, todavia, que não são as do passado que mais me perturbam. São as que prevejo que me encontram mais indefeso. É o que se passa quando olho para as fotografias que tiro aos meus filhos. Sei que um dia, daqui a alguns anos, vou reencontrá-las num álbum, numa gaveta ou num cartão de memória. E dói-me agora a saudade que então vou sentir destes momentos, deles ainda tão nossos. São essas lágrimas futuras que já hoje me tomam os olhos.

Telefonemas

José António Abreu, 31.03.13

Ligo a familiares, amigos e colegas por razões particulares (telefonemas profissionais são outra realidade) e passo a duração da chamada em busca de assunto. Hesito. Repito-me. Balbucio trivialidades. Há pessoas capazes de ficar a conversar durante horas – sobre a saúde, o tempo, o almoço, as brincadeiras dos filhos, a idiotice ou a injustiça dos colegas de trabalho, um programa de televisão, os resultados do futebol, a temperatura e o tempo correctos para cozinhar pão-de-ló, os inacreditáveis erros de Gaspar e as inacreditáveis mentiras de Passos. Eu não. Ao vivo, cara a cara, até falo bastante. O telefone, porém, seca-me a verve. Desconfio que as pessoas a quem ligo acham que sou brusco e que só lhes telefono por obrigação. A primeira parte talvez seja verdade, a segunda decididamente não é. Regista-se uma componente de esforço mas advém da antecipação do desconforto, de saber não apenas que serei incapaz de manter a conversa durante muito tempo mas também que depressa isso ficará evidente. Nada mais. Por outro lado, como seria inevitável, não consigo deixar de me interrogar se as pessoas que me telefonam o fazem a contragosto, antecipando o seu próprio desconforto e sentindo executar um acto inútil. Não é inútil. Para ser importante, um telefonema não necessita de durar mais do que dez segundos nem de incluir mais do que algumas frases desconjuntadas. Digo eu, procurando convencer-me de que as aparências não definem a realidade. Como em tudo, regista-se um ponto positivo: estarei entre as pessoas que menos dinheiro gastam neste país em chamadas telefónicas. Mas isso também me impede de usar o argumento económico para terminar as conversas («Olha, vou desligar que isto fica caro»), uma vez que mentir, pela falta de respeito que constituiria, está fora de questão. E, assim, quedo-me totalmente sem assuntos para prosseguir nem desculpas para desligar.

mau tempo

Patrícia Reis, 31.03.13

Estão 14 distritos em alerta, a chuva parece que não vai parar e as janelas da casa mínima onde estou ameaçam cair. Oiço o vento lá fora e, confesso, tenho medo. O melhor será um livro.

 

Leio:

 

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Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...

Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,
E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro...

O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...
Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no fato de haver coro...

A missa é um automóvel que passa
Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste...
Súbito vento sacode em esplendor maior
A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe
Com o som de rodas de automóvel...

E apagam-se as luzes da igreja
Na chuva que cessa...

[Fernando Pessoa, in Chuva Oblíqua]

Da liberdade

Laura Ramos, 31.03.13

«Se eu falasse todas as línguas, as dos homens e as dos anjos, mas não tivesse amor, seria como um bronze que soa ou um címbalo que retine.

Se eu tivesse o dom da profecia, se conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, se tivesse toda a fé, a ponto de remover montanhas, mas não tivesse amor, nada seria.

Se eu gastasse todos os meus bens no sustento dos pobres e até me fizesse escravo, para me gloriar, mas não tivesse amor, de nada me aproveitaria.

O amor é paciente, é benfazejo; não é invejoso, não é presunçoso nem se incha de orgulho; não faz nada de vergonhoso, não é interesseiro, não se encoleriza, não se alegra com a injustiça, mas fica alegre com a verdade. Ele desculpa tudo, crê tudo, espera tudo, suporta tudo.

O amor jamais acabará.As profecias desaparecerão, as línguas cessarão, a ciência desaparecerá.

Com efeito, o nosso conhecimento é limitado, como também é limitado nosso profetizar.

Mas quando vier o que é perfeito, desaparecerá o que é imperfeito.

Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Quando me tornei adulto, rejeitei o que era próprio de criança.

Agora nós vemos num espelho, confusamente, mas, então veremos face a face. Agora, conheço apenas em parte, mas, então, conhecerei completamente, como sou conhecido».

