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Delito de Opinião

Convidado: JOSÉ AGUIAR

Pedro Correia, 27.04.11

 

Partidos que deviam ser ONG’s, clubes recreativos, tertúlias ou outra coisa qualquer

 

Para que serve um partido político que, eleição após eleição, não consegue eleger representante algum? Qual a utilidade, para o nosso sistema político, para a qualidade da nossa democracia, para o funcionamento das instituições e, em limite, para a vida das pessoas, de partidos políticos incapazes de traduzir votos em mandatos? Por que razão deve o Estado (e todos nós) atribuir vantagens financeiras, patrimoniais e fiscais a partidos políticos que não interagem com a sociedade, que estão desligados do eleitorado, que hibernam durante meses (anos até!) e apenas acordam da sua letargia quando se vislumbram eleições no horizonte? O que justifica a existência de partidos políticos que não possuem no seu ADN qualquer vocação para conquistar o poder, quanto mais exercê-lo ou mantê-lo? Sendo um defensor do pluralismo político-partidário – e do direito de livre associação de pessoas que se juntam para disputar eleições com base num programa apresentado ao eleitorado – defendo que os partidos políticos que, reiteradamente, são incapazes de eleger um representante que seja (para qualquer órgão), não devem poder continuar, indefinidamente, a beneficiar de financiamento estatal e de isenções de impostos (ver art.º 10.º desta lei).

Se o MEP, o MMS, o PNR, o PH ou o POUS, para nomear alguns, fossem ONG’s, clubes recreativos, tertúlias ou outra coisa qualquer, em vez de partidos políticos, fariam exactamente o mesmo que fazem hoje pelo nosso sistema político, pela nossa democracia, pelos nossos cidadãos, ou seja, zero, nada, niente, nicles batatóides. Um partido deve poder ser constituído livremente e até, porventura, de forma menos complexa do que acontece hoje, mas depois de ir a eleições uma vez, duas vezes, três vezes, sem eleger representantes, deveria perder o estatuto de partido político e ser automaticamente dissolvido (isto é, impossibilitado de, com aquela designação e pessoas, voltar a disputar a eleição seguinte). Se há razão nos argumentos que convocam para um desinteresse dos cidadãos em relação à política e da desconfiança em relação aos partidos, esse argumento também vence em relação aos partidos que nunca elegem ninguém: se em relação aos outros o desinteresse e a desconfiança existem, em relação a estes essa condição é total.

 

 

Tomemos como exemplo essa referência história que é o PCTP/MRPP onde pontificam figuras gratíssimas da melhor sociedade burguesa – Garcia Pereira e Arnaldo de Matos –, partido que anda por cá há anos e anos e nunca elegeu ninguém para lado nenhum. Para que serve, realisticamente, o PCTP/MRPP? O que faz de diferente enquanto partido, que não pudesse fazer como ONG ou clube recreativo? Nas últimas quatro eleições legislativas e três europeias, o PCTP/MRPP beneficiou de 1,4M€ só para a transmissão das suas mensagens televisivas de propaganda eleitoral. Se adicionarmos os tempos de antena em rádio, para as mesmas eleições, e somarmos o valor despendido para os tempos em rádio nas autárquicas decorridas no mesmo período de tempo, i.e., de 1999 a 2009, o valor ultrapassa aos 2M€.

O POUS, esse feudo neolítico por onde paira a figura omnipresente de Carmelinda Pereira – que ao que se sabe tem contribuído tanto para o nosso sistema político e para a nossa democracia quanto eu para esgotar a mais recente colheita de Margaux – feita também essa soma, chega aos 2M€. E que dizer dos 850M€ do PNR (que com a devida correcção chegam a 1,2M€), esse partido com propostas e ideias tão boas e edificantes, mas que teimosamente, as pessoas não elegem para lugar algum?

