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Delito de Opinião

Já está

Teresa Ribeiro, 11.12.09

Gostava de ter mais dados acerca da foto da contra-capa de 2666 que mostra Roberto Bolaño a dar uma passa num cigarro, dedos espetados a atrapalhar a leitura da expressão da boca, olhar desfocado. Ao longo de cerca de um mês, que foi o tempo que demorei a atravessar a sua obra testamentária, estudei-a tentando adivinhar se no momento em que se fez a esta fotografia o autor saberia que estava muito doente. À medida que fui progredindo na leitura e para minha própria conveniência, estabeleci que sim. Acreditar nisso confere um toque de omnisciência à sua expressão furtiva, o que não é dispiciendo em se tratando da foto da contracapa de um livro que pretende falar sobre tudo o que se sabe mas não se diz.

Não é nenhuma originalidade retratar em literatura a humanidade pelo seu lado mais sombrio. Cada um no seu género, Cormac McCarthy e Bret Easton Ellis são dois exemplos de autores que levam essa opção ao paroxismo. Mas na literatura, como no cinema, sempre preferi a subtileza ou, na ausência dela, a honestidade. E a honestidade, como se sabe, exige abrangência. Em 2666, Bolaño, sabendo-se condenado pela doença, ajusta contas com a vida sem concessões. É seco, cínico e duro, porque não tem tempo para ser outra coisa. Mas a sua ambição impede-o de fechar os planos da sua escrita sobre a simples descrição de iniquidades e barbaridades várias para dessa forma retratar a humanidade. Apesar de, a quase todos os títulos miserável, a natureza humana não se esgota nesses close ups. Para se ser rigoroso é preciso explicar que o horror nasce de fragilidades como a pobreza, o medo, o amor desmedido ou a ausência dele e, é claro, o sexo.

O escritor chileno que até  aos 40 anos viveu solto, primeiro na sua América natal e depois na Europa, escrevendo poesia e trabalhando em empregos precários e humildes, só "assentou" após o nascimento do seu primeiro filho. Aos 50 anos morre, vítima de insuficiência hepática, deixando pelo meio uma década de ficção, escrita a ritmo febril e só vagamente reconhecida por uma minoria de literatos mais atentos. Além do talento, as suas experiências de vida, fundamentais para a sua mundivisão, contribuíram para o tom maduro e desapaixonado com que nos avalia a todos: intelectuais, politicos, militares, jornalistas, escritores, editores, advogados, trabalhadores fabris, todos passam pela objectiva de Bolaño em 2666.

A aparência, escreve ele, é uma força de ocupação da realidade. Até da realidade mais extrema e limítrofe. Vive nas almas das pessoas e também nos seus gestos, na vontade e na dor, na forma com que uma pessoa ordena as recordações e na forma com que uma pessoa ordena as prioridades (...) A juventude é a aparência da força, o amor é a aparência da paz.

Ambição é tentar através da escrita provar isto. Foi o que Bolaño fez ao cruzar nesta obra cinco histórias que nos arrastam para as profundezas do mar de aparências em que gostamos de nos reconhecer. Ele sabe do que fala. Quem sabe que vai morrer, sabe do que fala quando reflecte sobre a vida. Podia, porém, ceder à tentação vaidosa de se excluir, mas o escritor leva a honestidade às últimas consequências e portanto também se expõe: Não tenho muito tempo, estou a viver. Não tenho muito tempo, estou a morrer - desabafos feitos por interpostas personagens, é claro. Porque Roberto Bolaño não é piroso, muito menos lamechas. Atrás daquele cigarro esconde, de certeza, uma boca tensa, de macho.

Leiam-no.  

 

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