O teto dos inteletuais
"Neste momento, temos o corretor pronto a ser instalado em todos os computadores." A frase - com o itálico da minha lavra - consta de um despacho de sexta-feira da agência Lusa, que desde ontem começou a escrever notícias "ao abrigo do Acordo Ortográfico", como foi sublinhando no remate de todos os telegramas distribuídos ao longo de sábado.
Li aquelas linhas e espantei-me: um corretor vai ser instalado nos computadores do mais oficial órgão de informação existente em Portugal? Durou pouco a perplexidade: afinal a notícia não aludia a um tipo qualquer especializado em transaccionar acções da Bolsa de Valores mas a um corrector ortográfico, agora destinado a dar caça às supostas consoantes mudas. E emprego aqui o adjectivo supostas porque muitas dessas consoantes têm a insubstituível missão de abrir as vogais. "Ao abrigo" da nova norma, para usar a curiosa expressão da Lusa, o vocábulo "diretor" passa a ser lido com E mudo, o som do A em "redação" também emudece e nem preciso de referir que o O de "adotar" passa a equivaler a U. Nada que refreie o entusiasmo do "diretor" da agência, que revela: "Cada jornalista esteve um dia a refletir sobre a filosofia geral do Acordo."
Também a mim isto dá para "filosofar". E lembro-me da celeuma que a reforma ortográfica concebida por Malaca Casteleiro gerou há 20 anos na comunidade literária portuguesa, com alguns dos nossos maiores escritores - de Miguel Torga a Vergílio Ferreira, de Agustina Bessa-Luís a Sophia de Mello Breyner - tomando posição firme contra a falsa "unificação", afinal quase um decalque da norma brasileira. Sophia, particularmente, acentuou então a importância das chamadas consoantes mudas na abertura das vogais num país que a sul do Mondego persiste em fechá-las.
Desta vez quase não houve polémica, o que é um esclarecedor sinal dos tempos. Adeus corrector, olá corretor e meses escritos em minúscula. Este é o tempo dos inteletuais, não dos intelectuais. Prontos a "abrigar-se" sob qualquer tecto. Perdão, teto.