Recentemente, o partido MEP lançou uma petição, que já aqui denunciei como sendo demagógica. Recentemente, no Expresso, Rui Marques, o Presidente do partido MEP, volta a defender a ideia de que os tempos de antena eleitorais são gratuitos e que não custam dinheiro ao Estado. Isso não é verdade. O Estado paga às televisões e às rádios a transmissão dos tempos de antena eleitorais. No caso do partido MEP, o Estado já pagou transmissões televisivas no montante de 338 mil euros. Se somarmos o tempo pago às rádios, para as mesmas eleições (europeias e legislativas 2009), e acrescentarmos as autárquicas 2009, o valor ultrapassa os 500 mil euros. Do meu dinheiro. Para o partido MEP não eleger representante algum.

O quadro que acompanha este post diz apenas respeito à transmissão de tempos de antena televisivos em eleições europeias e legislativas. Faltam os montantes dos tempos de antenas nas rádios. Faltam as eleições autárquicas. Faltam as eleições regionais. Faltam o referendo do aborto. Com essa correcção, o montante aproxima-se dos 15M€, gastos em 10 anos, com partidos que, sozinhos, nunca elegeram ninguém, para lado nenhum. Partidos, afinal, que deveriam ser ONG’s, clubes recreativos, tertúlias ou outra coisa qualquer…

 

José Aguiar

Llellillismo

Rui Rocha, 26.04.11

 

O Lello tem um gosto requintado. O Lello nunca anda despenteado. O Lello ama o bello. O teatro, a pintura e a esculltura, tudo isso o Lello aprecia. O Lello já comprou uma serigrafia. O Lello é um artista mas, por modesto, recusa ser sullista. O Lello ouve música erudita. O Lello faz parte da cllientella restrita. Nas inaugurações é o Lello que corta a fita. Na lliteratura, o Lello seria um cllássico. O Lello tem de Pessoa o tripllo do perímetro torácico. O Lello compra livros que nunca saíram do prello. Se fosse um instrumento, o Lello seria um violloncello. E o arco um martello. Quando pragueja, o Lello verseja. A palavra é folleira? O Lello adorna. A situação está feia? O Lello contorna.  E um trambolhão transforma-se em anomallia. O Lello converte acidentes em tecnollogia. Uma só frase do Lello é um tratado de fillosofia. A casa do Lello devia ser um castello. O Lello não respira, opõe-se à apneia. O Lello não come, saboreia. O Lello não grita, canta. O Lello não escorropicha, decanta. O Lello não emborca, desfruta. Se fosse uma fruta, o Lello seria um marmello. Muito amarello, o Lello. Dita por Lello, uma acusação fica mais fina e chama-se llibello. O Lello vê para llá do que a vista allcança. Quando era Secretário de Estado das Comunidades o Lello até foi a França. O Lello nunca descansa, repousa. O Lello apoia o Engenheiro Pinto de Sousa. O pé do Lello nunca sai do chinello. O Llello come pão com gelleia. Ao allmoço, ao jantar e à ceia. O Lello não desafina, trauteia. O Lello não duvida, titubeia. Quando anuncia, o Lello proclama. O Lello veste robe de chambre quando anda em pijama. O  Lello descansa numa chaise llongue quando se llevanta da cama. É assim o Lello e, como se vê, não tem parallello.

Sócrates: sim ou não?

Pedro Correia, 26.04.11

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A eleição legislativa de 5 de Junho vai ser uma espécie de referendo à figura de José Sócrates, à sua capacidade governativa e ao legado dos seis anos em que esteve à frente do Executivo, quatro anos dos quais dispondo de uma confortável maioria absoluta. Haverá, obviamente, outros factores a motivar o voto, mas nenhum tão importante como a resposta a estas perguntas muito claras, muito simples e muito directas: Estamos hoje melhor ou pior do que estávamos em 2005? Quem é o principal responsável pela situação actual? Confia em José Sócrates para comandar os destinos do País?

