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Delito de Opinião

É, ou não, mérito do Governo o regresso aos mercados?

José Maria Gui Pimentel, 31.01.13

Embora concorde genericamente com a estratégia seguida, a verdade é que a resposta objectiva é: não. Desde o início de Setembro, o spread da dívida portuguesa face à alemã tem diminuido bastante, mas tem-no feito grosso modo paralelamente ao das dívidas dos restantes "periféricos" (na verdade a queda do spread da dívida grega foi bem mais pronunciada, tendo começado a descolar depois das decisões de novembro do Eurogrupo).

 

Daqui se percebe que a súbita queda do spread -- que se encontra já em quase metade dos valores de início de Setembro -- não resultou de nenhum factor específico de Portugal. Isto não invalida, ainda assim, que o Governo possa com alguma propriedade argumentar que as suas políticas -- nomeadamente a relativa acalmia conseguida, apesar de tudo, nos últimos meses e a aprovação do Orçamento -- permitiram que os factores externos que beneficiaram a dívida portuguesa pudessem actuar.

 

A propósito, ao contrário do que tem sido dito, esta pronunciada diminuição da pressão dos mercados não se deveu exclusivamente aos comentários de Mario Draghi -- afirmando estar disposto a fazer tudo quanto necessário para salvar o euro -- e às subsequentes medidas do BCE. Resultou também da determinação demonstrada, finalmente, pelos líderes políticos europeus (particularmente Angela Merkel) em manter o euro unido, e, mais do que isso, ao facto de os chamados países core terem tomado medidas que os levaram a um ponto praticamente de não retorno. Em suma, Portugal encontra-se subitamente no caminho de regresso aos mercados essencialmente devido ao facto de os decisores europeus terem empenhado capital, político e monetário na sobrevivência da moeda-única.   

Um abraço colectivo ao Adolfo

André Couto, 31.01.13

Sou politicamente insuspeito no elogio ao nosso Adolfo Mesquita Nunes, a quem hoje foi entregue a Secretaria de Estado do Turismo. Estou certo que todos neste espaço, autores e leitores, lhe damos a maior força, certos de que estará à altura de tão nobre desafio.
A aposta no Turismo por parte do Governo tem sido curta e, diga-se, por parte da oposição as críticas têm sido estilo calças pelos tornozelos. Não é preciso, no entanto, ser visionário, para perceber que este pode ser um sector chave na recuperação económica do País, através da geração de emprego e captação de investimento. Até a aparente sazonalidade deste sector pode ser contornada, Portugal não é só um País de praias, havendo todo um outro País a divulgar...
O Adolfo Mesquita Nunes sabe isto melhor que nós. Este é um dia feliz, porque alguém indubitavelmente competente foi designado para o Governo.

