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Delito de Opinião

Os checos, Kafka e o Século XX

José António Abreu, 31.05.12

Há poucos anos, pouco tempo antes da sua morte, o grande germanista e estudioso de Kafka, Eduard Goldstücker, descreveu-me como ele e outros fiéis comunistas em Praga foram cercados em Dezembro de 1951 no início de uma nova onda de «processos de Moscovo» estalinistas. Quando ele pediu para saber por que razão tinha sido preso, a resposta veio com um sorriso irónico: «Isso é o que você vai ter de nos dizer.»

John Banville, Imagens de Praga. Edições Asa (2005), tradução de Teresa Casal.

 

O século XX não foi fácil para os checos e para os seus «primos» eslovacos. Antes da Primeira Guerra Mundial, o país nem sequer existia. Depois, a Checoslováquia entrou no que Kundera chamou, de modo quiçá um tudo-nada forçado, «tripla repetição do número vinte». Ganha a independência em 1918, perdeu-a em 1938, quando os líderes dos países vencedores da Guerra se assustaram com as ameaças de Hitler. Em 1948, o país aceitou o comunismo para vinte anos depois perceber que não estava autorizado a introduzir-lhe mudanças – muito menos a abandoná-lo. O poder imposto pelos tanques soviéticos instalou-se em força em 1969 e apenas caiu em 1989. Três vezes vinte. Pelo meio, ainda existem os dez anos que vão de 1938 a 1948. Os anos da ocupação nazi, da perseguição aos judeus, do Reichsprotektor Reinhard Heydrich, uma figura que me fascina tanto como o proverbial olhar do réptil e a que talvez ainda volte – mas aconselho desde já a leitura de HHhH, de Laurent Binet, que a Sextante publicou há pouco mais de um ano. As contas são fáceis de fazer: os checos passaram três quartos do século em guerra ou numa paz regida pelo medo. Medo do próprio governo, medo de governos vizinhos, medo de proferirem uma palavra imprudente ou mal interpretada. Talvez nós, portugueses, devêssemos pensar nisto quanto justificamos pechas nacionais com os quarenta e oito anos de Salazar.

 

Mas não é minha intenção comparar ditaduras nem estados de alma colectivos. Prefiro centrar-me no génio de Kafka. Permitam-me só mais algumas datas: Kafka morreu em 1924 mas O Processo, escrito cerca de dez anos antes, foi publicado pela primeira vez apenas em 1925. Kafka era judeu e falante de alemão, o que, já na época de início da Primeira Grande Guerra, não constituía combinação fácil. Mas Hitler e Estaline, os campos de concentração e o gulag, a Gestapo e o KGB (e a Státní Bezpečnost, a polícia secreta checa dos tempos comunistas), tudo ainda fazia parte do futuro. Porém, Kafka adivinhava. Ainda que se diga que ele achava os seus enredos mais divertidos do que assustadores ou proféticos, o universo de Kafka é o universo do totalitarismo e, mais especificamente, do totalitarismo moderno. Tão moderno, de facto, que, talvez ironicamente para quem abominava a nascente psicanálise (Kafka apreciava a loucura e detestava que se pretendesse curá-la), é, acima de tudo, um totalitarismo psicológico. Kundera outra vez, em Os Testamentos Traídos (Edições ASA, 1994, tradução de Miguel Serras Pereira): «Se lermos assim O Processo, ficaremos, desde o início, intrigados com a estranha reacção de K. à acusação: sem nada ter feito de mal (ou sem saber o que de mal fez), K. começa logo a comportar-se como se fosse culpado. Tornaram-no culpado. Culpabilizaram-no.» E Kundera mostra como K. segue o processo psicológico típico de alguém que sente estar a agir como culpado sem o ser. Um processo interior, por contraponto ao outro, exterior, que dá nome ao livro, e que tem cinco estádios: Luta vã pela dignidade perdida, Prova de força, Socialização do processo, Autocrítica, Identificação da vítima com o seu carrasco. Na literatura, antes de Kafka, um inocente podia ceder e confessar crimes que não cometera, podia ser formalmente culpado mas, perante si mesmo, mantinha-se inocente. Em Kafka, a culpa é imposta do exterior e é aceite. K., a personagem de O Processo, irá (no estádio 4, o da autocrítica) examinar a sua vida à procura do momento em que se tornou culpado. Já não duvida que o é. Num regime totalitário, o acusador não precisa de conhecer a culpa do acusado antecipadamente. Precisa de, em conjunto com o acusado, a descobrir (releiam, por favor, o excerto de Banville sobre a réplica do interrogador comunista em 1951) pois sabe que toda a gente é culpada de alguma coisa – quanto mais não seja, de um pensamento. E, se até a própria culpa pode vir a ser aceite como real, quão fácil é aceitar a culpa alheia? O poder num regime totalitário vive de pessoas que aceitam a culpa alheia. Se foi preso, alguma coisa terá feito. Reacção apenas humana; reacção decididamente kafkiana. O corolário, como se viu (como Kafka viu), é se fui preso, alguma coisa terei feito. (Em 1984, de Orwell – a quintessência do livro sobre totalitarismo, mas convenhamos que o inglês já assistira a muito no quarto de século que decorrera desde a morte de Kafka – há uma personagem que aceita prisão e castigo e ainda se recrimina por, alegadamente, ter criticado o Grande Irmão enquanto dormia.)