São perguntas que transformam esta eleição num plebiscito ao ciclo político iniciado em Fevereiro de 2005. Quase como se estivessem impressas no boletim de voto.

Convidado: TOMÁS BELCHIOR

Pedro Correia, 26.04.11

 

O Estado Social fez de nós umas bestas quadradas

 

O Estado Social sempre foi uma construção absurda. Só assim se pode descrever uma tentativa de aperfeiçoar a natureza humana através de um sistema que não faz mais do que dar aos políticos a possibilidade de comprarem os seus cargos com o nosso dinheiro. O que é espantoso é o facto de, durante muito tempo, termos vivido bem com este esquema. Não questionámos sequer os seus resultados, quanto mais os seus métodos ou os seus pressupostos. Até ao dia em que a realidade veio enguiçar as coisas.
Termos ficado sem dinheiro para manter a máquina a funcionar está a revelar-se ser uma espécie de epifania. De repente descobrimos que só no papel existem benesses universais e tendencialmente gratuitas e que a única coisa real entre o lirismo é a cavalgada furiosa da conta que pagamos anualmente em impostos. Mas mais patético do que este nosso momento de revelação só mesmo as respostas dos políticos ao estertor do Estado Social.
À esquerda, agora que o chamado economicismo nos impede de gastar dinheiro público precisamente no momento em que ele seria mais necessário, só sobra a revolta primária contra os bancos, os ricos e o FMI. À direita, vende-se ao povo a solução do menos do mesmo. No meio de tudo isto, estamos nós, de boca aberta, à espera que nos devolvam as últimas gotas do dinheiro que pagámos, depois de este ter sido devidamente lavado no Orçamento de Estado, sem nos apercebermos do que aí vem. Sem nos apercebermos que o fim do Estado Social é uma boa notícia.  

 


Porquê uma boa notícia? Porque o Estado Social é um subsídio para nos tornarmos umas bestas. Porque o Estado Social não nos protege, isola-nos uns dos outros. Porque o Estado Social não nos salva de nós próprios, salva os políticos de quem vota neles. E, sobretudo, porque a verdadeira liberdade só existe quando podemos não só decidir mas também enfrentar as consequências dessas decisões. Quando podemos assumir a responsabilidade pelas famílias que criamos, pelos empregos que temos, pelas opiniões que emitimos, pelo sal que comemos.
Há uns anos, o Mark Steyn resumiu bem o problema: “O maior crime do Estado Social não é o desperdício de dinheiro, é o desperdício de pessoas”. Foi precisamente este desperdício de pessoas que nos trouxe até aqui e é o fim deste desperdício que vai acabar por nos salvar.
Se não formos livres para fazer o que está certo, nunca saberemos o que isso significa. Lembrem-se disto quando estiverem na fila do centro de emprego."

 

Tomás Belchior

Depois não se queixem

Sérgio de Almeida Correia, 25.04.11

Num dia tornado solene por força das circunstâncias, quatro homens bons discursaram em Belém. Procuraram falar de Portugal a Portugal e aos portugueses. Quiseram falar de nós. Uns com mais jeito do que outros mas todos, todos sem excepção, de uma forma séria e comedida. Olhos nos olhos. Se houve ali um denominador comum foi o apelo à participação, ao esforço colectivo, ao empenhamento cívico, à razão e ao bom-senso. As palavras foram sinceras, contidas, não perdendo o brilho que lhes foi conferido por cada discurso. E não se esqueceram de falar na próxima jornada eleitoral. Em suma, aqueles quatro homens generosos procuraram conferir seriedade à intervenção política.