Péssimo ou forward to the past e back to the future

José António Abreu, 31.01.13

Vejamos então, da frente para trás para que os nossos cérebros extenuados possam ir suavemente relembrando os gloriosos pormenores do passado recente. Os governos de José Sócrates constituíram o paradigma da teimosia suicida, tendo conduzido o país ao limiar da bancarrota. A curto prazo dificilmente serão ultrapassados em arrogância, miopia, estupidez. O governo de Santana Lopes foi um curto mas intenso concentrado de trapalhadas acerca do qual (e das quais) quanto menos se disser, melhor. O governo de Durão Barroso começou com o discurso certo e, perante a resistência dos poderes instalados e uma comunicação social ignorante e hostil, acabou em desistência e fuga. Os governos de António Guterres aproveitaram a abundância de dinheiro barato proporcionado pela descida das taxas de juros para distribuir benesses e fazer crescer o Estado. Fugiram sempre de qualquer medida que suscitasse pigarreio à oposição ou às corporações (as quais, pelo papel cada vez mais decisivo do Estado na economia, se iam tornando mais fortes) como o diabo foge da cruz (analogia em honra do catolicismo de Guterres que, talvez por causa dele, foi até agora o único a admitir pecados) e acabaram no famoso – mas largamente ignorado – discurso do pântano. Os governos maioritários de Cavaco Silva aproveitaram a abundância de dinheiro europeu para estabelecer o modelo baseado no Estado e nas obras públicas que nunca mais foi possível alterar. Ah, e também o modelo da arrogância, que Sócrates emulou e – no que parecia impossível – melhorou através da injecção de uma dose cavalar de histrionismo. O governo minoritário de Cavaco Silva foi excelente a aproveitar o trabalho do governo anterior (já lá vamos) e as primeiras consequências da entrada na então CEE. O governo de Mário Soares e Mota Pinto enfrentou uma situação de pré-bancarrota com coragem e determinação mas também mais instrumentos do que hoje se encontram disponíveis e um Estado que, por menos pesado (cerca de 36,5% do PIB), gerava menos inércia. O governo de Pinto Balsemão levou o país ao limiar da bancarrota e o melhor que se poderá dizer é que o fez com mais ingenuidade e muitíssimo menos arrogância do que o de Sócrates. O governo de Sá Carneiro e Freitas do Amaral estabilizou o sistema político ao demonstrar que a direita (uma direita muito centrista mas era a possível) podia ocupar o poder. A nível económico, porém, não merece os mesmos elogios, tendo aproveitado a retoma que se seguiu à pré-bancarrota de 1978 para políticas eleitoralistas (sensivelmente o mesmo que Cavaco faria em 1985). Os governos de Maria de Lurdes Pintassilgo, Mota Pinto e Nobre da Costa foram períodos da mais pura e inadulterada confusão política e económica. Por culpas próprias e inevitabilidades dos tempos conturbados que se viviam, os primeiros governos de Mário Soares (em 1978, com apoio parlamentar do CDS), conduziram o país ao limiar da bancarrota. Com os governos de Pinheiro de Azevedo, Vasco Gonçalves e Adelino da Palma Carlos não vale a pena perder tempo, até porque o meu cérebro extenuado foi ficando cada vez mais extenuado, encontrando-se agora tão lento como um computador de 1995 tentando correr o Windows 8. Ou se calhar o Vista. Ou o cérebro de António Guterres tentando calcular uma percentagem do PIB.

 

Primamos a tecla » de modo a fazer avanço rápido até ao presente e sejamos claros: como tanta gente afirma com admirável convicção, o governo actual é péssimo. Honestamente: péssimo. Usa e abusa dos aumentos de impostos, garante o que devia saber não poder garantir, adia medidas que não devia adiar, tem ministros que não deviam ser ministros há cerca de um ano e melhor seria nunca o terem sido, permite excepções a regras anunciadas como universais, faz reformas tímidas quando pagaria quase o mesmo preço fazendo reformas a sério, permite, por culpa própria, especulação em torno de processos que deviam ser transparentes, etc, etc. E, contudo, sendo péssimo, numa perspectiva de mérito (ou, se preferirem, da relação esforço desenvolvido / dificuldades encontradas), trata-se provavelmente – e ponderei o que vou escrever durante, sei lá, para cima de cinco segundos – do melhor governo que tivemos nas últimas duas dúzias de anos, quiçá em toda a Terceira República. Por mim, apenas o do Bloco Central e o primeiro da AD podem disputar-lhe o lugar. Os restantes ou foram catastróficos ou governaram em tempo de vacas gordas sem pensar no futuro – e assim é fácil. Apesar de todos os seus erros – muitos, enormes –, este é o único desde há décadas que se encontra verdadeiramente a procurar corrigir o modelo de funcionamento da economia portuguesa no sentido da sustentabilidade. Coisa de somenos, está bem de ver, destinada, como a história do pós-25 de Abril amplamente demonstra, ao mais tonitruante aplauso público e retumbante sucesso.

 

Mas, na realidade, nem precisamos de ficar pelo 25 de Abril. Atendendo a que os governos imediatamente anteriores ao dito também não eram recomendáveis, para encontrar melhor (ou menos mau) teremos de recuar até... até... credo, é demasiado deprimente pensar nisso. Tal como constatar quão repletas de nada as alternativas permanecem, incluam ou não esse estandarte da boa gestão da coisa pública (é o que ouço dizer) chamado António Costa, devidamente acolitado pelos saudosistas do grande flâneur dos boulevards parisienses.

Ler

Pedro Correia, 30.01.13

Êxito. De Vital Moreira, na Causa Nossa.

À pressa. Do Luís Novaes Tito, n' A Barbearia do Sr. Luís.

Muitíssimo apressados. De Sofia Loureiro dos Santos, no Defender o Quadrado.

De joelhos. De João Miranda, no Blasfémias.

