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Delito de Opinião

Velhas descartáveis

Leonor Barros, 28.10.09
Esta é a história da Maria Odete. Maria Odete não foi sempre assim. Muito antes deste mal que lhe afligia os humores e a fazia espojar-se no chão como uma égua relinchante, tempos houve em que Maria Odete era mulher pujante, equilibrada em saltos vertiginosos, prazeirosa em ostentar roupas, ouros refulgentes e carros vistosos na proporção dos restantes acessórios. Maria Odete casara-se num ímpeto desconhecido, atribuído aos repentes que dão às mulheres fêmeas obedientes e submissas, as peças imprescindíveis aos machos dependentes e incapazes, acessórios tão preciosos na cozinha como a máquina de lavar roupa, um gadget mais valioso que qualquer robot de cozinha. E assim foi. Ao macho fazia jeito uma fêmea que lhe ajeitasse o lar, à fêmea fazia falta um macho, a idade talvez assim ditasse, ou um macho apenas que a fizesse resfolegar de prazer e lhe oferecesse roupas e carros para alardear na cara da vizinhança e demais conhecidos. E depois vieram filhos, feitos como os filhos são mas sem a própria Maria Odete saber como foi. Dizia-se àquele tempo que Maria Odete tinha as miudezas encarquilhadas e, por conseguinte, Maria Odete admirou-se quando se viu inchar como se tivesse deglutido uma melancia, a pança que nem um balão, as mamas hirsutas e superlativas. Teria sido num desses dias em que o marido veio da obra, a fornicação aliviava-lhe os nervos fracos e era cumprida num ritual terapêutico. Resfolegaram em uníssono, livres, e, sabendo-se incapaz de gerar fruto, resfolegaram ainda mais sofregamente, libertando odores e secreções, entregues ao prazer supremo da carne que não geraria fruto. Mas o Senhor foi amigo e para salvar Maria Odete deste pecado original, a pobre acorria com frequência às confissões do prior da freguesia, plantou-lhe no ventre o que seria a sua primeira filha. E agora ali estava Maria Odete, divorciada do marido das fornicadelas terapêuticas, com dois filhos adultos. A filha tinha ido buscar as crianças à escola quando o telefone tocou. Uma maçada, logo naquele momento em que o Bernardo lhe pedia colo e a Margarida a desafiar decibéis numa birra descomunal. Era a mãe. Mal falava. Acorreu a casa da progenitora. Encontrou-a estiraçada no chão da sala, em cima da carpete de Arraiolos, a revirar os olhos num leve estertor e a espumar pela boca que mais parecia ter engolido o frasco do detergente da louça. Chamou-a três vezes Mãe, ó mãe p’amor de deus, não se ponha assim. A mãe nada, nadinha, népia, nicles. Ó mãe continuou Ó mãe. Maria Odete ficou dois dias no hospital. Enquanto isso, os filhos decidiam das suas vidas e da vida da mãe. A filha tinha as crianças para cuidar, o filho vivia numa casa pequena, logo o que fazer com a espumacenta mãe sobre os Arraiolos da sala da casa numa zona nobre da capital lusitana? Mesmo antes de saber o veredicto final e do parecer clínico, - não seria por acaso algo passageiro? - decidiram metê-la num lar mediante o seu julgamento de filhos dedicados. Que era o melhor. Que não podiam. Maria Odete saiu do hospital pelo seu pé, - velha não era e estava recuperada de algo que não se soube o que foi - e voltou à sua casa. Logo agora que já estava tudo tratado com o lar lamentaram os filhos Ó mãe, sente-se mesmo bem? Ó mãe, veja lá, parece que a vi cambalear… Maria Odete perguntou-se para que serviam os filhos afinal mais céleres a descartar-se dela do que em ir vê-la ao hospital, mais rápidos a arranjarem-lhe um lar do que a saber o que tinha. E a história da Maria Odete é esta. Apenas um dos rostos visíveis e apenas uma das Maria Odetes que outrora foram mulheres e mães e agora são apenas velhas descartáveis à mercê do egoísmo dos filhos.
 

No Dia do Idoso

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