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Delito de Opinião

Ceci n'est pas un post (7)

Ana Vidal, 28.10.10

 

Fénix

 

No dia em que tudo ruiu, fez-se à estrada. Não olhou para trás. Não procurou entre as cinzas, soterrados nos escombros de uma vida, sonhos desfeitos que ainda pudessem respirar. Não socorreu memórias sobreviventes, deixou-as asfixiar no fumo que sobrou da grande fogueira que tinha ateado, ainda inconsciente da catástrofe que se avizinhava. Passou por cima de gestos e de palavras, pisou sorrisos agonizantes com os pés nus, já calçados para a viagem. Escorraçou todas as lembranças que teimavam em agarrar-se-lhe à pele e afugentou fantasmas, velhos conhecidos a quererem transpor com ela a porta de entrada. Ou de saída. Só de saída, nesse dia. Lavou das narinas os cheiros familiares, expulsou dos olhos as imagens coloridas de arcos-íris passados, sacudiu das mãos o velho ímpeto de arrumar uma vez mais o caos, de repor a ordem, como sempre fizera. Não aplacou os demónios que bailavam por todo o lado, enfim vitoriosos, seguros do seu poder. Por uma vez, deu-lhes tudo o que exigiam. Fechou a porta atrás de si e atirou a chave para longe. Lá dentro, por detrás da madeira triste, uma vida acorrentada. Não levou nada, não queria nada. De seu, só uma indómita e urgente vontade de partir. Tudo o resto ficou para trás, e nunca mais lhe fez falta.

 

(Imagem: René Magritte)

Socialistas rima com despesistas

Adolfo Mesquita Nunes, 28.10.10

A viabilização, a todo o custo, de um mau Orçamento só coincide (e mesmo assim...) com o tão proclamado interesse nacional se, a executá-lo, estiver gente responsável, capaz e com respeito pelas gerações futuras. Responsável, para saber medir as consequências de cada uma das cedências ao socialismo que vai ser convidado a fazer; capaz, para fazer vingar, contra os interesses instalados, uma política de drástica redução da despesa e de reforma do Estado; com respeito pelas gerações futuras, para impedir que se continuem a diferir os problemas e as contas para as gerações que estão a nascer. 

 

Com este Governo, com este Primeiro-Ministro e este Ministro das Finanças, poderemos dizer que estamos perante gente responsável, capaz e com respeito pelas gerações futuras? Não me parece. Estamos por isso na eventualidade de oferecer um fósforo a um pirómano que se prepara para entrar numa floresta e deixá-la em cinzas. Isto é, estamos na eventualidade de dar aos socialistas (rima com despesistas) a possibilidade de continuarem a gerir o nosso dinheiro, deixando-o, precisamente, em cinzas.   

Grandes sarilhos em Sarilhos Grandes

Ana Vidal, 28.10.10

 

No estado de sítio em que se transformou a situação deste país, chega-nos a insólita notícia da descoberta e desmantelamento de uma fábrica de transformação de droga em... Sarilhos Grandes. Bem pensado, já a piscar o olho à polícia por conta do humor na escolha do nome do local, caso as coisas dessem para o torto. E deram. Uma pena: afinal, este caso raro de empreendorismo, engenho e brio profissional até podia ser um exemplo a seguir, já que a qualidade do produto deste laboratório de alta produtividade - o maior da Europa! - era "quatro vezes superior ao que é habitual no mercado". A vida é injusta.

A culpa é das "gajas"

Sérgio de Almeida Correia, 28.10.10

Volto hoje de novo a Alberoni.

De manhã ouvi na rádio uma notícia, aparentemente em violação do segredo de justiça, do qual serão os principais guardiões os senhores do Ministério Público, e fiquei a saber que uma ex-secretária de Estado e actual deputada do PS, Ana Paula Vitorino, tinha sido visada numa conversa entre dois figurões envolvidos no caso “Face Oculta”. A violação do segredo de justiça é uma trivialidade.

