Volto hoje de novo a Alberoni.
De manhã ouvi na rádio uma notícia, aparentemente em violação do segredo de justiça, do qual serão os principais guardiões os senhores do Ministério Público, e fiquei a saber que uma ex-secretária de Estado e actual deputada do PS, Ana Paula Vitorino, tinha sido visada numa conversa entre dois figurões envolvidos no caso “Face Oculta”. A violação do segredo de justiça é uma trivialidade.
Dizer que volto a Alberoni pode parecer uma repetição. Não é. Se o objectivo fosse esse seria mais fácil transcrever o que já muitas vezes escrevi. Mas eu raras vezes volto atrás. A memória do passado transporto-a comigo, o que a torna sempre parte do presente e, por vezes, é capaz de me antecipar o futuro. As sombras também.
Aparentemente, as posições públicas de Ana Paula Vitorino valeram-lhe a desaprovação de alguns arguidos do caso “Face Oculta”. De acordo com os diálogos que todo o país ficou a conhecer. Ao que parece, as suas posições, no que dizia respeito à Refer, à linha do Tua ou a eventuais contratos com um sucateiro, não colhiam a simpatia de algumas pessoas apanhadas nas escutas da PJ.
A expressão que retive, das várias que foram reproduzidas para todos nós, foi a de que era necessário dar uma ”stickada na gaja”. Nem mais nem menos. A ”gaja” era a, ao tempo, secretária de Estado dos Transportes. Uma mulher.
Tenho alguma dificuldade em aceitar que uma mulher, qualquer que ela, seja tratada por “gaja”. E quando isso é dito por um tipo de bigodes fico piurso. Defeito meu.
Há dois dias, num belíssimo texto de Alberoni, escrevia ele que “quem triunfa são os que não têm escrúpulos, os que aparecem na televisão, os que têm amigos na política”.
Eu tenho amigos que são políticos. Não tenho “amigos na política”. Isso dá-me uma grande liberdade e uma especial tranquilidade para poder pensar, dizer e escrever aquilo que quero sem ter de pedir autorização a ninguém. Sou senhor da minha consciência, kantianamente responsável pelas minhas escolhas.
Alberoni sublinhou que quando os mais dotados estão num ambiente cultural que não os favorece, nem os ajuda, têm mais dificuldade em triunfar. Precisam de ser mais ousados e mais firmes para encararem o cinismo do dia-a-dia.
É claro que ninguém vai dar nenhuma “stickada na gaja” porque a nossa sociedade é, além de tudo o mais, uma sociedade profundamente cobarde. E por ser cobarde é que tem tiradas desse género. Tiradas rascas, tiradas dignas de um verdadeiro trolha.
Alberoni diz-nos que um dos dramas de hoje é que existe um sentimento, “devastador” diz ele, e eu concordo, de que os que estudam e que trabalham, os que se esforçam, jamais verão o seu esforço compensado.
De certa forma é isso que explica a necessidade que alguns machos com ar de cornos mansos têm de dar uma “stickada na gaja”. Ou nas “gajas”.
Eu se estivesse no lugar da “gaja” tratava era de dar uma “stickada no gangue” que se apoderou deste país e que impunemente o gere, de norte a sul, no Estado e nas empresas, nos bancos e nos clubes desportivos, nas universidades e nas casas de alterne, e que dando “stickadas” aqui e ali até já foi capaz de gerar dirigentes para os maiores partidos nacionais. O país está sequestrado por um gangue que só suporta as “gajas” na aparência e que se alterna reciprocamente no exercício do poder. Formal e informal.
Nas negociações entre o Governo e o PSD, sobre o Orçamento de Estado, a ruptura deu-se por causa de 0,1% do PIB. Não sei quem tem razão. Sei que 0,1% deve valer uma boa “stickada”. Gente séria não rompe negociações por causa de 0,1%. Gangues mafiosos também não. Só por estupidez o fariam. Merecem ambos o mesmo respeito.
As ”gajas” deste país, a começar por Ana Paula Vitorino, deviam perder a vergonha e dar uma valente “stickada” nestes “gajos” que perdem os dias a falar ao telemóvel, a escutar as conversas dos outros e que depois de três dias de insónias rompem as negociações do Orçamento do Estado por causa de 0,1% do PIB.
Como escreveu Alberoni, temente do futuro, a sociedade até poderia deixar de funcionar. Pois bem, poderia. E nesta altura isso ainda seria grave? Penso bem que não. Num “país de cidadãos não praticantes”, num “país de gente que se abstém, como os que dizem que são católicos mas não fazem nada do que um católico tem para fazer, não comungam, não rezam e não param de pecar”*, nada disso seria grave. Daí que Cavaco Silva se tenha recandidatado.
As coisas são bem mais simples do que às vezes parecem. Com uma boa "stickada" a gente talvez volte à vida.
* valter hugo mãe, in “a máquina de fazer espanhóis”