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Delito de Opinião

A sorte e o desnorte

João Carvalho, 31.05.10

«Falando aos jornalistas antes de um almoço no Palácio de São Bento com várias associações defensoras dos direitos homossexuais e LGBT», José Sócrates disse que «a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo torna a sociedade "melhor"».

Como não consta que tenha alterado essa posição depois do almoço, pode concluir-se que os homossexuais estão duplamente com sorte. É que saber governar, resolver e ultrapassar os problemas em que o País está metido até ao pescoço também torna a sociedade melhor e, no entanto, a vida continua a piorar para a maioria dos portugueses e nem por isso estes são convidados pelo primeiro-ministro para almoçar.

A crise, porém, foi abordada. Sócrates disse também isto: "Eu sei que o País tem outros problemas e estamos empenhados neles, mas não vejo razão nenhuma para que, no meio de tudo isso, não encontremos espaço para não fazer aquilo que devemos, que é promover uma sociedade mais justa e sem discriminação."

Atentem bem no desnorte: "não vejo razão nenhuma para que não encontremos espaço para não fazer". Foi antes de almoço, sim, só que falou em 'teixeira-santês' técnico.

Deep shit - 13

Teresa Ribeiro, 31.05.10

Segundo Peter Mair e Richard Katz, os teorizadores do novo tipo de partido, que designaram por partido-cartel, este atingia esquerda e direita, e tinha dois traços essenciais: “conluio” entre as principais forças políticas para garantir recursos públicos; e inter-penetração com o Estado.

Para Katz e Mair, a relação com o Estado é um dos pontos mais importantes para compreender os partidos. A progressiva aproximação entre os dois, transformando os partidos numa espécie de “agentes públicos”, implicava um novo conceito de democracia que continuava em evolução e em que esta era, na prática, um serviço prestado pelo Estado aos cidadãos. Os políticos viam-se entre si como colegas de profissão e esqueciam a sociedade.

 Ao contrário dos “velhos” partidos de massas e catch-all, o novo partido-cartel deixava de ser parte da sociedade ou um seu intermediário com o Estado, mas parte integrante deste último. O objectivo era compensar os danos causados pela queda da participação partidária. A verdadeira substância da competição tenderia a desaparecer, apesar de uma maior competição formal, com maiores gastos de campanha e maior profissionalização. - escreve Nuno Guedes no estudo que fez, em 2006, para o Centro de Investigação e Estudos de Sociologia - CIES - do ISCTE.

Peter Mair e Richard Katz, continua, defendem que, a meio da década de 1990, estes processos, vistos como uma espécie de solução pragmática aos problemas dos partidos, estavam ainda no início e eram bastante desiguais entre países.

Neste estudo, intitulado "O Partido-cartel: Portugal e as leis dos partidos e financiamento de 2003", Nuno Guedes recorda que, mais recentemente, Blyth e Katz aprofundaram esta teoria, explicando que os partidos-cartel (e cartel de partidos) focam-se sobretudo na progressiva diminuição da possibilidade de políticas alternativas entre os partidos, depois de se ter chegado à conclusão que era impossível continuar a trocar medidas populares por votos. Em alternativa, os partidos diminuíram as expectativas dos cidadãos, limitando o espaço para políticas realizáveis, identificando a competição eleitoral não com questões ideológicas, mas, sobretudo, de competência na gestão do país. A democracia seria a mera realização de eleições. As transferências de poderes para entidades como a União Europeia ou os bancos centrais foram algumas das fórmulas encontradas para limitar o debate político. Os cada vez mais casos de eleição directa dos líderes partidários deu-lhes uma ainda maior autonomia face ao aparelho partidário.

Para analisar Portugal, Nuno Guedes cita o investigador Farelo Lopes: PS, PSD e outros partidos integram, em graus variáveis, elementos do partido-cartel, nomeadamente, na sua relação com o Estado, ainda mais importante do que noutros países, devido à sua natural debilidade estrutural e poucos filiados, que os levaram a ocupar variadíssimos cargos no Estado, que desde o início do regime foi uma importante fonte de recursos.  