Histórias da nossa terra. Do Filipe Tourais, n' O País do Burro.

Bichos. Do Miguel Cardina, no Arrastão.

Memória da esquerda da esquerda. Do Rui Bebiano, n' A Terceira Noite.

Quando for grande quero ser... Da Joana Nave, no Forte Apache.

A grande ilusão. De José Carlos Alexandre, n' A Destreza das Dúvidas.

Hoje regressei ao mercado. De Carla Romualdo, no Aventar.

Leonard Tarantino. De Pedro Góis Nogueira, no Desertações.

Obama, Tarantino e Shakespeare. Do João Lopes, no Sound + Vision.

'Django Libertado', de Quentin Tarantino. De João Torgal, no 5 Dias.

Morte certa. De Carla Ferreira, n' Uma Mulher não Chora.

Tenho uma chávena quente entre as mãos e o cão repousa sobre os meus pés. De Mel, no Coração Independente.

ARGO

Ana Vidal, 30.01.13

 

Não fora a garantia de ser uma história verídica e eu diria que ARGO era mais uma dessas xaropadas inventadas pelos EUA para enaltecer a pátria e manter os níveis do orgulho nacional, tal é a concentração dos clichés habituais: a supremacia americana a vencer em todas as frentes, da heroicidade à inteligência, da abnegação ao humor, da moral à razão. Mas, por incrível que pareça o happy ending, os factos aconteceram mesmo e os protagonistas estão bem vivos para contá-los. Comprovam-no também as imagens do genérico final, comparando fotografias retiradas do filme com outras, reais, das mesmas situações (a propósito, esta sequência faz-nos tirar o chapéu à excelência do casting). ARGO dá-nos conta de uma curiosa história de espionagem, ocorrida com um grupo de diplomatas americanos encurralados em Teerão, logo após a revolução de 1979 que depôs o último Xá da Pérsia, Mohammad Reza Pahlevi, e instalou no Irão a "democracia" do Ayatollah Khomeini. É também um tributo à cooperação diplomática entre países, e esse foi um dos motivos para que o presidente Clinton tornasse público, muitos anos depois, um incidente até aí mantido secreto e guardado a sete chaves pela CIA. A história - mais uma prova de como a realidade ultrapassa tantas vezes a ficção em matéria de improbabilidade - é mirabolante e deliciosa. Não quero estragar-vos a surpresa, não a contarei aqui. Dir-vos-ei apenas que vale a pena ver o filme: a reconstituição da época é rigorosa e funde-se muito bem com os vários excertos de documentários reais, usados para reforçar a ideia de autenticidade. 

 

Registei um pormenor, entre tantos outros, porque me incomodou: ajudado pelos parceiros ocidentais de quem fora aliado durante todo o seu reinado, o Xá foge do Irão in extremis, como é sabido, trocando pelo exílio a prisão ou uma execução sumária. Parte num avião privado," de tal maneira carregado de ouro que mal conseguiu levantar do chão". Não consigo deixar de pensar que é nestes momentos, exactamente nestes momentos, que se revela um carácter. Quantos dos seus apoiantes mais fiéis, deixados para trás e entregues à fúria dos revoltosos para uma justiça apressada e mais do que duvidosa, teriam cabido naquele avião em vez do ouro, em igual peso? E quantas vezes, durante os parcos meses que decorreram entre esse episódio e a sua morte no exílio, rodeado de um luxo tão exagerado como inútil perante um cancro, terá pensado o Xá nesse seu gesto? 

Sobre uma "carta aberta aos portugueses" em Moçambique

jpt, 30.01.13

 

 

(Um postal propositado para um outro blog onde escrevo, e com tema algo excêntrico ao Delito de Opinião. Mas, como se diz em inglês, aqui fica "para quem possa ter interesse".)

