A vida continua...
Porque a vida continua e, felizmente, ainda tenho vivos de quem me ocupar.
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Sim, já todos sabemos que o futebol é terreno fértil em factos assombrosos. E que desde que um célebre dirigente viu um porco a andar de bicicleta os fenómenos sobrenaturais começaram a suceder-se a uma velocidade vertiginosa. Se dúvidas houvesse, aí teríamos o cabelo de Jorge Jesus a comprová-lo. Todavia, há fronteiras que eu próprio acreditava serem insuperáveis. Por exemplo, parecia-me impossível que uma equipa com um guarda-redes e sete jogadores de campo pudesse actuar em 4x3x3. Mas isso foi antes de ler a edição online do Record.
- Trinta e oito anos depois do 25 de Abril, o que temos?
- Temos abril.
1. UM LIVRO, 2. CA...... SARKIS G........N, 3. OLHOS, 4. ESCAVAR, 5. IN VINO VERITAS, 6. TO THE LEFT, AS PERNAS DE STELLA, 7. O MEDALHÃO, 8. O SEGREDO, 9. LABIRINTOS, 10. FRAGMENTOS DE HISTÓRIA
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UMA VIAGEM
Valerya não lhe respondeu. Um pesado silêncio preenchia a sala, entre rostos cabisbaixos e esgares de incómodo. João Cosme esboçou um leve sorriso. Também ele estava surpreendido com aquela estranha revelação, a de um livro com uma data escrita aparentemente dez anos antes da sua publicação. Mas a primeira – a única – resposta que lhe ocorreu para tão invulgar mistério era tão simples quanto divertida. Talvez aquele número rabiscado tivesse sido de facto escrito em 1942. Nada de tão anormal assim, para um homem que durante anos devorara H.G. Wells, Sprague de Camp e Michael Moorcock. Que passara infindáveis tardes imaginando-se para lá dos limites do tempo, capaz de superar as barreiras da física e de conhecer outras realidades, outros homens, outros mundos. Porventura recuar até à época em que os seus dias não eram ainda turvos e o crepúsculo não teimava invadir os seus pensamentos.
— 1937 – disse em voz baixa Valerya, rompendo o silêncio da sala e cortando abruptamente a intempestiva reflexão de João Cosme.
(Este é o décimo primeiro capítulo do nosso 'cadáver esquisito', explicado aqui. A próxima mão a embalar o cadáver é a do José Maria Gui Pimentel.)
Uma das melhores definições sobre Miguel Portas vem num texto de Ivan Nunes no Público (hiperligação só para assinantes): «Numa vida muito intensa, tocou uma quantidade extraordinária de pessoas e era - isso é verdade, e é raro - um tipo sem maldade nenhuma.»
Afonso Costa em Paris
Sidónio varreu tudo com um gesto.
Tudo, era a República tal como fora até aí e o gesto incluiu a olvidada batalha do Rato, em que na noite de 5 de Dezembro de 1917 os marinheiros governamentais carregaram pela R. da Escola Politécnica apontando à S. Filipe Nery, acabando em combates corpo a corpo, à baionetada, debaixo de fogo de metralhadora, contra as trincheiras sidonistas do Largo do Rato. Houve quem contasse 200 cadáveres no rescaldo, embora os números certos nunca tivessem sido apurados. “A marinha foi beber água ao Rato” fez-se verso de fado cantado pelas esquinas e tabernas lisboetas.
A república como fora até aí chamava-se Afonso Costa. Ele era dono e senhor do PRP (Partido Republicano Português), pôs e dispôs dos governos, distribuiu o tesouro a quem quis e como quis, remeteu para os confins da oposição quem se lhe atravessou ao caminho, como Brito Camacho e António José de Almeida, aos quais foram reservados papéis meramente decorativos.
Afonso Costa era frio com os inimigos, irascível com os chegados, implacável com todos – inamovível. Além disso tinha sempre razão, o que era sobejamente legitimado pelas aclamações que qualquer plano ou pensamento seu sempre concitava entre os apoiantes. Os erros eram doutros e para lá do círculo de fiéis em que se concertou, só via impostores, oportunistas e mal intencionados. O ídolo não tinha pés de barro, durou 7 anos de poder e moldou o regime à sua feição e a seu bel-prazer, mas quando foi derrubado ninguém socorreu a apanhar os estilhaços.
Que sucedeu a Afonso Costa, depois do golpe de Sidónio? Foi para Paris num exílio de prata (não existe tal coisa como um exílio dourado). Só regressou em 1971, 34 anos depois da sua morte, direito ao jazigo familiar em Seia.