 

A Única deu a conhecer na sua última edição, como também já o tinha feito por ocasião da Festa do Pontal, no Verão de 2010, mais algumas facetas do líder do PSD. Ao mesmo tempo, graças ao Público e a mais duas revistas, os portugueses ficaram agora a saber que Passos Coelho gostava de ter mais filhos, que o ar de menino do coro tem correspondência na prática, que é especialista em farófias, papos-de-anjos e queijadas e que no meio da sua intensa agenda política e dos profundos pensamentos em que deve estar imbuído para salvar a pátria, ainda arranjou um tempinho para tirar umas fotografias para as revistas cor-de-rosa nos jardins do Palácio Marquês de Pombal, Oeiras. Ah, e já me esquecia, os portugueses também ficaram a saber que o candidato a primeiro-ministro tem quatro cadelas que não irão viver para S. Bento. Valha-nos isso.

 

Do que li não consegui perceber se a casa de Massamá, popularizada por Mendes Bota, é um apartamento em regime de propriedade horizontal ou uma moradia, E também não fiquei esclarecido sobre quem levava às cadelas à rua, se estas faziam os dejectos à porta de sua casa ou da do vizinho, nem se depois era o próprio líder do PSD que calçava umas luvinhas e os apanhava do passeio ou se deixava as "prendas" expostas para que um incauto as pisasse.

 

Pese embora tão lamentáveis falhas no esclarecimento da opinião pública, o Público revela que as reportagens são uma "jogada de marketing político montada pelos seus estrategas de campanha" e que duas das revistas cor-de-rosa pertencem ao universo Cofina. Um verdadeiro póquer.

 

José Sócrates poderá reunir em si, neste momento, todo o asco da opinião pública e ter um percurso "nebuloso". Passos Coelho poderá ser um homem bem-intencionado e "transparente". Mas mesmo que tivéssemos um 25 de Abril em Belém todas as semanas, com quatro Presidentes a discursarem, estas reportagens desmentem qualquer boa intenção. Será culpa dos jornalistas?

 

Em boa verdade, o que estas reportagens nos dizem é que os problemas dos portugueses se resumem a isto: uma questão de publicidade a cadelas e farófias nas revistas cor-de-rosa.  

 

Se este é o caminho que Passos Coelho e os seus brilhantes estrategas têm a apontar ao país, se é pelo caminho da mais obscena frivolidade que o líder do PSD pretende formar um governo de maioria sólido e coeso que devolva a dignidade aos portugueses, então o melhor talvez seja mesmo arranjar umas armas, pedir desculpa àqueles senhores que hoje discursaram, e fazer um novo 25 de Abril.

 

Está na hora de se fazer uma nova revolução. Penso que foi isto que Cavaco Silva também quis dizer no discurso da sua tomada de posse, que hoje foi reafirmado por quatro homens sérios e bem-intencionados e cujo verdadeiro alcance só nesta altura consegui compreender depois de ler o que li.

 

Meus amigos: um sobressalto cívico seria "defenestrar" quem depois de se entreter a cozinhar reportagens destas ainda tem o desplante de se apresentar a votos e aspira ser primeiro-ministro e ministro de Portugal. Se não o fizermos acabaremos todos por ser tratados como cães. E a votar nas cadelas. E nos seus filhos. Já faltou mais. 

 

(a foto que ilustra este post é do Público e de Rui Gaudêncio) 

   

Convidado: JOSÉ PEDRO LOPES NUNES

Pedro Correia, 25.04.11

 

Pagar as dívidas

 

Portugal não é um país rico. Penso que grande parte das pessoas aceitará a veracidade desta afirmação. Como corolário deste conceito, poderemos dizer que Portugal não pode, nas condições actuais, providenciar aos seus cidadãos todos os serviços que alguns países ricos colocam à disposição dos seus próprios cidadãos.

Endividar o país, de forma a sustentar um estado social típico de países europeus com riqueza muito superior à nossa, tem sido a política dos últimos anos, mas dificilmente tal política será defensável, e, ao que tudo indica, não será financeiramente sustentável num futuro muito próximo.

