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Delito de Opinião

Referência sem "r"

João Campos, 31.12.12

Que não se pense que o Expresso apenas inova na escolha das suas fontes e dos seus comentadores de Economia. Nada disso. Também para o processo de estupidificação em curso (vulgo Acordo Ortográfico) o vetusto semanário dá o seu contributo quase diário. Hoje, às portas do final do ano, foi o duplo "r" que caiu. Deve ter ido pendurado no hífen.

 

 

Enfim, cada jornal tem a ortografia que merece. Feliz Ano Novo a todos. 

Paulo Portas

Pedro Correia, 31.12.12

 

Candidato desde já a figura nacional do ano que começará daqui a poucas horas. Será um ano muito difícil a vários níveis - e não só em Portugal. Um ano que todos lembraremos mais tarde. Um ano em que cada gesto do ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros será alvo de escrutínio máximo. Ele sabe, melhor do que ninguém, que somos escravos das nossas palavras e donos dos nossos silêncios. E procederá em conformidade, sem nunca esquecer este lema. Crucial na política, como na vida em geral.

2013

José António Abreu, 31.12.12

2013 será o ano em que o PSD perderá as eleições autárquicas. Se os seus candidatos a Porto e Gaia forem Luís Filipe Menezes e Marco António Costa, respectivamente, há pelo menos duas autarquias em que espero que a derrota seja estrondosa.

 

Se o Banco Central Europeu ajudar, 2013 será o ano em que o Estado português voltará a endividar-se nos mercados financeiros. Se não ajudar, o endividamento será garantido por um novo pacote de auxílio. De uma forma ou de outra, será um ano em que a dívida pública subirá, para surpresa de muita comunicação social e de alguns comentadores.

 

Por várias vezes no decorrer de 2013 um membro do governo dirá uma coisa, na comunicação social e nos blogues dir-se-á que disse outra e o próprio virá depois explicar que quis dizer uma terceira.

 

Em 2013 continuará a discutir-se por cá a relação custo/benefício do euro. Na Argentina continuará a discutir-se a relação custo/benefício da inflação.

 

Em 2013 há eleições na Alemanha. A esperança de que uma derrota de Angela Merkel traga uma alteração radical de políticas devia ser directamente proporcional ao número e alcance das medidas de crescimento implementadas por François Hollande desde a sua eleição. Ainda assim, ver-se-ão muitas – e ternurentas – ilusões.

 

2012 foi o ano em que ficámos a saber que um corte de despesa no sector público sem um correspondente aumento de receita à custa do privado é inconstitucional. 2013 será o ano em que ficaremos a saber se inconstitucional é afinal o corte de despesa no sector público, tout court.

 

Em 2013, como nos anos anteriores, as previsões do governo para o crescimento (ou, mais precisamente, para a queda) da economia mostrar-se-ão optimistas. Em tempos de incerteza, é reconfortante verificar que certas coisas permanecem constantes.

 

Por fim:

Frohes Neues Jahr!
(Mais vale começarmos a habituar-nos.)

Recomeçar

Laura Ramos, 31.12.12

O novo ano não é dado a votos superlativos.
A desmotivação é óbvia. O desalento é humano. A lamentação? Chata, inútil e incomodativa... Mas não deixa de ser quase imperiosa.
Ainda assim, nós, as vítimas destas grandes pequenas perdas e tormentas, enjoamos mais do que um bravo marujo português numa caravela batida no mar alto. Um daqueles que deitava a sola de molho, para o outro dia jantar.
Porque será? Porque verdadeiramente não temos norte? O Norte astrolábico que eles tinham?
Pois.
Vamos, gente! BOM ANO!
Recomeçar...
Contigo ou sem ti (... ó crise).

Jardim das Estrelas

Gui Abreu de Lima, 30.12.12

O velho dorme no banco ao pé de mim. Fosse roto, sujo e desgrenhado, cobrava à noite não dormida a bebedeira que lhe amainou a ferida. Mas um homem bem vestido e penteado no banco do jardim deitado parece que falece.

O velho desapareceu mas eu não vi. Talvez sonhando que o levavam num caixão dali, se aborrecesse com a morte. Talvez escolhesse a sorte. Regra e pão e outra regra e sempre o pão, para os patos do jardim.