 

Carta de S. Paulo aos Coríntios

Páscoa

Pedro Correia, 31.03.13

 

«E era com grande poder que os Apóstolos davam testemunho da Ressurreição do Senhor Jesus, gozando todos de grande simpatia. Entre eles não havia ninguém necessitado, pois todos os que possuíam terras ou casas vendiam-nas, traziam o produto da venda e depositavam-no aos pés dos Apóstolos. Distribuía-se, então, a cada um, conforme a necessidade que tivesse.» (Actos dos Apóstolos, 4: 34-35)

 

O dia que hoje celebramos no mundo de matriz cristã tem um significado que ultrapassa a letra da liturgia, podendo ser assimilado por todos os seres humanos de boa vontade. Simboliza desde logo a supremacia absoluta da espiritualidade sobre o materialismo. Simboliza o resgate de todos os injustiçados à face da terra - aqueles que, como Jesus, também sobrevivem à traição, à calúnia, à humilhação e à tortura. Simboliza enfim o triunfo dos justos contra a iniquidade política (personificada em Pôncio Pilatos, que sabia estar a permitir a condenação de um inocente) ou religiosa (personificada em Caifás, sumo sacerdote da Judeia). Cristo, ao transcender o plano da morte física após sucumbir sob intenso sofrimento, demonstra que todos os filhos de Deus são revestidos da mesma dignidade essencial. "Nenhum poder terias sobre mim se do Alto te não fosse dado", diz a um perplexo Pilatos, segundo relata o Evangelho de João.

O cristianismo, para não trair a sua raiz nem o seu destino, jamais deve omitir a face humana de Jesus, que nasce numa gruta obscura e morre crucificado entre dois salteadores. Alheado de toda a glória mundana, despojado de todos os bens terrenos, proclama para a eternidade que nem a morte é capaz de travar a indomável essência do espírito.

Reflexão para esta Páscoa. Reflexão para qualquer Páscoa que vier.

 

Texto reeditado

 

Quadro: Ressurreição, de Marc Chagall (1937)

Ler

Pedro Correia, 30.03.13

Uma sugestão. De Rui Albuquerque, no Blasfémias.

Um homem muito sobrestimado. De José Carlos Alexandre, n' A Destreza das Dúvidas.

Um problema com a narrativa. Do Paulo Gorjão, na Bloguítica.

O político regressa sempre ao lugar da política. Do Pedro Rolo Duarte.

Qual o melhor momento de um político derrotado? Da Helena Matos, no Blasfémias.

Die Euro-Gruppe. Do José Meireles Graça, no Forte Apache.

Óscar Lopes (1917-2013). Do Pedro Picoito, no Declínio e Queda.

E se Anne Frank ganhasse hoje o Nobel? Da Joana Lopes, no Entre as Brumas da Memória.

Loving Story. De António de Araújo, no Malomil.

Querer ser feliz. Do Luís de Aguiar Fernandes, na Manifestação Espontânea.

Façam lá justiça à cigana fumadora. De Diogo Leote, no Escrever é Triste.

Da dignidade

Helena Sacadura Cabral, 30.03.13

Carta aberta ao ministro das Finanças alemão

"O Senhor Ministro afirmou que há países da União Europeia que têm inveja da Alemanha. A primeira observação que quero fazer, Senhor Ministro, é que as relações entre Estados não se regem por sentimentos da natureza que referiu. As relações entre Estados pautam-se por interesses.

Queria dizer-lhe também, Senhor Ministro, que comparar a atitude de alguns Estados a miúdos que na escola têm inveja dos melhores alunos é, no mínimo, ofensivo para milhões de europeus que têm feito sacrifícios brutais nos últimos anos, com redução muito significativa do seu poder de compra, que sofrem com uma recessão económica que já conduziu ao encerramento de muitas empresas, a volumes de desemprego inaceitáveis e a uma perda de esperança no futuro.

E acrescentou o Senhor Ministro: “Os outros países sabem muito bem que assumimos as nossas responsabilidades…”. Fiquei a saber que a nova forma de qualificar o conceito de poder é chamar-lhe responsabilidade!

E disse mais o Senhor Ministro: “Cada um tem de pôr o seu orçamento em ordem, cada um tem de ser economicamente competitivo”. A este respeito gostaria de o informar que já tínhamos percebido, estamos a fazê-lo com muito sacrifício, sem tergiversar e segundo as regras que foram impostas.

Quando o ministro das Finanças do mais poderoso Estado da União Europeia faz afirmações deste jaez, passa a ser um dos responsáveis para que o projeto europeu esteja cada vez mais perto do fim.