Carlos Jalali, outro investigador citado neste estudo, diz que a cartelização da política em Portugal pode ser observada não apenas através das subvenções estatais, mas também pelo monopólio da representação dos partidos, consagrado na Constituição, e grau de ocupação do Estado por quadros partidários. O sistema de partidos português tem, aliás, como principal característica, um padrão de cooperação entre os seus dois maiores partidos, com o objectivo de manter a principal dimensão de competição entre si, não se atacando em assuntos como a ocupação de cargos estatais (aspecto marcante da política portuguesa e importante fonte de recursos), numa espécie de acordo, mesmo que não explícito.  Pode ler mais aqui.

Pela democracia e pela ditadura

Pedro Correia, 31.05.10

 

Jerónimo de Sousa está preocupado com a perda dos direitos sociais e laborais dos trabalhadores portugueses. E apela à luta contra a "ofensiva" do Plano de Estabilidade e Crescimento. Trata-se do líder de um partido que mantém "relações de amizade e cooperação" com o Partido Comunista Chinês, há mais de 60 anos no poder na República Popular da China, provavelmente o país do mundo que mais espezinha os direitos dos trabalhadores, além de brutalizar a população do Tibete ocupado. Comunista de nome, capitalista selvagem na prática, a China é um país que proíbe o direito à greve, a existência de partidos da oposição e a formação de sindicatos independentes do poder político. E com as condições laborais bem exemplificadas aqui. Sempre com a benévola compreensão do PCP, que combate cá o que aplaude lá - uma duplicidade que desqualifica todo o seu discurso. Não se pode pugnar pela democracia num continente e pela ditadura noutro sem perda da autoridade moral para combater o que quer que seja.

Há um modelo social para Portugal? (1)

Luís M. Jorge, 31.05.10

Em novembro de 2005, Andre Sapir, professor da Universidade Livre de Bruxelas, analisou o conceito de modelo social europeu e apelou à sua renovação num documento que podem consultar aqui. O desafio foi suficientemente interessante para merecer destaque na imprensa económica internacional.

 

O autor começa por invocar os riscos e as oportunidades da globalização, e refuta os que defendem a existência de um modelo social indiferenciado nos países do mercado único. Para Sapir, existem quatro modelos sociais europeus, que ele hierarquiza por critérios de eficiência e equidade:

  1. modelo nórdico (Suécia, Holanda, etc.) garante os níveis mais elevados de protecção social, forte correcção fiscal dos rendimentos do trabalho e sindicatos poderosos que asseguram baixa desigualdade.
  2. modelo anglo-saxónico (GB, Irlanda). Com transferências sociais amplas, mas de último recurso, concentradas na população em idade activa, e incentivos à obtenção de emprego. Sindicatos fracos, disparidades na distribuição da riqueza e uma incidência relativamente alta de baixos ordenados.
  3. modelo continental (Alemanha, França, etc.). Segurança social extensa, focada nas pensões. Sindicatos fortes, mas em declínio.
  4. modelo mediterrânico (Itália, Espanha, etc). Concentra as despesas sociais nas pensões. A legislação desencoraja os despedimentos. Proliferação de reformas antecipadas.

Quanto à eficiência de cada um:

  1. O modelo mediterrânico, caracterizado, por altos níveis de desemprego e alto risco de pobreza, não garante eficiência nem equidade.
  2. O modelo continental, com alto desemprego e baixo risco de pobreza, garante equidade mas não é eficiente.
  3. O modelo anglo-saxónico, com desemprego baixo e risco de pobreza alto, não garante a equidade mas é eficiente.
  4. O modelo nórdico, com desemprego baixo e risco de pobreza baixo, satisfaz ambos os critérios.

Uma nota importante: o autor afirma que a equidade exige carga fiscal elevada, mas assegura que esta não prejudica a eficiência do modelo, como se comprova pelos exemplos escandinavos.

 

Para começo de conversa, fiquemos por aqui.

"Mania de peitão"

André Couto, 31.05.10
Ela tem um rebolado, Por demais sensual,
Domina os olhos da gente, Com seu corpo escultural,
Na praia é uma delicia, com sua cor de jambo,
Deixa muita mulher recalcada,
E tudo que é homem babando.