 

Há um ano escrevi num blog (e no Canal de Moçambique) sobre a actual imigração portuguesa para Moçambique, e no meio deixei: "Muitos portugueses a chegarem, a fugir à crise nacional e europeia. Três pontos: a) como qualquer vaga migratória isso vai levantar questões no mercado de trabalho (que aqui assumiram, assumem e vão assumir uma linguagem que remete para as realidades históricas do racismo e do colonialismo). É assim, será assim; b) muita gente chega mal preparada ou seja, com a atitude errada. Altaneira, entenda-se (é também o maldito “complexo do Equador”, que torna “doutor” quem o atravessa – coisa que não é de agora). Muita gente não a tem, vem trabalhar e viver. Esta última leva por tabela, catalogada como “tuga” (ou xi-colono) devida à tonta arrogância de uma parcela de patrícios que não percebem onde estão (“senhor(a), você está no estrangeiro” é coisa que muitas vezes me (nos) apetece dizer); c) e há gente patrícia mais antiga aqui a resmungar contra os que chegam agora, “que raio de gente, etc e tal", como se fossem laurentinos enjoados com os colonos rurais, transmontanos ou madeirenses, vindos para o Chockwé nos tempos idos. Esquecem-se, obviamente, que também chegaram um dia (há dois anos, cinco, quinze – como eu – ou, poucos, há mais anos ainda)."

 

Nos últimos dias recebo várias mensagens com uma "carta aberta aos portugueses", a qual vejo também reproduzida no facebook e na comunicação social. Ecoa o mal-estar com esta imigração e termina com um conselho explícito: que mantenhamos a bola baixa. Sucede-se a algumas outras discussões de facebook (vi algumas, contam-me outras) que realçam o desagrado com a situação actual. Umas explicitando o porquê desse desagrado (mais ligadas às questões da imigração ilegal), outras aludindo a uma generalizada má-vontade dos recém-chegados. E outras pura e simplesmente, considerando os portugueses aqui prejudiciais ("os portugueses são todos mal-educados" li recentemente, e engoli).

 

Esta carta chega-me, e em tons de concordância, por parte de amigos moçambicanos (alguns do grupo socio-etário da sua autora, até dela amigos pessoais), e por parte de amigos portugueses aqui há longo tempo residentes ou ex-residentes de longo prazo. E também por outros patrícios, entre o incomodados e o até receosos, sobre o que isto significa, o que pode induzir. Não se exagere, é um fenómeno normal, também no nosso país, e em tantos outros, a chegada de imigrantes provoca reacções de incómodo. E, em particular, quando estão inseridas num tipo de relacionamento histórico como este, ex-colonial.

 

A questão desta "carta aberta" ultrapassa o seu conteúdo ou mesmo o contexto sociológico muito particular da sua realização. E até mesmo o facto de eclodir na sequência da questão recentemente levantada dos vistos de entrada, cujo incremento de controlo advém da mais normal, e salutar, actividade administrativa. A questão central será até mais a da sua recepção e reprodução (partilha electrónica e conversacional).

 

Alguns pontos gostava de deixar, em corrida, pois por demais atarefado para textos sistematizados:

 

a. Em finais de XX também houve afluxo de portugueses, normalmente quadros ligados a grandes ou médias empresas, ou pequenos e médios investidores. Uma menor dimensão quantitativa e com outras características sociológicas (para facilitar chamo-lhes "expatriados", no sentido de melhor situação socioprofissional e com lugares de recuo). A reacção foi, e as pessoas esquecem-se, bastante mais adversa. Não só porque isto significava a chegada de capital (financeiro, fundamentalmente) português, e nisso parecendo assumir contornos do "neo-colonialismo". Mas também porque as memórias do período colonial, da guerra de independência (e da civil) eram mais vivas. E ainda porque a "classe média" urbana tinha menores disponibilidades e sentia mais o peso competitivo dos quadros estrangeiros. E a questão de Cahora-Bassa não estava ainda terminada, pois continuo a pensar que o final desse processo significou um "degelo" nas relações entre países e, por arrasto, entre sociedades.

 

Quando falo em "reacção adversa" falo de discursos públicos, de personalidades conhecidas. E das "cartas de leitores" aos jornais (e quão célebre era a correspondência, vera e fictícia, no jornal "Notícias"). Alusões e acusações a desmandos e maus tratos (e a escândalos económicos) juntaram-se. Umas teriam fundamento (a mácula de uma grande aldrabice bancária foi terrível) outras nem tanto (a primeira vez que escrevi num jornal moçambicano foi para defender um amigo, administrador de uma empresa, que estava a ser, prolongada e injustamente, escalpado no jornal "Savana". E ainda hoje lembro a gratidão ao Augusto Carvalho por ter intercedido no "Domingo" para que ali me publicassem o justíssimo desagravo).