Passo a explicar. O grande objetivo do projeto europeu foi garantir a paz na Europa e como escreveu um antigo e muito prestigiado deputado europeu, Francisco Lucas Pires, “… essa paz não foi conquistada pelas armas mas sim através de uma atitude de vontade e inteligência e não como um produto de uma simples necessidade ou automatismo…”. A paz e a prosperidade na Europa só foram possíveis porque no desenvolvimento do projeto político de integração europeia teve-se em conta a grande diversidade de interesses, as diferentes culturas e tradições e os diferentes olhares sobre o mundo. Procurou-se sempre conjugar todas essas variedades, tons e diferenças dos Estados-membros numa matriz de valores comuns.

Esta declaração de Vossa Excelência põe tudo isto em causa, ao apontar o sentimento da inveja como o determinante nas relações entre Estados-membros da União Europeia. Quero dizer-lhe, Senhor Ministro, que o sentimento da inveja anda normalmente associado a uma cultura de confrontação e não tem nada a ver com uma outra cultura, a de cooperação.

Com esta declaração, Vossa Excelência quer de forma subtil remeter para outros Estados a responsabilidade pela confrontação que se anuncia. Essa atitude é revoltante, inaceitável e deve ser denunciada.

A declaração de Vossa Excelência, para além de revelar uma grande ironia, própria dos que se sentem superiores aos outros, não é de todo compatível com a cultura de compromisso que tem sido a matriz essencial da construção do sonho europeu dos últimos 60 anos.

Vossa Excelência, ao expressar-se da forma como o fez, identificando a inveja de outros Estados-membros perante o “sucesso” da Alemanha, está de forma objetiva a contribuir para desvalorizar e até aniquilar todos os progressos feitos na Europa com vista à consolidação da paz e da prosperidade, em liberdade e em solidariedade. Com esta declaração, Vossa Excelência mostra que o espírito europeu para si já não existe.

Eu sei que a unificação alemã veio alterar de forma muito profunda as relações de poder na União Europeia. Mas o que não deveria acontecer é que esse poder acrescido viesse pôr em causa o método comunitário assente na permanente busca de compromissos entre variados e diferentes interesses e que foi adotado com sucesso durante décadas. O caminho que ultimamente vem sendo seguido é o oposto, é errado e terá consequências dramáticas para toda a Europa. Basta ler a história não muito longínqua para o perceber.

Não será boa ideia que as alterações políticas e institucionais necessárias à Europa venham a ser feitas baseadas, quase exclusivamente, nos interesses da Alemanha. Isso seria a negação do espírito europeu. Da mesma forma, também não será do interesse europeu o desenvolvimento de sentimentos anti-Alemanha.

Tenho a perceção de que a distância entre estas duas visões está a aumentar de forma que parece ser cada vez mais rápida e, por isso, são necessários urgentes esforços, visíveis aos olhos da opinião pública, de que a União Europeia só poderá sobreviver se as modificações inadiáveis, especialmente na zona euro, possam garantir que nos próximos anos haverá convergência entre as economias dos diferentes Estados-membros.

As declarações de Vossa Excelência vão no sentido de cavar ainda mais aquele fosso e, por isso, como referiu recentemente Jean-Claude Juncker a uma revista do seu país, os fantasmas da guerra que pensávamos estar definitivamente enterrados, pelos vistos só estão adormecidos. Com esta declaração, Vossa Excelência parece querer despertá-los.

José da Silva Peneda

Presidente do Conselho Económico e Social"

 

São atitudes destas que se esperam de políticos responsáveis. Silva Peneda merece todo o nosso respeito!

Sebastianismo

Helena Sacadura Cabral, 29.03.13
D. SEBASTIÃO, Rei de Portugal...
Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.
Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?
Nesta sexta feira da Paixão, cinzenta, chuvosa e fria deixo-vos este poema sempre tão pré monitório. De facto, todos nós vivemos à espera de que, um dia, D. Sebastião voltará para nos salvar. De nós mesmos!

Give my children sunny smiles, give them moon and cloudless skies

José António Abreu, 28.03.13

Apesar de Bowie ter inesperadamente lançado um novo álbum há um par de semanas, não resisto a recuperar este tema de Heathen, de 2002. Trata-se de uma espécie de canção de protesto, ou talvez de reivindicação, que me parece muito adequada aos tempos que correm, especialmente por se encontrar impregnada de uma teimosia ingénua que falta a outras (sim, a essa também). O vídeo, amador mas delicioso, é composto por imagens da Dinamarca nas décadas de 50, 60 e 70.

Reflexão do dia

Pedro Correia, 28.03.13

«O princípio de confiança [na União Europeia] foi agora quebrado. A partir deste momento, o euro já não é uma só moeda. Só por retórica se poderá dizer que Berlim e Nicósia têm a mesma moeda. Haverá bancos sediados em 'zonas' mais seguras do que outras. A confiança dos mercados não poderá também ser igual na zona euro.»

Pedro Lomba, no Público

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