Assim se desvaloriza a intervenção política
Sérgio de Almeida Correia, 11.12.09
“Numa democracia consolidada, o cidadão enxerga o espaço público como de ninguém, porque de todos. Numa democracia não consolidada, o espaço público é de ninguém sem ser de todos; portanto ele pode ser meu no que diz respeito aos meus interesses particulares. E isso é corrupção” – Sandra Jovchelovitch*
A declaração que acima transcrevo faz parte de uma muito interessante entrevista dada por Sandra Jovchelovitch ao Folha de S. Paulo, segunda-feira passada, a propósito da situação que se vive actualmente no Brasil e que é a todos os títulos parecida, sublinho o “parecida” salvaguardadas as distâncias, os problemas e a dimensão de um país e do outro, com a que se vive hoje em Portugal. Se alguma dúvida restasse sobre essa proximidade, Judite de Sousa e Armando Vara ter-se-iam, ontem, encarregado de afastá-la.
Nessa entrevista, a consagrada especialista da London School of Economics acentua a ideia de que a corrupção é sempre uma possibilidade e que não sendo possível erradicar a corrupção, já que ela corresponderá a um erro humano, pelo menos será possível “construir procedimentos na esfera pública desenhados para lidar com situações de risco”, o que é mais difícil de fazer quando se está perante “esferas públicas marcadas por uma cultura em que o privado tem preponderância”, pelo que a solução estará em “mexer no imaginário da sociedade sobre o espaço público, mudar a nossa relação com o espaço”.
A tese parece-me fazer todo o sentido, e mais do que uma simples evidência, ela constitui um desafio. Daí que compreenda mal o sentido de notícias como a que o jornal i hoje publicou relativamente à posição que foi tomada por António José Seguro e Eduardo Cabrita na votação que ontem teve lugar na Assembleia da República. Não sei se Seguro e Cabrita são eventuais “sucessores de Sócrates”, embora não me custasse apoiar o primeiro se fosse esse o momento para tal, mas para o caso isso será o menos relevante.
Sem pôr em causa a oportunidade, e também o oportunismo dos promotores dos projectos de combate à corrupção, o que aqueles deputados fizeram, e bem, foi, uma vez mais, tentar mudar a relação do partido que integram com o espaço público, com a sociedade, com os eleitores, assumindo com a frontalidade e a transparência com que têm estado na vida pública as suas naturais divergências com maioria da sua bancada. Não há aí nenhum drama.
Duvido que em politica haja postura mais saudável do que essa, mas esta continua a ser dificilmente entendida pelo universo partidário e também, como se vê da notícia, pela própria comunicação social que tende a valorizar os aspectos marginais da intervenção.
Quando o importante da notícia é a descoberta da clivagem e não o acentuar da marca diferenciadora e regeneradora da intervenção política está quase tudo dito. Quanto à notícia e quanto à qualidade da intervenção, embora fique por esclarecer como se poderá, para fazer uso de duas curiosas expressões de Ives Gandra da Silva Martins, pôr termo à “vampiragem” e ao “banditismo oficial”. E isto também devia preocupar a comunicação social quando escolhe a forma, o tom e o estilo da notícia, já que por essa via também se contribui para a desvalorização ou a valorização da intervenção política, que é como quem diz, da própria esfera pública.