Infortúnios da linguagem
Há palavras portuguesas (ou aportuguesadas) que me irritam de duplicidade, outras que me ofendem pela sua sonoridade, outras que me assinalam o seu utilizador como um perfeito cretino – e por aí fora. Não é certamente uma fatalidade nacional, mas é aqui que vivo e é aqui que as sinto activas, saltitantes, a rabear de boca em boca, de jornal em noticiário, de político em intelectual – seja lá o que esses alargadíssimos conceitos queiram abraçar.
Existem duas que se diz possuírem um significado específico mas que têm outro muito mais adequado e compreensível. Fazem parte do léxico político, mas sujeitam-se a transvases popularicados pelo jornalismo enfatuado e desnutrido e pelos seus principais attachés de presse – os analistas profissionais.
O primeiro é um vocábulo de sonoridade ofensiva e, tanto quanto julgo saber, um anglicismo recente.
Procrastinação – que, no fim de contas, é uma actividade muito próxima da auto-castração (por requisito próprio ou a mando de outrem).
Esta coisa horrorosa podia perfeitamente ser substituída de forma muito mais eficaz em termos de comunicação directa com o povo que se quer conhecedor dos seus líderes – e não exactamente escondido da realidade dos factos, esse semáforo das ditaduras – por termos que todos entendemos à primeira. Tais como o absolutamente nacional empata fodas ou mesmo pelo mais nortenho, regional e humilhante, caga na saquinha – adjectivos todos eles consequentes com o espírito da coisa.
Resolvido o problema da política empata fodas (ou caga na saquinha) e respectivas caixas de ressonância, marra-se logo na primeira esquina com a advocacial inverdade – que realmente não quer dizer aquilo que supostamente quer dizer.
Inverdade utiliza-se habitualmente como forma vagamente polida de chamar ao outro barreteiro – gajo que mete garrunços, trapaceiro, que falseia dados ou os manipula com fins ínvios ou inexplicáveis. Um mentiroso puro e simples, portanto.
Mas o que de facto acontece quando alguém recorre à macia inverdade é que no íntimo, acossado pelas acusações, apenas consegue esbracejar mentalmente um alto lá que isso não foi bem assim!... E lá sai a inverdade!...
Poupo-me a mim e aos que ainda não se fartaram de me ler de citar exemplos da flagrância oculta de tão estúpido vocábulo.
Para acabar (que já chateia), lembro um acontecimento que é feliz no seu sentido específico mas que sai cá para fora deturpado de forma exemplarmente nacional. E parva.
O episódio que me tornou a sua visibilidade insuportável gira à volta da magnífica Livraria Lello, no Porto.
Nada que já não tivesse sido constatado pelas mais variadas publicações: a Lello foi considerada pela editora australiana Lonely Planet como a terceira mais bela do mundo.
No entanto muitos jornais, noticiários e edições on-line fizeram as suas chamadas à primeira página, em alegre e levíssimo disparate, afirmando que a livraria portuense tinha sido considerada como a terceira melhor do mundo. Depois, no miolo, a verdade vinha ao de cima como o velhíssimo azeite. Logicamente.
A única coisa que então me apeteceu fazer quando vi isto – na SIC-Notícias, por exemplo, mas também em jornais ditos de referência – foi escrever aos editores todos de Portugal a dizer-lhes que este país nunca em dias da vida poderá ter a terceira melhor livraria do mundo porque as cem primeiras estão e vão continuar a estar em cidades muito concretas que toda a gente sabe, incluindo eles, quais são.
Não lhes escrevi porque para eles não lhes basta a Lello ser belíssima.
Porque são burros e pretensiosos.
António Eça de Queiroz