TGV: uns jantam e outros emigram
Sócrates anunciou ontem a construção da primeira fase do TGV e disse que este é «justamente o momento» para o projecto passar para o terreno. Como há muito se adivinhava, o troço anunciado – o primeiro a ficar pronto se já ninguém conseguir estancar este desastre económico – é a linha Poceirão-Caia. Ou seja: é o troço que vai permitir a ligação Lisboa-Madrid.
Já expus todos os inconvenientes do projecto – que outros dissecaram muito melhor do que eu – mas vale a pena reter, em suma, o seguinte:
— o primeiro-ministro usou o termo «justamente» vezes a mais e nenhuma delas foi para sublinhar que esta sua obcessão tem de tudo menos de justa;
— começar pela ligação Lisboa-Madrid é começar por abrir a cova a este país que só não acaba enterrado por não ter onde cair morto;
— os espanhóis estão muito satisfeitos pela aproximação ao porto de Sines e mais ainda porque nós continuamos a ignorar o transporte ferroviário de mercadorias;
— os franceses, italianos e alemães estão muito satisfeitos pela possibilidade de vender equipamento que fabricam e possuem em excesso;
— ouvir uns figurões a falar na rápida e essencial ligação à Europa quando se começa por Madrid é o mesmo que sair do Porto de automóvel e dizer que "o melhor é ir por Castelo Branco para chegar mais depressa a Lisboa";
— ter de ouvir (como ontem) alguns desses figurões explicar (?) que em breve se pode partir de Lisboa para chegar rapida e tranquilamente a Paris, por exemplo, é um disparate, porque o TGV português está projectado para linhas de bitola ibérica e para lá dos Pirinéus a bitola europeia obriga a mudar de comboio (o que a Espanha já percebeu para alterar as suas ligações a França);
— vamos entrar na rede europeia tarde e a más horas com comboios que a Europa está a trocar pela alta velocidade moderada (250km/h, como o nosso Alfa Pendular), por razões de custo, tempo, consumos, travagem e arranque nas ligações, segurança, manutenção, etc., como hoje já se sabe;
— estamos a rejeitar a entrada na rede europeia com a velocidade comum adoptada, para adoptar o equipamento de topo mais dispendioso e super-rápido que, tanto quanto se sabe, só a China projectou, por motivos óbvios;
— continuamos a alargar a já excessiva rede de autoestradas, a manter enormes camiões em circulação, a persistir numa linha férrea de mercadorias que vem do século XIX e a assobiar para o lado sobre os problemas inerentes da economia, poluição, consumo de combustíveis, acidentes de viação, tempo das ligações, manutenção do piso das estradas e custo final dos produtos;
— vamos pagar nos impostos o custo verdadeiro das deslocações em TGV, para o governo impor preços fictícios às viagens e poder fingir que não sai caro;
— vamos também pagar umas belas comezainas em Madrid a uma certa gente que se porta tão bem à mesa como no Parlamento.
Podemos continuar a emigrar, que isto já deu o que tinha a dar.