 

Interessante no processo actual, bem menos intenso, é que se centra no mundo do "facebook", evidenciando a força do novo espaço de discurso público em Moçambique. E fazendo notar que neste espaço, muito menos hierarquizado, as vozes descontentes que se expressam estão mais entre os cidadãos comuns do que nas personalidades da elite político-cultural. Haverá, ponho como hipótese, menos "política" neste expressar do desagrado.

 

b. A sociedade portuguesa indiscutiu o colonialismo. Ou seja, manteve a sua histórica inconsciência colonialista, muito baseada no velho mito do "modo especial de ser português", aliás, do "modo especial de ser colono". Isso implica a manutenção, fluída, de estruturas mentais sociais que condicionam categorizações e relacionamentos, as quais subsistem, como é óbvio, numa multiplicidade de conteúdos - entenda-se, "cada um como cada qual", ou seja, as perspectivas individuais não são determinadas mas são, isso  sim, influenciadas.

 

Esta "inconsciência", este impensar do passado, não num sentido automortificador mas sim com uma veia prospectiva, continua a ser sublinhada por discursos dominantes. O actual pico da literatura "leve" que evoca a "boa África colonial" ajudará, a continuidade da ideia da "lusofonia" como espaço comum (e com a sua excrescência mal-cheirosa Acordo Ortográfico) é disso motor. A ideia de que as realidades históricas eram brutais desvanece-se. E quase inexiste a ideia que essa brutalidade era sistémica, como lhe chamou Sartre. Estas coisas estão escritas, e há muito. Pegue-se no "O Fascismo Nunca Existiu" (1976) de Eduardo Lourenço e vejam-se os luminosos textos dedicados ao (im)pensamento português sobre a relação colonial com África (escritos entre 1959 e 1976!!!) e está lá quase tudo, numa poderosa análise que as décadas seguintes só vieram sublinhar.  Lourenço é muito falado, premiado, elogiado. Mas parece ser pouco (re)lido. A dimensão sistémica colonial da sociedade e economia portuguesa (e metropolitana) está explícita em textos pioneiríssimos de José Capela ainda do início de 1970s, e depois demonstrada no excelente "Fio da Meada" de Carlos Fortuna, um marco já nos anos 90s. Mas dá a sensação que não ultrapassam o meio académico que os respeita. Os extraordinários textos de Grabato Dias (António Quadros) são esquecidos, que de "leves" e "miríficos" nada têm.

 

Porquê este rodeio bibliográfico? Porque o desconhecimento das realidades históricas e a armadilha da "língua comum" produz em Portugal uma visão de África(s) e categorizações menos actuais do que se pensa, portanto menos úteis, menos utilizáveis, menos propensas a um relacionamento desmaculado (o "imaculado" não é uma palavra ... humana). E implica também muita surpresa, o deparar com ambientes menos propícios aos portugueses do que quantas vezes se pensa, se antevê. Ambientes diversos sociologicamente e diversos nacionalmente, pois não há uma una relação "portugueses-ex-colónias". Mas é tudo, como não poderia deixar de ser, bem menos fraterno do que o nosso (português) senso comum produz.

 

E talvez este tipo de discursos posssa servir, empurrar, para que se pense melhor. Não "de bola baixa". Mas de "bola alta".

 

c. A polémica carta pega em excertos discursivos de portugueses sobre Moçambique (recolhidos aquando das polémicas no facebook sobre o fim da atribuição de vistos de entrada nas fronteiras). São entendidos como significativos, os discursos na internet baseando uma indução sobre os portugueses. Para mim este é também um ponto interessante, pelas novas dinâmicas do discurso público e das suas utilizações e interpretações, que demonstra. Pois ao longo dos anos acompanhei os discursos electrónicos sobre Moçambique, em particular no bloguismo. Com a fantástica colaboração do Paulo Querido, organizei o directório "ma-blog", continuado depois com o Vitor Coelho da Silva no PNetMoçambique. Conheci centenas de blogs moçambicanos e sobre Moçambique. Muitos, muitos mesmo, escritos por portugueses. E vários destes por portugueses em Moçambique, voluntários, missionários, cooperantes, turistas, imigrantes, investigadores (como exemplo muito actual este Beijo-de-mulata,  recentemente editado em livro em Portugal).