Dizer que volto a Alberoni pode parecer uma repetição. Não é. Se o objectivo fosse esse seria mais fácil transcrever o que já muitas vezes escrevi. Mas eu raras vezes volto atrás. A memória do passado transporto-a comigo, o que a torna sempre parte do presente e, por vezes, é capaz de me antecipar o futuro. As sombras também.

Aparentemente, as posições públicas de Ana Paula Vitorino valeram-lhe a desaprovação de alguns arguidos do caso “Face Oculta”. De acordo com os diálogos que todo o país ficou a conhecer. Ao que parece, as suas posições, no que dizia respeito à Refer, à linha do Tua ou a eventuais contratos com um sucateiro, não colhiam a simpatia de algumas pessoas apanhadas nas escutas da PJ.

A expressão que retive, das várias que foram reproduzidas para todos nós, foi a de que era necessário dar uma ”stickada na gaja”. Nem mais nem menos. A ”gaja” era a, ao tempo, secretária de Estado dos Transportes. Uma mulher.

Tenho alguma dificuldade em aceitar que uma mulher, qualquer que ela, seja tratada por “gaja”. E quando isso é dito por um tipo de bigodes fico piurso. Defeito meu.

Há dois dias, num belíssimo texto de Alberoni, escrevia ele que “quem triunfa são os que não têm escrúpulos, os que aparecem na televisão, os que têm amigos na política”.

Eu tenho amigos que são políticos. Não tenho “amigos na política”. Isso dá-me uma grande liberdade e uma especial tranquilidade para poder pensar, dizer e escrever aquilo que quero sem ter de pedir autorização a ninguém. Sou senhor da minha consciência, kantianamente responsável pelas minhas escolhas.   

Alberoni sublinhou que quando os mais dotados estão num ambiente cultural que não os favorece, nem os ajuda, têm mais dificuldade em triunfar. Precisam de ser mais ousados e mais firmes para encararem o cinismo do dia-a-dia.

É claro que ninguém vai dar nenhuma “stickada na gaja” porque a nossa sociedade é, além de tudo o mais, uma sociedade profundamente cobarde. E por ser cobarde é que tem tiradas desse género. Tiradas rascas, tiradas dignas de um verdadeiro trolha.

Alberoni diz-nos que um dos dramas de hoje é que existe um sentimento, “devastador” diz ele, e eu concordo, de que os que estudam e que trabalham, os que se esforçam, jamais verão o seu esforço compensado.

De certa forma é isso que explica a necessidade que alguns machos com ar de cornos mansos têm de dar uma “stickada na gaja”. Ou nas “gajas”.

Eu se estivesse no lugar da “gaja” tratava era de dar uma “stickada no gangue” que se apoderou deste país e que impunemente o gere, de norte a sul, no Estado e nas empresas, nos bancos e nos clubes desportivos, nas universidades e nas casas de alterne, e que dando “stickadas” aqui e ali até já foi capaz de gerar dirigentes para os maiores partidos nacionais. O país está sequestrado por um gangue que só suporta as “gajas” na aparência e que se alterna reciprocamente no exercício do poder. Formal e informal.

Nas negociações entre o Governo e o PSD, sobre o Orçamento de Estado, a ruptura deu-se por causa de 0,1% do PIB. Não sei quem tem razão. Sei que 0,1% deve valer uma boa “stickada”. Gente séria não rompe negociações por causa de 0,1%. Gangues mafiosos também não. Só por estupidez o fariam. Merecem ambos o mesmo respeito.

As ”gajas” deste país, a começar por Ana Paula Vitorino, deviam perder a vergonha e dar uma valente “stickada” nestes “gajos” que perdem os dias a falar ao telemóvel, a escutar as conversas dos outros e que depois de três dias de insónias rompem as negociações do Orçamento do Estado por causa de 0,1% do PIB.

Como escreveu Alberoni, temente do futuro, a sociedade até poderia deixar de funcionar. Pois bem, poderia. E nesta altura isso ainda seria grave? Penso bem que não.  Num “país de cidadãos não praticantes”, num “país de gente que se abstém, como os que dizem que são católicos mas não fazem nada do que um católico tem para fazer, não comungam, não rezam e não param de pecar”*, nada disso seria grave. Daí que Cavaco Silva se tenha recandidatado.