 

foto JCDuarte

O esforço de ajustamento e o ajuste directo

Rui Rocha, 30.12.12

Leio nos comentários a este post da Leonor que uns estão convencidos de que Sócrates deixou o país sem dinheiro para tinteiros e impressoras e que outros acreditam que, com Passos Coelho, as próprias impressoras foram já leiloadas. Uns e outros estão redondamente enganados. De acordo com o site Despesa Pública, o Agrupamento Vertical de Canelas acaba de gastar 6.625.15€ para alugar (sim, alugar) uma fotocopiadora multifunções, para apoio ao funcionamento dos Cursos Profissionais em funcionamento no corrente ano letivo, na escola-sede do Agrupamento. Se tivermos em conta que o prazo de execução previsto é de 212 dias, temos um custo de aluguer de mais de 30€ por dia. Incluindo Sábados, Domingos e feriados. Mas a coisa não fica por aqui. Pelo aluguer (sim, aluguer) de 5 (sim, cinco)  portáteis para apoio aos formandos do Curso Profissional de Turismo, em funcionamento no corrente ano letivo (isto é, 212 dias), na escola-sede, o Agrupamento gastou 5.280,03€. E para  alugar (sim, alugar) outros 10 (sim, dez) pelo mesmo período desembolsou 10.599,99. E mais 7.392,00€ por outros 7. E mais 8.448,02€ pelo aluguer de outros 8, sempre pelos mesmos 212 dias. Ou seja, o Agrupamento Vertical de Canelas gastou mais de 1.000€ pelo aluger  de cada portátil por um período de pouco mais de 6 meses. Sempre por ajuste directo. Se tivermos em conta que a compra de um computador com excelente desempenho custa (vá, sejamos mãos largas) os mesmos 1.000€, já se vê que se trata de um excelente negócio. Em conclusão: sim, temos dinheiro para tinteiros e impressoras. E até para computadores.

Bom 2013

Patrícia Reis, 30.12.12

O homem deve ter uns cinquenta anos.

Está na porta da igreja, ali à rua da Madalena, encostado à parede. Em cima da sua cabeça, pendurado no edifício, vê-se um telão enorme com a palavra Fé. O homem fuma um cigarro e não parece nem pobre, nem rico, nem feliz, nem infeliz.

Por momentos ponderei se não será um daqueles anjos que eu via no Saldanha. Talvez se tenha mudado comigo para a Baixa. Nunca se sabe.

O sol está frio, mas o meu marido mostra-me a cafetaria/padaria com bom ar e a loja do chinês.

Na Travessa das Pedras Negras nr.1 começa a minha vida em 2013, tudo será melhor, vivemos ciclos de sete em sete anos e há mudanças. Chegada aos 42 anos é o que me espera: um novo ciclo. Quando penso nisto só me lembro de remoinhos e pouco mais. Ou tornados. Ou espirais. Pouco importa. Dizem que o espaço não tem som. Na minha cabeça tudo se atropela e o som é fortíssimo.

O resto? O resto é a vidinha.

A vida que não mudou

José Navarro de Andrade, 30.12.12

 

A dada altura de “Mudar de Vida” de Paulo Rocha, eis a figura compostíssima da Dra. Maria Barroso descalça, com um molho de lenha à cabeça, sofismada pela boca a fazer biquinho por via da boa dicção aprendida na escola do Teatro Nacional de Amélia Rey Colaço.

Esta imagem poderá resumir todos os equívocos do Cinema Novo português.

Também Portugal, nos anos 50, teve o seu cinéma de papa, só que em vez de ser enfatuado e burguês como o da França modelar, era enfatuado e neo-realista como a Seara Nova. A isto queriam os moços formados no IDHEC obstar com desassossego cinéfilo, e desembraçarem-se do naturalismo a favor do realismo, da pompa cultural em benefício do ar da rua, das peripécias do enredo pelo rigor subjectivo dos factos (uma frase que só é paradoxal para quem não viu “À Bout de Souffle”).

A história é de quem a vence e tão retumbante foi a vitória do Cinema Novo que ainda hoje, passado meio século, o cinema português vai-se fazendo e pensando em torno do seu eixo programático. Ficou assim para o cânone que “Belarmino” (1964) de Fernando Lopes e “Os Verdes Anos” (1963) de Paulo Rocha, constituem pedras basilares e inamovíveis da cinematografia nacional. Mas se o primeiro parece ainda hoje perfeito e consonante com o que dele se pedia, já em “Os Verdes Anos”, se o conseguirmos ver sem a gravidade sacerdotal em que o velaram, há ali qualquer coisa que não bate certo – o quê?

