Um solavanco civilizacional
O que na evolução biológica do sistema nervoso central existe de mais antigo manifesta-se nos instintos e é por isso que os partilhamos com todos os outros animais da criação. É uma história com milhões de anos de que não serei o mais entendido para aqui a explanar, e muito menos em tamanho adequado a um postal, mas que se pode simplificar dizendo que as nossas competências sociais “residem” em camadas que se formaram posteriormente e que são por isso por isso muito mais recentes.
É desse núcleo central, o cérebro reptiliano, que dependem os impulsos para se alimentar, para se reproduzir e, em caso de ameaça, para fugir ou atacar. O sistema nervoso dos répteis vai pouco além destes destas funções básicas que asseguram a sobrevivência e a manutenção da espécie.
As emoções e a racionalidade dependem de camadas posteriores do sistema nervoso. A empatia, a capacidade de se chegar a um compromisso, a noção de futuro, qualquer conceito de ética, o respeito, a gratidão, entre muitos outros, são luxos extra que equipam apenas uma minoria dos animais onde incluo os seres humanos. Mesmo para esses animais mais apetrechados, em ocasiões pontuais, nomeadamente sob ameaça, o instinto reptilineo toma conta das ocorrências e impede que as emoções, e muito menos a racionalidade, se manifestem.
Os nossos comportamentos resultam por isso desta trilogia de instinto, emoções e racionalidade e aquilo que conhecemos por civilização seria impossível sem esta última.
Todos sofremos, e beneficiamos, das consequências dos enviesamentos cognitivos que nos condicionam as escolhas. Bem sabemos como ir às compras antes ou depois de uma refeição tem implicações no valor final da factura, assim como na sua composição. Em certas circunstâncias, há coisas que escapam ao nosso controlo.
As emoções são um poderoso combustível para mobilizar os indivíduos e agitar as massas e, por oposição, em escolhas sob pressão, a racionalidade é facilmente deixada cair.
As mensagens políticas populistas assentam em ideias simples e emocionais, enquanto que a moderação está muito mais ligada à racionalidade e à tal civilização. São muito raros os políticos que não recorrem a mensagens populistas. Alguns fazem-no pontualmente e outros em regime de exclusividade.
E o que é que isto tem a ver com os acontecimentos dos últimos dias? Tem tudo a ver.
Que consequência positiva pode existir ao apelo para que a polícia dispare mais vezes a matar? Que consequências positivas decorrem de incentivo à desobediência à autoridade ou a se incendiar um caixote do lixo, um automóvel ou autocarro? Qual a racionalidade dos apelos dos radicais? Fazem-no para explorar os nossos impulsos irracionais do “fazer o gosto ao dedo”, da vontade de desta vez “lhes dar uma lição”, da procura de alguma adrenalina, do reencontro com as nossas antropológicas raízes tribais e sem esquecer o “isto não vai a bem, vai a mal”. Todos estes impulsos dispensam da racionalidade do compromisso e é esse o território preferido dos radicais.
Os populistas, mais ou menos cavernícolas, mais ou menos lunáticos, tentam agitar-nos as emoções para aceder ao nosso cérebro reptiliano. É nesse estado de espírito que nos tentam manter e não me surpreenderia que em futuras eleições distúrbios provocatórios antecipem o momento do voto. O sucesso destes partidos incendiários depende de indivíduos em estado de agitação, limitados por isso na sua a racionalidade e, dessa forma, afastados igualmente da civilização.
E é isso ao que temos assistido. Não estamos perante o fim dos tempos, mas sim a viver um solavanco civilizacional, cavalgado e alavancado por mesquinhos interesses partidários.