-

A noite ela é uma estrela, Ofusca o brilho da lua
Não há beleza na Terra, Que se compare com a sua
Mas o que o povo desconhece, É que este tremendo ciclone
Musa da geração 2000...
...É armação de silicone.

-

Mania de peitão, Mania de peitão,
Mania de peitão, É armação de silicone.

A definhar

Sérgio de Almeida Correia, 31.05.10

"O problema aqui é um problema do futuro do país".

Esta pequena frase diz bem mais do que possa parecer à primeira vista.

O problema do futuro do país é, de forma mais linear, o problema deste país.

Quem a disse e a repetiu ontem em vários canais televisivos e nas rádios podia ter sido um homem que se tivesse destacado da maralha pela excelência da sua intervenção, pela coragem do discurso, pela ousadia e arrojo do seu pensamento, pela acutilância da sua intervenção política.

Mas infelizmente não é assim.

Quem disse essa frase foi a mesma pessoa que há quatro anos, quando se tratou do PS escolher um candidato presidencial, viu num homem em final de carreira, que já tinha sido presidente duas vezes e com mais de 80 anos, o futuro do país.

Nessa altura, ninguém o viu ou ouviu preocupado com o facto do PS ter como candidato um homem que aos olhos de quase todos os portugueses já então pedia descanso.

De igual modo, quando há quatro anos o PS escolheu Mário Soares como seu candidato, da mesma forma anódina e quase acéfala como agora fez com Manuel Alegre, por vontade do líder e em circunstâncias políticas atípicas, ninguém o ouviu pedir liberdade de voto para os militantes que discordavam da escolha e tiveram a coragem de apontar erro tão crasso a tempo e horas.

Escondida sob a capa de um discurso aparentemente moderno e inovador, a intervenção de Vítor Ramalho representa aquilo que os partidos portugueses têm de mais detestável: o conservadorismo, o imobilismo, a sacralização do passado. E reflecte a tendência oligárquica da política portuguesa.

Mário Soares foi um combatente, um líder de referência e é uma bandeira da democracia portuguesa. A ele o país muito deve. O país e o partido.

Mas o soarismo, que Vítor Ramalho tão bem personifica, espelhado na frase acima citada, na forma como antes condicionou o partido e hoje tenta influenciar as escolhas que livremente sejam feitas dentro dele, e que encontra eco na intervenção de homens como José Lello ou Sérgio Sousa Pinto, é uma pesada herança do passado. Um anacronismo num partido que se quer moderno.

Até poderia admitir que Manuel Alegre não fosse a melhor escolha, mas não se tendo Vítor Ramalho predisposto a avançar com uma candidatura presidencial, também seria difícil encontrar um termo de comparação.

Mas o que é triste constatar é que o PS carregue hoje o soarismo como uma canga. E isso é uma coisa execrável. Para o partido, mas também para todos aqueles que dentro dele se atrevam a pensar o futuro ou que rejeitam ser os régulos e os mainatos dos líderes que transitoriamente ocupam o poder. Chamem-se eles Soares, Guterres ou Sócrates. 

Claque cor-de-rosa

José Gomes André, 31.05.10

Perante a crescente impossibilidade de apresentar um candidato viável a Belém, alguma Esquerda tenderá a recorrer cada vez mais à "política do medo" para combater Cavaco. Nesta arte da mistificação, repetir-se-á vezes sem conta que Cavaco pretende subverter a Constituição, destruir o sistema parlamentar e iniciar um regime ditatorial de índole conservadora. Fernanda Câncio dá o mote: "Desde 2006 que sabemos isto: Cavaco tem a intenção de fazer um segundo mandato. E é inevitável que o seu pessoalíssimo projecto de poder implique que nessa segunda estada em Belém tente explorar todas as virtualidades da indefinição que a Constituição portuguesa prescreve para a função [...]".

 

Trata-se de um discurso tolo,  já utilizado em 2006 e desmentido taxativamente pela realidade: não se vislumbrou, nem por uma vez sequer, a intenção de Cavaco em "explorar as indefinições da Constituição" e/ou chefiar o que quer que fosse a partir de Belém. Na verdade, Cavaco tem pecado justamente pelo contrário do que sugere Câncio: o seu consulado é até agora pouco mais que pífio - Cavaco não bloqueou nenhum projecto fundamental do PS, não condicionou nenhuma política essencial do Governo e com a péssima gestão do "caso das escutas" prejudicou até severamente o PSD nas legislativas.