Esta semana calha-me a mim escolher o blogue da dita, e confesso que o exercício se torna cada vez mais difícil. Os arquivos já vão longos, e a maior parte dos blogues que leio regularmente com gosto já foram seleccionados. De qualquer forma, ainda tenho um ou dois na manga; e para esta semana escolho o Estado Sentido: um blogue sempre interessante, com boa escrita e reflexões pertinentes sobre este nosso país.
«O Miguel Portas (trato-o assim por sentir certas afinidades de respiração comum) foi uma alma grande e inteira, feita de um corpo de inquietação pelo mais alto das nossas vidas: a justiça, sobretudo para os mais fracos.
Os seus gestos públicos, marcados pela inteligência, tolerância, convicção e empenho, são afinal a expressão de um amor apaixonado por um Portugal, que queria livre e fraterno a sua Mátria a quem serviu de cem maneiras, que foi também uma Pátria em construção no diálogo com o Outro, a Europa, o Mundo.
As suas andanças pelo Médio Oriente, que a RTP transmitiu em programas, à procura das marcas que a nossa história aí deixou, apontam assim no mesmo sentido: elas falam de nós quando nos afastámos para além de nós, dão-nos a ver o Outro que já fomos, mas o Outro é o pano de fundo onde se inscreveram os nossos gestos.
É assim no diálogo do presente com o nosso passado e de nós com o Outro que se encontra o caminho a trilhar para que Portugal possa hoje reorientar a sua situação debilitada. E é a reafirmação política da Europa que há-de condicionar a nossa reabilitação.
Nós assistimos a este compromisso firme, que Miguel Portas traçou até ao fim, entre o destino da Europa na sua conexão orgânica com Portugal.
Obrigado, Miguel, por tudo o que fizeste no plano público. Oxalá bebamos a lição do teu exemplo.»
Do nosso leitor Vasco Tomás. A propósito deste texto do João Carvalho.
"Adorávamo-nos para além de todas as diferenças. Mais: adorávamo-nos também por causa das nossas diferenças. Cada um de nós procurava no outro a sua parte de maior verdade."
Paulo Portas sobre Miguel Portas, agora mesmo
LIMITES
I
Um juiz do tribunal de Portalegre «entendeu que a entrega da casa ao banco liquida toda a dívida do empréstimo do crédito à habitação», o que contraria o hábito instalado na banca de ainda exigir amplas responsabilidades aos exaustos devedores hipotecados.
Vai daí, a Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) veio a público considerar que «a decisão do Tribunal de Portalegre, sobre uma casa entregue ao banco, prova que os juízes se sabem adaptar às novas realidades do País». Disse a ASJP: "É uma decisão nova que se aplica num tempo novo. É importante que a jurisprudência e as decisões dos tribunais se adaptem à realidade que nós temos."
II
Uma vez mais, a ASJP ultrapassou os limites e fez letra-morta da independência dos juízes, que não obedecem a qualquer hierarquia no seu exercício de julgar, e da sua respectiva irresponsabilidade no que respeita à sua competência decisória.
Que um cidadão opine sobre decisões de tribunais é um direito corrente. Que um dirigente da ASJP e juiz faça o mesmo já é mais duvidoso, por se tratar de um magistrado judicial a comentar decisões que lhe são alheias por pertencerem a processos entregues a outros magistrados judiciais. Que um magistrado judicial o faça em nome da ASJP é claramente abusivo.
Por este caminho e por absurdo, a ASJP parece querer passar a tecer considerações sobre todas as decisões de todos os tribunais judiciais ou, pelo menos, sobre aquelas que puderem fazer jurisprudência. A menos que a notícia, tal como tem estado a ser divulgada, esteja incorrecta e, nesse caso, a ASJP já teve muito tempo para correr a corrigi-la.
III
Curioso é ninguém, por uma vez, restabelecer os limites que a ASJP não consegue respeitar. Está mais do que provado o que sempre achei (e muitos juízes também, felizmente): tentar juntar conceitos de associativismo profissional com posições de organização sindical é uma enorme confusão que devia manter-se bem longe dos respeitáveis limites dos órgãos de soberania.
Ser membro de um órgão de soberania às segundas, quartas e sextas e sindicalista às terças, quintas e sábados não augura nada de bom — nem aos domingos, porque a Justiça não encerra.
No Público de hoje, Miguel Esteves Cardoso escreve uma crónica lancinante. Escolhi este adjectivo criteriosamente, porquanto todos nós desenvolvemos ao longo da vida aquilo a que gostaria de poder chamar a reacção semântica. Reagimos às palavras com preconceito. Eu tenho essa atitude, muitas vezes. Lembro-me de já ter escrito por aí o quanto detesto a palavra comiseração. Li, algures, alguém que dizia ter sentido comiseração pelas manifestações de um amor a que não podia corresponder. É horrível. A comiseração sente-se de cima para baixo, é um ai-coitadinho-tenho-tanta-pena-de-de-ti-mas-não-posso-fazer-nada-estou-aqui-muito-bem.
