Haiti: uma história trágica
A propósito da tragédia que se abateu sobre o Haiti, houve quem desenterrasse pela enésima vez a teoria do "fardo do homem branco", lançando sobre o "colonialismo" as culpas do profundo atraso estrutural do país, de longe o mais pobre das Américas. O Haiti é, de facto, um exemplo de "estado falhado", mas as culpas disso não podem assacar-se de boa fé aos pecados coloniais. Foi o segundo país do continente a conquistar a soberania (em 1804, logo após os Estados Unidos, que se tornaram independentes do Reino Unido em 1776) e toda a sua história como nação independente é um longo cortejo de actos violentos e administração ineficaz, brutal e corrupta. O próprio herói da independência - Jean-Jacques Dessalines, que conseguiu a proeza de derrotar as tropas napoleónicas - morreu dois anos mais tarde, em 1806, às mãos dos seus sequazes. De nada lhe valeu ter-se feito coroar com o patético título de imperador, numa tosca imitação do quadro político então vigente na antiga potência colonial. O país partiu-se de imediato em dois - dividido em monarquia e república, em ambiente de guerra civil. Henri Christophe, um dos líderes que emergira com o assassínio de Dessalines, terminou os seus dias com uma bala na têmpora.
O suicídio de Henri Christophe é uma perfeita metáfora dos duzentos anos de história sangrenta do Haiti e dos líderes ineptos que desgovernaram o país. Foram raros os presidentes, monarcas e "imperadores" que viram os seus mandatos chegar tranquilamente ao fim. Uma dessas excepções foi François Duvalier, talvez o mais sanguinário dos ditadores americanos do século XX, tristemente célebre pela sua polícia de choque, os Tontons Macoutes, que espalhava o terror pela metade ocidental da ilha de Hispaniola, descoberta em 1492 por Cristóvão Colombo, na sua primeira viagem ao Novo Mundo. Na metade oriental, hoje correspondente à República Dominicana, as coisas passaram-se de forma bem mais pacífica desde que se tornou independente da Espanha, em 1865. Sendo um país pobre, para os padrões europeus, tem apesar de tudo singrado no caminho da prosperidade graças às receitas turísticas e ao desenvolvimento da agricultura, com destaque para as culturas do café, do tabaco e da cana de açúcar. Paredes meias com a República Dominicana, o Haiti permanece à margem dos circuitos turísticos, em grande parte pelos seus índices endémicos de criminalidade. A agricultura com potencial exportador é igualmente uma miragem: a riqueza florestal do país foi devastada por sucessivas administrações incapazes de garantir a estabilidade do solo.
O "fardo do homem branco", que funciona como grande esponja pronta a desculpar graves erros de executivos pós-independência noutras latitudes, é ainda mais injustificável aqui. Com governos que se tivessem preocupado com o bem comum, o Haiti não disporia de largos milhares de casas construídas sem índices mínimos de segurança, que se abateram como castelos de cartas durante o devastador sismo do passado dia 12. Nenhuma verdadeira reconstrução do país pode materializar-se sem começar pelo elemento básico: um Governo que saiba realmente gerir os destinos do Haiti e da sua população duplamente mártir, castigada pela inclemência da natureza e por decénios de incompetência humana.
Retratos:
1. Jean-Christophe, autoproclamado rei do Haiti
2. François Duvalier, o sanguinário 'Papa Doc'