Um imperfeito anti-herói
Uma das imagens mais iconográficas da história da ficção televisiva é a de um indivíduo mal vestido, com uma gabardina encardida, de andar trôpego e um eterno charuto apagado ao canto da boca, fazendo perguntas aparentemente sem nexo e aludindo muito à mulher que jamais nos é apresentada. Se o víssemos por aí na rua nada daríamos por ele. Mas tornou-se num dos mais inesquecíveis detectives da televisão: Columbo, magistral criação de Peter Falk, marcou todos os telespectadores da década de 70.
Produzida pela NBC entre 1971 e 1978, esta série americana dessacralizou a figura do detective, equiparando-o a um homem comum. Quase ninguém o associava à imagem de polícia: aquele homenzinho semicurvado que chegava à cena do crime ao volante de um Peugeot 403 descapotável muito fora de moda não inspirava qualquer receio aos delinquentes, convictos da sua impunidade. Todos, aliás, pertencentes à chamada elite: ricos, poderosos, bem-parecidos e aureolados com êxito profissional. Pecam por ganância, soberba, inveja e luxúria: quanto mais têm, mais ambicionam.
Não há aqui um só assassino oriundo da classe média, confirmando a lógica dos folhetins de antanho: o interesse da história é proporcional à conta bancária dos protagonistas. O facto de na ficha artística figurarem estrelas dos anos de ouro de Hollywood - muitas vezes deslocadas do seu registo tradicional - contribuía para condimentar a série. Nomes como Don Ameche, Eddie Albert, Ida Lupino, Kim Hunter, Ray Milland, Anne Francis, Roddy McDowall e Suzanne Pleshette destacam-se nos episódios iniciais.
Columbo - com o aliciante suplementar de incluir cenas decisivas quase sempre rodadas em cenários naturais - tinha um verdadeiro achado como chave de argumento: desde o início, o espectador sabia quem cometia os homicídios, invertendo-se assim o estereótipo do género policial. Todo o suspense centrava-se na insólita actuação deste detective sem garbo, involuntário paladino do direito criminal que quase até ao fim parecia baralhado com o labirinto de indícios que lhe surgia pela frente. Descurando por completo as evidências colhidas pela chamada "polícia científica" que viria a estar muito em voga três décadas mais tarde, com o C. S. I. e franquias quejandas.
Tudo se resolvia com base na dedução - isto é, graças ao bom e velho intelecto.
Tive a grata surpresa, faz hoje oito dias, de voltar a ver esta série de que tanto gostei na adolescência. Está a ser exibida na RTP Memória. E o primeiro episódio - que recomendo vivamente - é realizado por um tal Steven Spielberg, então com apenas 24 anos, num fulgurante início de carreira que logo o fez transitar da televisão para o cinema.
Este episódio-piloto, com a duração de um filme médio, intitula-se Murder By the Book e ocupa o 16.º posto na lista dos cem melhores de todos os tempos, organizada pela revista TV Guide.
Cada episódio terminava com Columbo partindo na noite, sempre de gabardina surrada e charuto sem chama.
Cumpria o dever de polícia como se fosse o primeiro a espantar-se afinal com as suas espantosas capacidade dedutivas. Um perfeito exemplo de imperfeito anti-herói.