 

Em Portugal, dizemos frequentemente que, ao ler-se Eça, pode ver-se o país actual. É verdade. Os bons escritores são intemporais – e globais. Mas, ainda assim, Eça descreveu a época em que viveu. Kafka descreveu os cinquenta anos que se seguiram à sua morte. E esperemos que não outros tantos, no nosso futuro.

Ali Babá só enfrentou 40

Rui Rocha, 31.05.12

A auditoria ao modelo de gestão, financiamento e regulação do sector rodoviário, hoje publicada, apresenta conclusões que apontam, de forma inequívoca, para a existência de um comportamento deliberado do Governo liderado por José Sócrates (e em que era Secretário de Estado Paulo Campos) de sonegação de informação ao Tribunal de Contas e de violação de elementares interesses do Estado. Mais, e em concreto, tal Governo terá promovido a celebração, no âmbito das PPP, de contratos paralelos que importaram o agravamento das condições financeiras a suportar pelo Estado em 705 milhões de euros. A confirmar-se tal situação, todos devem assumir as suas responsabilidades. Desde logo, a Procuradoria-Geral da República, a quem se pede que, por uma vez, cumpra com diligência e competência as suas obrigações, promovendo a investigação que se impõe para determinar a viabilidade da responsabilização, em primeira linha, dos membros desse Governo envolvidos neste esquema predatório do erário público. Mas, também, das concessionárias e entidades bancárias envolvidas na assinatura dos contratos paralelos, cujas consequências e intuitos não podiam desconhecer. Por outro lado, o PS tem a estrita obrigação de tomar uma posição clara sobre este assunto, uma vez que é o partido que suportou politicamente esse Governo e  tem como militantes e deputados da sua bancada parlamentar os autores de tais actos. A gravidade da matéria não permite que António José Seguro a ignore ou a desvalorize, sob pena de comprometer irremediavelmente qualquer réstia de credibilidade. Por último, o actual Governo deve ser consequente com os factos apurados, recusando-se a efectuar qualquer pagamento previsto nos ditos contratos paralelos e promovendo a desvinculação jurídica do Estado português de quaisquer obrigações ali previstas. Se isto não for assim, teremos de concluir que Ali Babá teve muita sorte pois só teve de enfrentar 40 enquanto os portugueses se debatem, a cada dia, com muitos mais.

"Pensemos filosoficamente".