A questão de saber se Portugal se deve endividar de forma a adoptar políticas económicas “anti-cíclicas” deve subordinar-se a uma filosofia e a uma ética geral, e não o contrário. Como exemplo, tomemos o caso do esclavagismo. Não interessa discutir os aspectos económicos do esclavagismo, por exemplo nos EUA do século XIX. Mais do que saber se o esclavagismo apresentava bons ou maus resultados económicos, devemos aceitar que o esclavagismo era errado e devia ser abolido, tal como sucedeu. A filosofia tem que se sobrepor à economia.

No actual caso português, devemos aceitar que o endividamento é intrinsecamente errado, independentemente dos efeitos económicos do mesmo (os quais, a propósito, não têm sido bons). Portugal tem que caminhar, muito rapidamente, para um orçamento com superavit, de forma a começar a eliminar as suas dívidas - idealmente, já em 2012. Essa é a única filosofia correcta, e está acima de quaisquer outras considerações.

Trata-se de uma filosofia que tem a ver com a dignidade do país, que não poderá continuar a ser visto como um país que tudo o que sabe fazer é gastar dinheiro, seja das especiarias, do ouro do Brasil ou da Europa.

Em consequência do exposto, é urgente começar a desmantelar muitas estruturas do estado português que não sejam consideradas essenciais à existência do país enquanto entidade independente. Todos gostaríamos de viver num país que pudesse ombrear com os melhores do mundo. Tal não é, neste momento, possível. Para sobrevivermos, teremos de seguir as palavras de Mário Soares, em meados da década de 1970: "Nós temos de nos habituar a viver com aquilo que temos. Esta é a verdade fundamental. Portugal tem de se habituar a viver com aquilo que tem."

Como país, devemos procurar mostrar a nossa dignidade, não deixando degradar mais a nossa imagem junto do resto do mundo. É algo que devemos aos que estiveram antes de nós e aos que vão estar depois de nós.

Em relação à próxima campanha eleitoral, sou de parecer que o PSD, enquanto partido alternativo ao PS, deve tomar como seu o lema “PSD, o partido que vai pagar as dívidas”. Pagar as dívidas do país, lavar a face. Reparar os erros dos outros - outros que agiram em nome de todos nós e mandatados por nós. Trata-se de um imperativo ético e histórico. Ao povo português, o PSD deve dizer, tal como W. Churchill disse aos britânicos, “Give us the tools, and we will finish the job”. Os instrumentos necessários são os votos nas urnas, e o trabalho, a salvação e a regeneração do país.

 

José Pedro Lopes Nunes

De blogue em blogue

Pedro Correia, 25.04.11

1. Lamento muito o silêncio do João Severino, uma voz que faz falta à blogosfera, sobretudo pelos motivos que aqui invoca. No Dia da Liberdade, o silêncio torna-se ainda mais insuportável. Faço votos para um regresso rápido do Pau Para Toda a Obra.

 

2. Parabéns ao colectivo da Quarta República pela nova imagem do blogue, agora mais legível e com uma barra lateral actualizada. Com um abraço especial ao Pinho Cardão, bom amigo do DELITO.

Prisioneiros de gente bem-intencionada com quem se pode falar

Sérgio de Almeida Correia, 25.04.11

Em 25 de Abril de 1974, quando o despertador tocou, reparei que estavam todos na sala com os ouvidos colados ao velho Schaub Lorenz. Iluminado pelo candeeiro que hoje está em S. João, estranhei a concentração àquela hora da manhã, e mais perturbado fiquei quando me disseram que não haveria escola. Logo naquele dia que havia aula de Educação Física às 8.30. Nesse dia, e nos meses seguintes, percebi que o mundo mudara. O meu e o dos outros. Nunca mais voltei a Moçambique. O C.J., que deixara o seu lugar no Ministério das Corporações para ir cumprir o serviço militar, regressou de Angola. Quando apareceu lá em casa trouxe-me um Matra-Simca da Solido. Nunca mais me esqueci. O ano terminou sem que eu voltasse a ver o meu irmão. Meses volvidos foi o meu pai que desembarcou em Lisboa. E passei a conhecer mais uns quantos tios de quem até então só ouvira falar. Tirámos fotografias nos Restauradores e fomos ao miradouro da Senhora do Monte. Nesse tempo comia-se razoavelmente no snack-bar do Cinema Londres e os bifes do Paris-Orly eram imbatíveis.