 

Por que combaterá então alguma Esquerda (e particularmente a Esquerda socrática-chique) a reeleição de Cavaco? Não por recear verdadeiramente "um golpe de Estado constitucional", nem tampouco por ver nela um escolho à governação socialista. Nada disso. Tal oposição surgirá porque a Esquerda socrática-chique opera como uma claque de futebol, orientando-se por "emoções" e espírito vingativo, e não por cálculo político ou análise racional. Basta ler algumas reacções na polémica do "casamento gay" para o perceber (do género "tomem, ganhámos!" ou "ficaram com azia?", como aqui ou aqui). Odeiam Cavaco, logo combatem Cavaco. Mesmo que a sua reeleição venha a ter efeitos nulos relativamente às pretensões socialistas.

O comentário da semana

Pedro Correia, 31.05.10

 

«A verdade é que a corrupção não é um exclusivo português. Na Inglaterra funciona desde há séculos o sistema do old boy, onde antigos colegas de escola fazem os jeitinhos uns aos outros. Na Holanda vejo a mesma coisa a suceder, apenas com o nome de networking.

No resto da Europa continua a haver a corrupção generalizada. É compreendida na perfeição. Apenas será mais encapuçada ou mais discreta ou, em alternativa, funcionará paralelamente a um sistema de sociedade mais eficaz, o que significa que haverá um pouco menos de recurso a ela ou que será mais praticada quando as paradas são mais elevadas (uma vez que não haverá lucro em a ela recorrer em níveis mais baixos).
A corrupção e o compadrio são ferramentas humanas, não apenas portuguesas. O problema em Portugal é estas terem sido institucionalizadas a níveis mais baixos sem sistemas compensatórios. E é isso e só isso que nos foi diferenciando de outros países mais "evoluídos".»

 

Do nosso leitor João Sousa André. A propósito deste texto da Teresa Ribeiro.

O "ferveroso" e "ferdvrsadete"

João Carvalho, 30.05.10

Agora que a selecção nacional vai emigrar para África e que Scolari não está cá, é tempo de promover o optimismo lusitano através das palavras patrióticas deste «ferveroso adepto de futebol». É portista, mas isso agora não interessa. Só interessa que é um «ferveroso adepto de futebol» e, sobretudo, um «ferdvrsadete de futebol». Aqui.*

 

* — Ninguém é obrigado a ouvir mais do que os primeiros 16 segundos.

De blogue em blogue

Pedro Correia, 30.05.10

1. Parabéns ao Nelson Reprezas. Pelo meio milhão de visitantes do Espumadamente.

 

2. "Na hora de decidir, a direita não entrega as cartas", escreve Vital Moreira. Fala do que sabe: há um ano foi copiosamente derrotado nas europeias.

 

3. Joana Carvalho Dias agora pode ser lida n' Os Tempos e as Vontades.

 

4. O que fica do que passa: um blogue a que cheguei via Activismo de Sofá. Recomendo, claro.

 

5. Já disse que gosto deste blogue? E deste?

Deep shit - 12

Teresa Ribeiro, 30.05.10

O grande mal português é que temos, verdadeiramente, poucos homens livres. Pouca gente, poucos cidadãos, que estejam dispostos a viver a sua vida, a construir o seu caminho, sem terem de prestar vassalagem a várias formas de poder. Os arquitectos não são livres porque dependem dos interesses económicos do dono da obra. Os médicos não são livres, porque, regra geral, querem ser simultaneamente profissionais liberais e assalariados do Estado. Os advogados de sucesso não são livres, porque dependem da consultadoria dos governos e do tráfico de influências entre os negócios, o poder e o patrocínio. Os empresários não são livres porque dependem dos subsídios, das isenções fiscais e da atenção do governo nos concursos públicos. Os intelectuais não são livres, porque estão quase sempre dependentes de empregos, bolsas ou subsídios públicos, os quais acabam inevitavelmente por pagar com simples fretes de propaganda partidária. Os jornalistas, quase todos, não são livres, porque dependem do pequeno chefe, o qual reporta ao editor principal, o qual deve satisfações ao proprietário, o qual tem de prestar atenção ao humores e sensibilidades do poder da hora - Miguel Sousa Tavares, no Público, em 8 de Outubro de 2004.