As coisas são bem mais simples do que às vezes parecem. Com uma boa "stickada" a gente talvez volte à vida.

 

*  valter hugo mãe, in “a máquina de fazer espanhóis

Até quando?

Pedro Correia, 27.10.10

 

"Este Governo falhou rotundamente na gestão economico-financeira. (...) Este PS e José Sócrates merecem, de facto, o chumbo do Orçamento. O País é que não merece."

António José Teixeira, SIC Notícias

 

"Não sei o que vai fazer Pedro Passos Coelho mas à medida que vou conhecendo o Orçamento, feito com raiva e total falta de cuidado, e que vou percebendo o que se tem passado nas contas públicas nos últimos anos e no banquete em que se transformou o dinheiro dos contribuintes para alguns grupos, cresce em mim a dúvida se não seria melhor inviabilizar o Orçamento."

Helena Garrido, Visto da Economia

 

Ouço na TV, esta noite, o ministro das Finanças dizer que não pode "aceitar um acordo qualquer" para viabilizar o Orçamento de Estado. O mesmo ministro que em 2009, ano em que se disputaram três eleições, aceitou irresponsavelmente aumentar 2,9% os salários dos trabalhadores da função pública e diminuir o IVA de 21% para 20%.

Convém que este senhor - e aquele que ainda lhe dá ordens, cada vez mais isolado - perceba que é possível enganar algumas pessoas durante todo o tempo e toda a gente durante algum tempo mas é impossível enganar toda a gente durante o tempo todo. A propósito, recordo um artigo de um célebre pensador português contemporâneo que deu muito que falar em 2004, também nesta estação do ano em que costuma cair a folha. Passo a transcrever o essencial desse actualíssimo artigo, com a devida vénia ao seu inspirado autor: "Por interesse próprio e também por dever patriótico, cabe às elites profissionais contribuírem para afastar da vida partidária portuguesa a sugestão da lei de Gresham, isto é, contribuírem para que os políticos competentes possam afastar os incompetentes. Recordo que Portugal, desde 2001, tem vindo sistematicamente a afastar-se do nível de desenvolvimento da vizinha Espanha e da média da Europa dos quinze e que esta tendência irá manter-se no futuro, de acordo com as previsões para 2005-06 recentemente publicadas pela Comissão Europeia. Até quando?"

Bateu no fundo

José Gomes André, 27.10.10

À falência moral (registada há largos meses) este Governo junta agora a sua própria falência técnica. As notícias sobre o absoluto descontrolo das contas públicas revelam uma incapacidade tão gritante que só o mais fanático socialista pode ainda confiar nas capacidades de Teixeira dos Santos & Ca. para resolver qualquer desafio político-financeiro. E falar de negociações e de compromissos com esta gente é o mesmo que dialogar com uma porta: serve para passar o tempo, mas não leva a lado nenhum.

Onde está o antropófago?

João Carvalho, 27.10.10

Um dos pontos muito discutidos nas conversações entre o Governo e o PSD foi o dos «alimentos humanos», como referiu insistentemente o ministro das Finanças. Parece que alguém queria que tivessem preços populares. Quem seria o antropófago tão interessado em comprar ao preço da chuva «alimentos humanos»? E exactamente que parte(s) do corpo devia(m) ser as mais baratucha(s)?