O que é, revela-se então em “Mudar de Vida” (1966) e mais cabalmente na cena acima referida. Não é a inverosimilhança, porque em cinema isso é um dom e não um pecado, mas é a impressão de uma realidade não experimentada, abstracta e consumada como um arquétipo, em suma: desvitalizada. Fica-lhe um mérito nada pequeno, que ter a mais bela banda sonora de sempre feita em Portugal, dedilhada por Carlos Paredes.

Um facto

José António Abreu, 30.12.12

«Quero confessar-me, senhor padre… Não tenho a certeza de ser capaz… Poderá, senhor padre…? Tenho um marido…»

…?

«Peço desculpa? Oh, não, de forma nenhuma. Claro que somos casados. O órgão tocava e eu usava um véu branco, comprido. Havia incenso e lírios. E eu disse ‘sim’, e toda a gente estava feliz, e a mamã chorava e…»

…?

«Só um momento. Já lá chego. Eu era pobre. Tinha olhos grandes e tranças compridas. Ele chegou num carro. Era grande e tão forte. Foi comigo até ao cimo de uma colina e, na sua voz clara, forte, falou acerca do futuro. Tinha tantos planos. Eu brincava com os botões reluzentes do seu uniforme. Eu gostava de lhes tocar com a minha face e de me ver reflectida neles como num espelho.»

…?

«Sim, sim, senhor padre. Claro que sabia que era vaidade. Peço perdão. E então casámos.»

…?

«Não, de maneira nenhuma. Ele não mudou depois do casamento. Ele sempre foi firme mas também muito atencioso. Claro, tivemos os nossos desentendimentos mas nada de grave. Estávamos quase sempre juntos, ele praticamente nunca me deixava.»

…?

«Mas, senhor padre, como pode dizer isso? Francamente… Sim, ouvi falar disso mas ele não é assim. Nunca. De maneira nenhuma.»

…?

«Talvez. Não sei. Mas quem se veio confessar sou eu, não é ele. Eu é que estou aqui a precisar de ajuda… Preciso do seu conselho… Preciso de con… solo… Não, não estou a chorar. Agarre-me na mão, senhor padre.»

…?

«Sim. Claro que me casei com ele por estar apaixonada. Onde é que errei? Pergunte a qualquer pessoa sobre ele. Todos lhe dirão como é respeitado, capaz, digno.»

…?

«Perdão?»

…?

«Não, nunca. A sério, nunca. Nunca lhe fui infiel, nem sequer nos meus pensamentos. Tenho sido uma mulher fiel. Acredita-me, senhor padre?»

…?

«Não.»

…?

«Não.»

…?

«Mais uma vez, não.»

…?

«Então a que propósito vem isto? Padre, estou aqui… Não, é impossível acreditar. Depois de sete anos a viver com ele…No Verão passado fomos de férias. Eu convenci-o a descansar um pouco. Ele tem um emprego importante, muito trabalho, enorme responsabilidade, o país inteiro… Uma manhã, ao pequeno-almoço, estávamos sentados um em frente do outro. Atrás dele havia uma janela aberta. Através dela eu conseguia ver o jardim, árvores… O papel de parede da sala tinha um padrão de florzinhas, dezenas de milhar de florzinhas cor-de-rosa. Quando ele levantou o copo eu olhei para ele. Não havia nenhuma intenção especial no meu olhar. E então apercebi-me…»

…?

«O que vi? Como foi possível que, durante sete anos, tenha partilhado a mesa e a cama com ele e só agora… Aconselhe-me, senhor padre, porque se é um pecado…»

…?

«Foi só nessa altura que percebi que ele era feito de plasticina.»

…?

«Sim. Todo ele. É todo artificial. Inclinei-me para ver. Os meus olhos deviam estar muito abertos de espanto porque ele pousou o copo e perguntou calmamente: ‘O que se passa?’ Não, desta vez não estou enganada. Ele sempre foi feito de plasticina. Todo ele! Como, oh, como é que nunca reparara antes? E agora o que vai acontecer?»

…?

«Uma anulação do casamento? Mas, senhor padre, isso é impossível – temos filhos!»

 

Sławomir Mrożek, conto Um Facto, inserido na colectânea O Elefante.
Traduzido por mim, com base na versão inglesa da Penguin (tradução a partir do polaco por Konrad Syrop).

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