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SOMBRAS PROFUNDAS NUM SUL SEM SOL
Santuário, de William Faulkner
William Faulkner quis provar a si mesmo, no final da década de 20, que era capaz de escrever um romance policial. Deitou mãos à obra e bastaram-lhe quatro vertiginosos meses para concretizar o projecto. Concebera-o como outra espécie de desafio pessoal: uma ficção que contivesse como ingredientes tudo quanto conseguisse imaginar de mais sórdido e macabro.
Quando terminou, achou-se perante algo diferente do que havia imaginado: em vez de uma história com detectives, produzira aquilo que André Malraux viria a definir como uma "tragédia grega transplantada para o policial". Uma obra dura, intensa, capaz de esquadrinhar os mais negros recônditos da natureza humana - com os seus fantasmas, as suas obsessões, os seus traumas.
É uma obra que ilude todos os rótulos, espécie de cruzamento entre o realismo e o expressionismo, onde várias personagens surgem apenas esboçadas ou são configuradas como sombras espectrais. Existe um persistente lapso temporal entre a acção e os fragmentos dela que vão sendo transmitidos ao leitor, como se assinalassem a distância intransponível entre a literatura e a vida. E o próprio título do romance é ilusório: o Santuário aqui descrito é afinal um pequeno mundo de lassidão moral mal disfarçado pelas convenções sociais e pela letra da lei, sempre distorcida ao sabor das conveniências de ocasião.
Faulkner, apostado em profissionalizar-se como escritor, escrevera pouco antes O Som e a Fúria, em ambiência rural, e quis fazer algo completamente diferente - tanto ao nível do estilo como do tema. O cenário continua a ser o chamado 'Sul profundo' dos Estados Unidos (centrado na sua região natal do Mississípi, convertida literariamente no condado de Yoknapatawpha) mas aqui estamos num ambiente urbano - ou pelo menos contaminado pela cidade, enquanto palco simbólico da erosão dos padrões éticos. Sob o filtro deste "mestre da observação genuína e do conflito interior", como lhe chamou Allen Tate.
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Significativamente, as primeiras páginas de Santuário (1931) decorrem de dia, sob o intenso clarão do sol, mas à medida que a acção se adensa tudo passa a acontecer em atmosfera nocturna. Tudo o quê? Mentira, contrafacção, crueldade, corrupção, traição, impotência, prostituição, piromania, racismo, alcoolismo, enforcamento, violação, assassínio, castração, incesto, linchamento: ingredientes descritos ou apenas sugeridos neste romance que o New York Times enalteceu como um "assombroso estudo sobre o triunfo do mal" em 1981, quando surgiu finalmente no prelo a versão original do romance, que o editor rejeitara por poder chocar as almas mais sensíveis. Faulkner reescreveu-o parcialmente, limando algumas arestas e esbatendo o protagonismo da figura central, Horace Benbow, um advogado destituído de coragem física e perturbado pela ambiguidade moral. Os capítulos iniciais do primeiro rascunho tinham uma óptica subjectiva: os factos eram transmitidos ao leitor pelo olhar de Horace.
Apesar das mudanças - e das inúmeras gralhas tipográficas que foram perdurando de impressão em impressão e só vieram a ser definitivamente expurgadas em 1993 - Santuário impôs-se como um marco fundamental da ficção literária do século XX, contribuindo - a par de outros títulos, como Luz de Agosto, Absalão, Absalão e o já mencionado O Som e a Fúria - para a atribuição em 1949 do Nobel da Literatura a este descendente de uma próspera família de proprietários rurais condenada à pobreza endémica após a Guerra da Secessão (1861-65).
A arte narrativa teve nele um dos principais cultores de sempre. "Em todo o romance é a forma - o estilo em que está escrita e a arquitectura da narração - o que decide a riqueza ou a pobreza, a profundidade ou a superficialidade da história. Mas em romancistas como Faulkner a forma é algo tão visível, tão palpável na narração que faz as vezes de protagonista e actua como mais uma personagem de carne e osso ou figura como facto", observa justamente Vargas Llosa, outro galardoado com o Nobel, em La Verdad de las Mentiras.
O sortilégio da escrita de Faulkner resiste inclusive ao crivo implacável e arbitrário da tradução. Repare-se, a título de exemplo, numa cena capital, a da violação de Temple Drake (no capítulo 13 do romance, onde nada surge por acaso), em duas versões portuguesas de Santuário - ambas da Editorial Minerva.
A primeira, assinada por Marília de Vasconcelos, na colecção Capa Amarela (anos 50):
"Popeye virou-se e fitou-a. Baloiçou um pouco o revólver antes de o guardar no bolso, e encaminhou-se para Temple. Andava com passos silenciosos. A porta, aberta, escancarou-se e foi bater no umbral, também sem o menor ruído: dir-se-ia que as leis do som e do silêncio estavam invertidas."
A segunda, assinada por Fernanda Pinto Rodrigues, na colecção Minerva de Bolso (anos 70):
"Virou-se, olhou-a, agitou um momento a pistola antes de a guardar na algibeira e aproximou-se. Os seus passos não produziam nenhum som. A porta liberta do fecho abriu-se e bateu contra a ombreira, mas também não produziu nenhum som. Dir-se-ia que som e silêncio se tinham invertido."
A grande literatura é assim: surpreende e fascina em todas as épocas, em todos os idiomas, em qualquer versão. E não custa intuir quando estamos perante um romance de excepção, como sucede aqui: ao chegarmos ao fim, sabemos de antemão que jamais nos livraremos dele. Havemos de regressar a qualquer momento ao condado de Yoknapatawpha, para reviver a magia do primeiro assombro. É uma ligação para a vida: estejamos onde estivermos, livros como este irão connosco.
Outros textos desta série:
O Velho e o Mar - Um homem destruído mas não vencido
O Poder e a Glória - Ler para crer
Mrs. Dalloway - Esplendor na relva