A comiseração implica uma enorme e detestável sobranceria. É preferível não sentir nada. Digo eu, claro.
Voltando ao lancinante da primeira linha. A palavra pressupõe um cortejo lexical de peso, de lágrima, alguma complexidade sintáctica ao nível da hipotaxe, uma escolha de palavras-setas que entrem em cheio nos olhos do leitor. Pois. Mas, quem muito bem escreve, não precisa da parafrenália gongórica habitual. Depura as palavras que jorram e elas caem sobre a folha reduzidas ao essencial que tudo contém.
Maria João piorou. Diz o MEC:
A minha pessoa é a Maria João e a Maria João passa mal. Nem o amor nem a sabedoria médica a podem salvar. Só a conjugação das duas coisas, mais um acrescento de milagre. O cabrão do cancro alastra-se. (...) Hoje, domingo, é o último dia em que estaremos juntos (...) amanhã logo às nove estaremos na consulta (...) onde nos avisarão das complicações possíveis. (...) Vai morrer o meu amor. Não vai. Como o meu amor por ela, nunca há-de morrer. As coisas acontecem sem acontecer o pensamento nelas. A alma, o coração e a cabeça são coisas diferentes. Que se dão bem. E são amigas. E deixam de ser quando morrem.
É assim que se chora com palavras. Fazer milagres com elas, não sei como é.
Um dia destes, quando parar de chover, lanço aqui uma série sobre capas de livros, a partilhar com os colegas de blogue que queiram juntar-se a ela. Hoje, à laia de prelúdio, deixo as capas das edições portuguesas de Paul Auster (chancela ASA). Cada uma delas é uma pequena obra de arte.
Por razões de sanidade mental, de tempo e mais uma montanha de outros argumentos extremamente válidos, vou ali e voltarei um dia destes. Desejo-vos dias bons e felizes. Eu estou encerrada para balanço.
«[O líder do PS] sucede a um delinquente político chamado Sócrates, o pior exemplo que jamais, na História de Portugal, foi dado ao País (...)»
Maria Filomena Mónica em entrevista ao i
A meio da tarde, enquanto aguardava duas horas, numa imensa fila de pessoas que se estendia do Campo Pequeno à Avenida Defensores de Chaves, dobrando duas esquinas sucessivas, escutei um homem que por ali passou dizer a outro: «Ele merece, sem dúvida.» Sabia a razão daquela fila interminável: durante cerca de cinco horas, milhares de pessoas deslocaram-se hoje ao Palácio Galveias para prestar uma sentida e expressiva homenagem ao eurodeputado Miguel Portas, que morreu terça-feira em Antuérpia a poucos dias de completar 54 anos.
Escutei por acaso aquela frase, que me pareceu uma excelente legenda para esta romagem de apreço por um homem que soube cativar figuras dos mais diversos quadrantes ideológicos. Por isso não me admirei de ver por lá gente tão diversa como Mário Soares, Maria Barroso, Ramalho Eanes, Jorge Sampaio, Pedro Passos Coelho, Assunção Cristas, António Costa, Marcelo Rebelo de Sousa, Manuel Carvalho da Silva, Pedro Santana Lopes, Teresa Villaverde, Pina Moura, Almeida Santos, Luís Fazenda, Ruben de Carvalho, Manuel Graça Dias, Bagão Félix, Maria João Avillez, João Cravinho, António-Pedro Vasconcelos, Rui Vilar, Ricardo Costa, Pezarat Correia, António Vitorino d'Almeida, Inês de Medeiros, Mário Crespo, Pedro Choy, João Botelho, José Fonseca e Costa, Mário Tomé, Maria Antónia Palla, Vítor Dias, António Pires de Lima, Joana Amaral Dias, Ângelo Correia, Judite Sousa, Pedro Rolo Duarte, António Perez Metelo, Vasco Vieira de Almeida, José Sá Fernandes e José Ribeiro e Castro - entre tantas outras personalidades.
Enquanto abraçava os dirigentes do Bloco de Esquerda presentes junto à urna (Francisco Louçã, João Semedo, Fernando Rosas e José Manuel Pureza) e os familiares mais próximos de Miguel Portas, incluindo os irmãos Catarina e Paulo e a nossa Helena, ia confirmando este raro condão do eurodeputado bloquista que perdurou para além do seu desaparecimento físico: ele era capaz de congregar a admiração sincera de muitos que não pensavam como ele. Por ser veemente na defesa dos seus ideais, transparecendo calor humano e convicção, sem nunca confundir claras divergências políticas com animosidades pessoais.
«Ele merece, sem dúvida.» Em dia de despedida, Miguel Portas podia ter muitos epitáfios. Este - espontâneo, genuíno e popular - foi um dos mais certeiros.