Como então escreveu Marcello Duarte Mathias, no seu “Os Dias e os Anos”, nesse dia, “em 24 horas, Portugal mudou de século”.  

Se em 1974 saímos de um século XIX que se prolongara até 25 de Abril, em 25 de Abril de 2011 ainda tentamos perceber por que motivo um país que em 24 horas mudara de século, não consegue em trinta e sete anos mudar de políticos. Tirando os que morrem, os que ficam incapacitados ou que já enriqueceram, todos os outros se mantêm. Ainda ontem Mário Soares, a quem todos devemos o melhor do muito pouco que ainda temos, era citado por Marcello Rebelo de Sousa, em razão de uma entrevista a um matutino. Soares terá dito que um dos homens de quem depende o futuro próximo deste país era uma pessoa bem-intencionada, agradável, e com quem se podia falar. Não duvido. De Marcello Caetano também sempre ouvi dizer que era um homem bem-intencionado, agradável, e com quem se podia falar. E dele até ouvi dizer um dia, a um revolucionário moçambicano que passou por Santo Tirso e pela Faculdade de Direito de Lisboa e que apanhava boleias no avião de Jorge Jardim, quando ia de férias a Moçambique, que devia a Caetano o facto da PIDE o ter libertado.

Portugal é, e tem sido, uma terra de mulheres e de homens agradáveis, bem-intencionados e com quem se pode falar. E, no entanto, estamos como estamos, movendo-nos sem que consigamos sair do mesmo sítio. Conversando agradavelmente uns com os outros sem que nada de importante aconteça.

Bem sei que, melhor ou pior, e por vezes à força, lá nos fomos democratizando, descolonizando e desenvolvendo. Esgotando os “dês” da revolução do MFA sem que nos lembrássemos que havia mais letras. Como se tudo se resumisse a esses “dês” e fosse possível mudar de século e dar um sentido a essas letras sem o “a” de Abril. Esquecendo o “b” de burocracia e ignorando o “c” de camarilha. Ou pensar que alguma dessas realidades se consolidaria um dia sem o “e” de educação e o “f” de formar, únicas letras capazes de conterem o “g” de golpada no “h” de hoje, sem que para isso o “i” de inércia desse cabo do “j” com que se escreve justiça. Sim, porque sem justiça o “l” de liberdade se transforma num “l” de libertinagem, que anda paredes-meias com o “m” de malandragem e a mandriice que antecede o “n” dos narcisos que recorrem ao “o” das oligarquias para que o “p” de poder seja antes sinal de perpetuação do “q” de quadrilha. Daí que a esta se siga, rigorosamente, o “r” de rastilho, origem de todas as revoluções, e o “s” de sofrimento, cujas lágrimas escorrem por um pequeno “t” de transparência, demónio do “u” dos usurpadores e garantia do “v” de verdade. Verdade que trinta e sete anos depois acabou por não ser mais do que o “x” de um xadrez que viu as suas melhores peças desaparecerem no “z” dos ziguezagues dos três “dês”.

 Trinta e sete anos depois, ao olhar para trás, vejo-me na casa da partida. Que continua a ser a do regresso. À luz de um outro candeeiro, é verdade, mas tudo o mais permanece igual.

Pegando nos indicadores de qualidade das classes políticas, desenvolvidos por Juan Linz (1997), facilmente constatamos que aquilo que de substancial deveria ter mudado continua. A política ainda é uma carreira e não uma vocação; os dirigentes não evitam os perigos do radicalismo; a corrupção não está limitada; os dirigentes não resistem à tentação de cortejar movimentos e grupos duvidosos para conquistarem o poder e assiste-se diariamente a uma degeneração do discurso político de tal forma que se continua a fazer apelo aos sentimentos mais elementares dos eleitores.