Luís M. Jorge, 31.05.12

O repto vem no "Retrato de Ricardina", de Camilo Castelo Branco. Os irmãos Pimentel, na ruína, são abordados por um abade que pecara na juventude e queria casar duas filhas a troco de um dote de trinta mil cruzados por cabeça. Os irmãos recebem agastados a proposta, depois acalmam-se, depois pedem tempo para reflectir. Finalmente, escreve Camilo, "os noivos acederam, tirando a partido que a mãe das nubentes se recolheria em mosteiro, antes das núpcias das filhas". Nada feito. "Voltaram os Pimentéis a reflectir. Acharam-se subitamente filósofos". "Pensemos filosoficamente - dizia o irmão de Clementina. - As raparigas que venham com a condição de cá não pôr o pé a mãe. Comunicaram ao abade a modificação. - Não, senhor - retorquiu o padre. - Onde as filhas estiverem há-de ir a mãe. - Pensemos filosoficamente - disseram entre si os Pimentéis. - A mãe poderá vir alguma vez; mas o abade nunca.. - Não, senhor - insistiu o abade. - Eu hei-de ir ver minhas filhas, porque lhes quero muito, e decerto não dava sessenta mil cruzados com a obrigação de as não ver mais. (...) - Pois deixemos vir o abade. Pensemos filosoficamente. A desonra (...) é coisa em que ninguém já fala. Tudo esquece. Foi uma desgraça; todas as famílias têm destas nódoas. Já agora, sejamos filósofos como toda a gente." Desde que eclodiu o "caso Relvas" vejo uma parte da nossa direita a meditar com angústia na imperscrutabilidade do mundo, na inacessibilidade do real, nos mistérios da "coisa em si". É bom sinal. Tal como os irmãos Pimentel, estão a "pensar filosoficamente".

Jornalismo: uma história exemplar

Pedro Correia, 31.05.12

 

Foi um dos mais célebres textos desde sempre aparecidos na imprensa espanhola: a 30 de Maio de 1968, o jornal Madrid publicava - com chamada de primeira página - um editorial intitulado «Retirarse a tiempo - No al General De Gaulle».
Na capa dessa edição, via-se uma grande foto sob a manchete «Francia: es el final». A foto mostrava manifestantes em Paris com uma máscara do velho General e um letreiro em que se lia 'Démission'. Legenda do jornal: «Um grito en la calle: Dimisión!»
Tudo apontava à superfície para De Gaulle, mas qualquer leitor mediano de entrelinhas percebia que nesta manchete do irreverente diário dirigido pelo jornalista Antonio Fontán tudo aquilo visava outro general: Franco.

 

Aliás, para que não restassem dúvidas, o editorial - assinado por Rafael Calvo Serer, presidente do conselho de administração da empresa proprietária do jornal - terminava desta forma: «España mantiene una semejanza de situaciones sociales y políticas con el vecino país. Si a Francia se le presenta el problema de la sucesión de De Gaulle y del régimen de la V República, también con especiales características está planteado en España. Mientras el general francés ha realizado una política exterior izquierdista, pero conservadora en el exterior, la política exterior española ha sido otro signo y en el interior está por hacer la reforma de las estructuras económicas y sociales.
Si el movimiento universitario y el obrero son de oposición radical al régimen personal de De Gaulle por la falta de participación de los gobernados en los niveles económico, social y político, los españoles no hemos resuelto la plena participación democrática cuando, según las leyes, se dan por terminados los períodos totalitario y autoritario del Régimen.
Esta es la cuestión clave. En la vía de su resolución se plantean estos interrogantes prácticos y urgentes: ¿cómo puede formarse un Gobierno para enfrentarse con las nuevas realidades?, ¿cuál será la organización política más adecuada para que este Gobierno pueda contar en sus decisiones con la mayor participación individual o asociativa? Y por último, en el momento de producirse la vacante previsible, ¿quién ha de ser el Jefe del Estado que reúna las mejores condiciones para la acción de aquel Gobierno radical y para contar con la máxima adhesión popular?»