Bem podem roer-se

João Carvalho, 30.05.10

Sexta-feira, 28, ao nascer do sol. Estou na gare das Lages.

A que horas é o próximo TGV para Lisboa?

Hoje não vai haver — responde-me o funcionário. — Se fosse amanhã...

Aos sábados há? — indago.

Não tem havido, mas nunca se sabe. O futuro a Deus pertence.

Saio da estação chateado. «Seis séculos depois de Gonçalo Velho Cabral e de Cristóvão Colombo, isto está tudo na mesma.» Atravesso a rua e entro na agência de viagens. «Avião para Lisboa?» Dizem-me que vai haver um.

Tem algum tour a propor-me para uma ida-e-volta rápida? Queria ir hoje e voltar amanhã.

Assim por tão pouco tempo... Deixe-me ver o que é que se arranja... Tenho aqui qualquer coisa... Olhe, só se for um encontro com um blogue, que inclui um jantar com vista nocturna para o Tejo, um belo quarto na avenida de Roma e um lauto almoço amanhã no Campo Pequeno.

Parece tentador — respondo. — Esse serve-me.

Sigo para para o aeroporto.

 

Lisboa, início da tarde. Desço do aeroplano. Olho em volta e parece-me tudo novo, mas mal amanhado. «Será Alcochete?» Não é. No terminal 1, alguém chama por mim. «Pedro?» Era mesmo ele, o meu compadre, sempre pontual.

Seguimos para casa. Ele vai trabalhar e eu deixo-me ficar preguiçosamente no sofá. Pego no livro que o Pedro Correia acaba de me oferecer e leio três contos do avô dele. Depois vou à janela e o sol chama por mim. Pego no telefone e ligo para o 'Pau Para Toda a Obra'.

João?

João?!? Mas...?

Vamos beber um copo?

'Bora — responde-me o Severino, ainda incrédulo.

 

Perto das 20 estou no DN. Seguimos, o Pedro e eu, para o Museu do Oriente. Sob o olhar protector de uma divindade indiana, os primeiros dois a chegar já nos esperam. Subimos os quatro até uma mesa imensa virada ao rio. Vão chegando os outros.

Bebem alguma coisa antes? — pergunta um empregado.

Um gin tónico — peço.

Ele desaparece e volta. «Gin tónico não está incluído.» Pergunto então o que está incluído e peço um Martini seco com limão.

Já chegaram quase todos. Ninguém acredita que um gajo voou dos Açores só para estar ali e regressar no dia seguinte. Sempre julguei que fossem mais inteligentes, mas percebo que é só fama: pois se eu voei dos Açores só para estar ali e regressar no dia seguinte, não acreditam porquê? Mas sei como resolver o caso: dedais variados de louça regional-autonómica sugestivamente decorados, para "todos e todas" como diria o Louçã, não só não distinguem géneros como é quanto basta para acreditarem, «cambada de materialistas».

 

Ao meu lado, o único lugar vazio. O «tinto ou branco», ambos muito decentes, vem ao nosso encontro e nós levantamo-nos para ir ao encontro do buffet. Se quiserem a companhia do rio, do sol a pôr-se sem pressas, da noite intimista a marcar o tempo e das luzes a tomar conta da ponte (da "primeira travessia", está claro, porque a "segunda" é longe e as luzes da "terceira" parecem uma árvore de Natal sempre a piscar: aparecem e desaparecem conforme o ministro que abre a boca), então o restaurante do Museu do Oriente é muito recomendável.

Se, pelo contrário, estão à espera de encontrar um serviço de cozinha de luxo asiático, esqueçam: o buffet é modesto e sem qualquer toque de exotismo ou esforço estético que o torne atraente aos olhos-que-também-comem. Só que tudo isto é compensado pelo ambiente, serviço de mesa e justiça na conta final. Assim, o saldo é positivo.