La grande bouffe

Ana Vidal, 27.10.10

E de repente rebenta a bomba: Catroga e Teixeira dos Santos abandonam a meio os bailados nupciais, depois de um curto e atribulado namoro. É a ruptura, o divórcio litigioso antes mesmo do casamento que nunca passou, afinal, de uma ténue promessa. O circo mediático monta a tenda num ápice e esfrega as mãos de contente com a profusão de notícias frescas que tem pela frente. Multiplicam-se os directos, as entrevistas, as esperas em corredores entrecortadas de palavras ocas para encher chouriços enquanto não chega o carrasco ou a vítima, conforme o ponto de vista. Peroram os comentadores e analistas de circunstância em todos os programas de todos os canais de televisão, antevendo o implacável tsunami que nos espera a todos, caso não seja aprovado um orçamento igualmente implacável, que evitará o mal para nos fazer morrer da cura. Muda-se os cenários para tudo parecer ainda mais apelativo e catastrófico, e até o habitualmente sereno jornal da 2 alinha na esquizofrenia geral e passa a usar um formato agressivo de concurso, com o convidado sentado e a pivot de pé atrás de um balcão, como se estivesse a servir-lhe umas bejecas e um prato de tremoços. A Bolsa cai, as bolsas esvaziam-se a uma velocidade estonteante. As empresas públicas anunciam, revirando os olhos de santidade, as suas pias medidas de contenção, depois de terem abastecido as despensas e as garagens nos últimos anos, a preparar os tempos difíceis. Antecipa-se emoções para as oito da noite - como se o país suspendesse a respiração, todos os dias, até essa hora - prometendo conferências de imprensa e debates sortidos ao gosto do freguês. Cada político puxa dos galões para acusar os outros - quaisquer outros, desde que não lhe toque alguma responsabilidade - de todos os males que nos assolam, como se a peste negra tivesse chegado de improviso, sem nos ter acinzentado primeiro até ao tutano. Tira-se dividendos políticos (há quem os tire financeiros também, com toda a certeza) enquanto o circo não pega fogo, ou melhor, enquanto não fica tudo em cinzas. Os monárquicos aproveitam para gritar aqui d'el rei que a república é que tem a culpa de tudo, enquanto a república afina estratégias eleitorais no meio do caos, baralhando ainda mais os confusos figurantes deste carnaval tragicómico. E o tuga, exausto e saqueado, que já não acredita no Pai Natal nem na Branca de Neve vai para muito tempo, corre a pegar no comando da televisão para refugiar-se na Casa dos Segredos e meter na veia, embalado pela voz maviosa da Júlia Pinheiro, a doce anestesia de mais uma dose escaldante de meia dúzia de criaturinhas suburbanas entregues às hormonas e à perversão de outra Voz que as transforma em marionetas inconscientes, pobres ratos às voltas numa gaiola forrada a pelúcia. E assim nos vamos afundando alegremente, ou já nem isso.

 

Influente magistratura

Pedro Correia, 27.10.10

"Sei bem que a minha magistratura de influência produziu resultados positivos", disse ontem Cavaco Silva no Centro Cultural de Belém, em jeito de balanço do seu mandato. Com toda a razão. Se não fosse a sua "magistratura de influência" o País talvez estivesse à beira da recessão, com o maior número de sempre de desempregados, o maior buraco orçamental de que há memória, uma dívida externa astronómica, um recorde absoluto do desemprego e mais de dois milhões de pobres.

Convidado: ANDRÉ ABRANTES AMARAL

Pedro Correia, 27.10.10

 

Um instante

 

Foi um dia estranho aquele em que toda a gente, independentemente do que estivesse a fazer, numa reunião no escritório, a falar ao telefone, a conduzir um autocarro, a guiar o seu automóvel, a atravessar a rua, a limpar as sarjetas, a vender jornais e revistas mais os brindes a acompanhar, a conversar, a comer e a beber, parou. Pararam e viram o sol a pôr-se atrás dos prédios, dos telhados, dos candeeiros das ruas, das colinas da cidade, atrás dos vultos que se punham à frente. A luz começou com um amarelo forte, depois alaranjou, ficando vermelho a seguir, um vermelho intenso, o sol redondo como uma bola de neve feita por miúdos e pronta a ser atirada contra quem passasse. E logo novamente a cor laranja, o sol a baixar, a colocar-se por trás de tudo o que o pudesse tapar, objectos e barreiras que nos diziam que aquilo teria fim, que não era para sempre, que valia a pena largar o que se estivesse a fazer, desistir do que se estivesse a pensar, deixar o serviço a meio; uma pequena interrupção no dia-a-dia, um breve instante a dizer-nos que estávamos vivos e que valia a pena, um pequeno aparte de Deus, alguma coisa, algo em que se quisesse acreditar. A luz a apagar-se e a normalidade não natural a continuar como até então.

 

André Abrantes Amaral