 

O ditador espanhol, já nos seus anos crepusculares mas ainda com o regime "atado e bem atado" (a expressão é dele e ainda hoje se utiliza em Espanha, associada ao franquismo), enfureceu-se com esta edição do periódico madrileno e mandou aplicar-lhe uma das maiores sanções pecuniárias de que há registo na história do jornalismo espanhol. Mais tarde as pressões do regime acabariam por conduzir à demissão de Fontán, que após a morte de Franco viria a ser ministro do primeiro executivo liderado pela União do Centro Democrático, de Adolfo Suárez, e presidente da primeira legislatura do Senado após o restabelecimento da democracia (1977-79).

Em 1971, o irreverente Madrid viu-se forçado ao encerramento. Mas já conquistara um lugar de relevo no combate ao franquismo, designadamente por esta desassombrada edição de Maio de 1968. E hoje um dos mais relevantes prémios jornalísticos anuais em Espanha tem precisamente este nome prestigiado: Diario Madrid.

Imagens:

1. Uma das capas do jornal desse quente mês de Maio de 1968

2. Rua do centro de Madrid na década de 60

3. A última edição do irreverente jornal que Franco mandou fechar

Não me parece que Relvas esteja mais forte

Rui Rocha, 31.05.12

Na versão de Miguel Relvas sobre a sua relação com Jorge Silva Carvalho, a verdade constrói-se no sentido inverso ao dos ponteiros do relógio. A narrativa não relata o que efectivamente sucedeu. Adequa-se àquilo que se antevê que possa acontecer no futuro. E o futuro são os factos que os órgãos de comunicação social vão divulgar a seguir. A cada facto novo, a verdade de Relvas adapta-se, actualiza-se. Aproxima-se, a contragosto e na medida do estritamente necessário, da realidade. Silva Carvalho passa de alguém quase desconhecido, a contacto pontual em ocasiões sociais. E daí a interlocutor em reuniões de negócios. Neste modelo de verdade servida a conta-gotas, a transparência faz jus ao seu nome. Não se vê. Em tudo isto, Relvas cometeu, pelo menos, três erros. O primeiro consiste em não ter percebido que Silva Carvalho é, mais do que um espião, um agente. Altamente infeccioso. Qualquer contacto, na vida privada ou no exercício de funções públicas, implica uma forte probabilidade de contágio. A única forma de evitar a enfermidade é mantê-lo à distância. O segundo resulta de não ter aberto o jogo todo logo à partida. Não o tendo feito, arriscou-se a que a censura da opinião pública passasse da gravidade dos factos para a gravidade da sua ocultação. O terceiro ocorreu no episódio do Público em que não soube agir com a sobriedade de um titular de funções governativas e com a contenção própria de quem diz ter a verdade do seu lado. Relvas afirma que não mentiu, nem omitiu. Talvez seja assim. Provavelmente, omintiu. Uma conduta que fica algures entre a mentira e a omissão. Agora, tem a água pelo pescoço. É natural que se agarre a qualquer coisa para evitar afogar-se. Mas não podemos permitir que arraste para o fundo a nossa consciência. Sócrates nivelou por baixo os padrões morais do exercício de funções públicas em Portugal. Desanquei-o de forma regular e intensa. Não posso fazer menos relativamente a quem atribui à verdade uma natureza flutuante, em função das circunstâncias. Não foi para isso que, nas últimas legislativas, votei no PSD. Nem foi isso que o PSD me prometeu.

Ai Christine, ai!

Helena Sacadura Cabral, 31.05.12

 

A Directora Geral do FMI, Christine Lagarde, tem um vencimento anual de 372 mil euros livres de impostos, a que se somam mais de 66 mil euros de despesas de representação.

No final de cada ano Christine arrecada 438 mil euros e não paga qualquer taxa ao Estado. A ser verdade, é natural que os gregos não a entendam. E as crianças africanas ainda menos...

Uma de espiões

Rui Rocha, 30.05.12

Dois espiões, um inglês e um português, encontram-se, ao serviço dos respectivos países, numa reunião ultra-secreta. O inglês toma a iniciativa das apresentações, para quebrar o gelo:

- O meu nome é Bond! James Bond. E o teu?

- O meu nome é Alho. Silva Carvalho.

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