 

A notável animação dos primeiros momentos não esmorece com o desenrolar da festa. A mesa é comprida, mas também é larga, o que favorece muito os diálogos que se cruzam e até possibilita que algumas conversas consigam ser comuns aos 16 delituosos. Mais perto de mim, a frescura da Ana Cláudia Vicente impõe-se sem dificuldade. Mais longe, a Ana Margarida Craveiro espalha alegria pelos olhos. Lá ao fundo, a Ana Sofia Couto representa a serenidade, atravessada de quando em quando por surpreendente determinação. Organizadora do "evento", a competência da Ana Vidal só peca pelo esquecimento imperdoável (roam-se as cuscas todas) do fotógrafo. Por fim, aparece tarde e a más horas (por razões tão válidas quanto os atrasos permanentes de Sócrates) o André Couto, que rompe a noite e logo se integra com a mesma animação que já nos contagia há muito. A meio de um dos lados, o António Manuel Venda espelha um discreto e permanente sorriso enigmático, talvez fruto da experiência próxima com o seu javali. A boa onda ao vivo está acolá no homem que toca a quatro mãos, o Zé Bandeira, sobre o qual nunca consigo concluir se escreve bem como desenha ou se desenha bem como escreve. Sem estar sentado com um compêndio à frente, o José Gomes André é a enciclopédia ambulatória de serviço. O mais sóbrio é o João Campos (John, o benjamim do grupo), que conhece a Europa a palmo e não é capaz de trocar este repasto por nova-partida-nova-viagem. A Leonor Barros, vestida de negro a preceito, podia ser a fadista da noite, porque quando abre a boca parece logo que é para cantar, mas tinha de ser o fado-corrido, porque é incansável a dar atenção a tudo. Polémico q.b., o Luís M. Jorge larga ideias inovadoras e bem recebidas. O Paulo Gorjão é a alma poética do fingidor, austero na escrita e efusivo na oralidade. O Pedro Correia é o dono, o patrão, o padrinho perante quem todos se calam quando abre a boca, mesmo que seja para meter uma garfada. Sempre cavalheiro e discretíssimo, o Sérgio de Almeida Correia dá nas vistas por deixar o Algarve para estar presente em todas. Se fosse preciso atear o fogo (que não era) a todas aquelas almas, encarregava-se a Teresa Ribeiro, risonha esfusiante e saltitante imparável em torno de todas as coisas.

 

Olho atentamente para o gang delituoso e pergunto-me: «Que faço eu aqui, além de me babar todo?» Cheio de Anas, de abraços e de carinhos por todos os lados, entre tantas beldades talentosas e tantos gurus de primeira água, sinto que este meu primeiro encontro com a quadrilha me tolhe a lucidez. Não me atreverei a estar no próximo jantar. Como? Depois do Verão, os jantares passarão a ser mais regulares? Nunca mais faltarei.

Quando as luzes se apagam, a Ana Vidal reúne alguns guarda-costas noctívagos e resistentes e ainda vamos ver se as docas continuam no sítio. À frente do último copo, apuram-se alguns pontos da agenda de trabalho que tinha estado basicamente em cima da mesa, parte dos quais estamos certos de que serão em breve janelas de oportunidade para os nossos estimadíssimos comentadores e leitores habituais, muito lembrados ao longo da noite.

 

Com falta marcada ficam quatro: o Adolfo Mesquita Nunes (falta justificada por ausência em terras nórdicas, lá para os lados onde nascem as nuvens que levam as companhias aéreas à falência), a Cristina Fereira de Almeida (falta injustificada, com os voos já normalizados), o J.M. Coutinho Ribeiro (falta injustificada, com quase três autoestradas Porto-Lisboa) e a Marta Caires (falta justificada, com o meu voto de vencido e a Madeira ali tão perto).

Têm razão os autores dos nossos blogues de estimação: roam-se de inveja, que o DELITO DE OPINIÃO é o máximo. Nem seria de esperar que não fosse, uma vez que o DO está no pelotão da frente quanto à lei da paridade. As nossas inspiradas meninas têm o duplo dom de ser também o motivo da nossa inspiração colectiva. Se as vissem melhor, iam perceber.

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