 

E o que me foi sempre notório, até como analisável, é o facto da (re)produção do encanto nesses blogs. Um encantamento, solidário com as pessoas, embrenhado na natureza, curioso com a história, preocupado com o real e o futuro. Quantas e quantas vezes ingénuo, namorando o exótico, até pa/maternalista, e eu face a isso resmungando. Mas um generalizado tom nos discursos electrónicos portugueses aquando em Moçambique. Oposto, até inverso, ao produzido em discussões de facebook que quase de certeza têm locutores sociologicamente distintos, e na sua esmagadora maioria bem longe do país, cruzando ainda as dores de um "luto colonial", de teimosia imorredoira. E nisso muito mais ligados às concepções (históricas) que acima refiro.

 

Deste modo, também por tudo isto, assentar a tese da malevolência portuguesa (ou da significativa malevolência portuguesa, mesmo que não universal) no "picanço" a la carte desses exemplos mais ultramontanos (ainda que eles sejam, porque o são, recorrentes em alguns contextos electrónicos) me parece francamente letal. Para quem escreve. Não para quem ouve e lê.

 

d. Depois, e por fim, o óbvio e mais importante. Moçambique como "terra de oportunidades"? Como penúltimo passo deste generalizado "go south" africano? Como espaço de mineração e garimpo? Como país que vive uma continuada pacificação e um anunciado desenvolvimento? Como terra de gás e petróleo? Esta é a realidade das representações que o país tem, de momento, no contexto internacional. O problema são os imigrantes portugueses (com as suas características)? Ou é a capacidade do país conviver com o fluxo tão diversificado de imigrantes e de migrantes? O qual foi, inclusivamente, saudado há pouco por um membro do governo como dimensão do desenvolvimento e globalização sentidos no país.

 

A classe média maputense choca-se com a imigração portuguesa, legal e ilegal. E tem razões sociológicas para tal, deixemo-nos de exagerados prudidos. Expressa-as publicamente (jornais, redes sociais). Mas se cruzarmos a sociedade nas suas várias dimensões encontramos outras preocupações com tantos outros núcleos estrangeiros. No norte com os "tanzanianos", nos pequenos comerciantes com os "nigerianos", generalizadamente com os "indianos", em tanta gente com os chineses (sem aspas, pois são realmente chineses contrariamente aos outros universos), nos quadros também com os "sul-africanos", há alguns anos no centro do país com os "zimbabweanos". Etc.

 

A questão é bem mais vasta. E apaixonante. É a de incrementar a capacidade administrativa para dirimir este desafio que a imagem de progresso do país provoca, o fluxo imigratório. E de fazer coexistir isso com desenvolvimento económico e com justiça social - sim, atentando que nestas mobilidades os défices de capital cultural ou económico dos cidadãos nacionais podem ser (podem ser, sublinho) prejudiciais para a justiça social. Ou seja, os desafios do país são enormes, não são os "200 portugueses por mês" (que Núria Negrão, autora da "carta aberta", afirma) - por piores que estes sejam, que nós sejamos.

 

Por tudo isto, ver os meus amigos intelectuais, académicos, empresários ou funcionários burgueses, a maioria deles auto-situando-se "à esquerda" (no espectro político moçambicano esta polaridade inexiste, mas na linguagem autodefinidora funciona), até ecoadores do "indignismo" globalizado, a aplaudirem textos sociologicamente tão débeis, generalizações a roçarem o mero preconceito, e invocações do "respeitinho", do "bater a bola baixa", que aludem ao mais medonho do autoritarismo, é-me doloroso.

 

Até porque, e ainda que não esquecendo (daí a arenga histórica acima colocada) o particular contexto histórico desta imigração portuguesa, a construção de sociedades democráticas é também a defesa de que os imigrantes, não deixando de ser estrangeiros, "batam a bola alta", sejam cidadãos. Metecos, como [me] reclamo. Desajustados, até mal-criados, se calhar. Mas não rasteirinhos.

 

Oxalá.

Exercício de... português?

Ana Vidal, 30.01.13

Acabo de ter acesso, através de uma mãe desesperada, a este exercício de português para o 10º ano:

 

«Funcionamento da língua:


1. A coesão* referencial do texto assenta, sobretudo, na co-referência anafórica pronominal que assegura os segmentos do discurso.