 Victor Cunha Rêgo escreveu um dia que “divertimo-nos em vez de vivermos”, que “dilapidamos a inteligência e cortejamos a tolice” e que nos mantemos na periferia de nós próprios. Ao recordar o que ele escreveu, tanto tempo depois de termos levado apenas 24 horas a mudar de século, é imperioso concluir que continuamos na periferia de Abril.

E aí iremos permanecer até que voltemos a acordar. Quanto tempo mais isso ainda levará? Duvido que alguém saiba. Sei, contudo, que se continuarmos a viver numa época em que cada qual, como notou o José Cardoso Pires, insiste em falar para si próprio na companhia de muitos outros, poderemos levar outro século nisto.

De nada nos servirá haver gente bem-intencionada e agradável com quem se possa falar. Seremos de novo prisioneiros. Como até aqui.

Mário Soares devia saber que não há prisões agradáveis. Mesmo transitórias. E que ficar a falar com gente bem-intencionada não resolve os problemas e será sempre um castigo por não termos sabido repensar Abril a tempo e horas. Por não termos sido capazes de sair da periferia para entrarmos no âmago da revolução, percorrendo todas as letras do alfabeto. Sermos no futuro governados por gente bem-intencionada com quem se pode falar será a melhor prova do nosso falhanço. Um falhanço maior do que a liberdade que gozamos. Um regresso à prisão, mas desta vez à dos bem-intencionados com quem se pode falar.

O comentário da semana

Pedro Correia, 25.04.11

 

«Este homem, a quem, com toda convicção, confiei (e voltaria a confiar) o meu voto nas últimas eleições presidenciais, tem na verdade um grande defeito que acaba, afinal, por ser uma das suas maiores qualidades: é um desastrado nato! Engana-se frequentemente, tropeça em si mesmo e nas suas próprias declarações, diz o que não queria dizer e já chegou mesmo a declarar não ter gostado de se ouvir depois de ter dito o que disse. Tudo isto, porém, não lhe tira, a meu ver, qualquer mérito ou qualidade. Antes pelo contrário, acrescenta-lhas. A perfeita compreensão e a aceitação da sua escala e condição humanas, sempre disposto a reconhecer os seus erros, têm tornado este homem verdadeiramente apetecível para todos os quadrantes do poder e/(ou) a ele aspirantes, (como fica bem demonstrado pelo seu percurso dos últimos anos). Ele é justamente o antípoda do político, do calculista, do caça-votos, do arranjista, do enganador, do mentiroso compulsivo que, infelizmente, têm infestado a nossa vida pública das últimas décadas. E é exactamente porque este homem é um «não-político», é um desastrado, é, no fim de contas, um puro, (espécimen que é impossível de se encontrar dentro dos «aparelhos»), que estes, quase sem excepção, o têm chamado esporadicamente para que ele lhes empreste alguma da sua candura, para que lhes dê aquela limpeza e ar renovado que de outra maneira não conseguem ter. Já li e ouvi diversos comentários arrasadores acerca da hipotética ida deste homem para a presidência da Assembleia da República. Que "não conhece o regimento nem os cantos à casa", "que não é um verdadeiro político", "que não tem experiência", blá-blá-blá, blá-blá-blá, têm sido as críticas mais comuns. Curioso, na verdade... Isto que alguns consideram ser verdadeiros handicaps para a ocupação daquele cargo, eu considero justamente serem verdadeiras mais-valias para esse fim. Não haja dúvida que nem todos temos os mesmos valores, nem todos valorizamos da mesma maneira um homem nobre. Verdadeiramente Nobre.»

 

Do nosso leitor Luís Reis Figueira. A propósito deste meu texto.