1.1. Considerando o referente «eu» (v.3), apresenta:

a) uma catáfora

b) os co-referentes anafóricos pronominais da segunda volta

c) duas elipses.»

 

(*A "coesão" é definida desta forma, para quem tiver dúvidas: «o termo que designa os mecanismos linguísticos de sequencialização que instituem continuidade semântica entre diferentes elementos da superfície textual». Logo, «"coesão referencial" é a interdependência de fragmentos textuais assinalada por co-referentes, dando origem a uma cadeia referencial». Esta açorda linguística vem acompanhada de outros mimos igualmente perceptíveis, tais como: coesão interfásica, temporo-aspectual, co-referência anafórica, coesão lexical, etc. Tudo muito coeso e facílimo, como se vê.)

 

Ainda vou na primeira volta e já estou em estado catafórico. Dou graças aos céus por já não ter filhos (e ainda não ter netos) em idade de precisarem de ajuda com os trabalhos de casa, porque me sentiria pouco mais do que atrasada mental. O drama é, afinal, muito mais extenso do que a imposição de um estúpido e inútil acordo ortográfico. O problema de fundo é que o funcionamento da língua não funciona.

 


 

Adenda: Não resisto a trazer a esta discussão o contributo da grande Natália Correia. É preciso chamar os bois pelos nomes, e poucos o fizeram como ela. Neste caso, as vacas (sagradas?).

 

Língua Mater Dolorosa

 

Tu que foste do Lácio a flor do pinho

dos trovadores a leda a bem-talhada

de oito séculos a cal o pão e o vinho

de Luís Vaz a chama joalhada

 

tu o casulo o vaso o ventre o ninho

e que sôbolos rios pendurada

foste a harpa lunar do peregrino

tu que depois de ti não há mais nada,

 

eis-te bobo da corja coribântica:

a canalha apedreja-te a semântica

e os teus verbos feridos vão de maca.

 

Já na glote és cascalho és malho és míngua,

de brisa barco e bronze foste a língua;

língua serás ainda... mas de vaca.

 

Puseram o Costa à frente dos boys

Rui Rocha, 30.01.13

Apesar das expectativas, a montanha do Rato não pariu até ver mais do que um Seguro. Todavia, as movimentações e declarações que precederam a comissão política do PS permitem chegar  a algumas conclusões:

 

1) Costa tinha (tem) vontade de avançar para a liderança do partido. Se não fosse assim, teria picado muito mais cedo a bolha que se criou à sua volta. O silêncio que manteve e fez questão de sublinhar ao longo de vários dias sobre as suas intenções tem valor declarativo.

 

2)  O primeiro problema de Costa é a paspalhice de Seguro. Parecendo que não, é complicado apresentar uma alternativa a algo que não existe. A alternativa implica dois caminhos. Um que está a ser trilhado e outro que se lhe quer contrapor. No PS actual, falta desde logo o primeiro.

 

3) O segundo problema de Costa é a ausência de projecto político próprio e estruturado. O propósito de substituir a esqualidez e o arquear de sobrancelhas de Seguro pelo frondosidade de Costa e do seu sorriso parece insuficiente. Costa fala melhor, é mais incisivo, não tem cara de palonço? Poderá ser verdade, mas não chega. Costa sabe disso.

 

4) Não há surfista que não sinta atracção pelo mar. Mas é preciso saber escolher a onda. Costa percebeu que a onda que tinha para surfar não era a dele. Era a dos órfãos daquele que não pode ser nomeado. E Costa percebeu ainda que, se avançasse contra Seguro como general de um exército composto por soldados ainda intrinsecamente fiéis a lideranças pretéritas, mesmo em caso de sucesso seria refém e não vencedor.

 

5) Costa esperará por uma onda que lhe sirva. Para a poder surfar, precisa de uma prancha (um projecto político diferenciador) e de a ver como a sua onda: uma vaga política que possa surfar com autonomia, independência, apoiado num exército que possa considerar seu e sem interferências de terceiros. Não é claro que essa onda ainda possa aparecer em tempo politicamente útil.

Derrotado em toda a linha.

Luís Menezes Leitão, 30.01.13

 

A ala socrática do PS deixou-se de tal forma contaminar pela irrealidade, que julgou que bastava um jantar com o seu querido líder para poder patrocinar uma espécie de Revolta na Bounty no PS. António Costa seria o imediato que destituiria o Capitão Bligh, que os socráticos odeiam por ser incapaz de cantar hossanas ao Governo anterior que atirou o país para a bancarrota. Para isso António Costa já andava à procura de figuras no PS que disputassem a Câmara de Lisboa, mas ninguém se mostrou disponível para defender a desastrada gestão de Costa/Salgado à frente da capital.

 

Seguro surpreendeu, porém, tudo e todos, e desafiou os adversários a ir a jogo, mostrando as suas cartas. De caminho pôs os pontos nos is, referindo não admitir que "nenhum combate político seja condicionado por agendas pessoais, pela mera ambição pessoal e o regresso ao passado". António Costa teve que mostrar assim que só tinha ternos e duques, pelo que recuou em toda a linha, evitando um confronto em que seria humilhado. Vê-se agora obrigado a disputar a Câmara em muito piores condições, uma vez que os lisboetas não esquecerão esta tentativa de fuga, a acrescer ao desastre das sua gestão.

 

Do lado do Governo, porém, as coisas não estão muito melhor. Esta debandada de secretários de Estado pode ser uma clara indicação de que já perceberam que o navio se afunda. Eis como Seguro pode passar num ápice de quase derrotado a plenamente vitorioso. It's politics, stupid.

France Gall e os lollipops

Adolfo Mesquita Nunes, 29.01.13
A razão pela qual cheguei a France Gall é suficientemente ridícula para que a deixe para outra ocasião. Mas foi nesse momento, em que a vi e ouvi cantar, que começou esta minha - também ela ridícula - queda por cantoras de vozes limitadas, na vertigem da afinação e sempre à beira do abismo. Mas voltemos a France Gall, que é dela que quero falar. Quem a visse cantar as músicas de Serge Gainsbourg, ainda adolescente e com ar inconsciente, não podia deixar de perguntar: mas sabe ela o que está a cantar, percebe ela o significado das coisas que o Gainsbourg lhe escrevia para cantar?

O duplo sentido das canções de Gainsbourg era evidente, sobretudo quando coladas a uma ninfeta como Gall. Mas mesmo que não fosse evidente, seria sempre presente. E bastava saber que vinham de Gainsbourg para que a certeza se instalasse: estas letras dizem muito mais do que a mera literalidade. E France Gall, sabia? Quando, ninfeta, lambia lollipops em Les Sucettes, sabia o que estava a fazer? Sabia a imagem que emprestava a pedaços de letra como este: Lorsque le sucre d'orge, parfumé à l'anis, coule dans la gorge d'Annie, elle est au paradis? E quando, de boca sensual, se dizia uma boneca de cera à mercê de tentações, em Poupée de Cire, Poupée de Son, sabia o que estava a fazer? Sabia o que aquele beicinho ilustrava quando cantava elles se laissent séduire pour un oui, pour un nom?

Na altura em que ouvi pela primeira vez France Gall, algures no princípio dos anos 90 (estas canções são do começo da carreira dela, lá para 1965 e 1966) não havia internet e as perguntas que me fiz, numa altura em que, à conta de uma mãe absolutamente francófona, me iniciei na música francesa, ficaram sem resposta. Há uns tempos lembrei-me de France Gall, não vou dizer a propósito de que outra cantora, e fui procurar a resposta.

Ela está aqui, numa pequena entrevista, que partilho convosco. A ninfeta France Gall não sabia, ou diz que não sabia. Sentiu-se, de certa forma, enganada e traída pelos adultos que a rodeavam, e o momento em que se viu enganada marcou-a para sempre, alterando a forma como via e se relacionava com os rapazes. Curiosamente, esse é o tema de Poupée de Cire..., canção que, ao lado de Les Sucettes, foi banida do seu repertório. Chega a ser comovente a forma como France Gall, em imagens antigas mostradas na entrevista, descreve, alheada, uma letra que contava uma história um pouco mais densa do que aquela de 'rapariga que gosta de lamber lollipops'.

Esta história lança várias discussões (o papel dos adultos que rodeiam jovens cantores, a moralidade de autores como Gainsbourg quando escondem, ou parecem esconder, desses jovens cantores o significado das letras que estes manifestamente não alcançam, etc...), que podem correr nas caixas de comentários. Não quis foi deixar de partilhar esta história, real, que me parece demasiado actual, 40 e tal anos depois. 

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