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Delito de Opinião

As duas partes mais duras do corpo

Teresa Ribeiro, 26.10.09

 

Não é por acaso que John Malkovich é convidado frequentemente para fazer papéis de mau carácter, às vezes até de indivíduos cuja maldade já trilha os ínvios caminhos da patologia. Há qualquer coisa no seu facies que nos facilita a associação com o mal. Não o que identificamos com os vilões comuns, entenda-se, mas o mais sofisticado, próprio de seres requintados, de inteligência superior.

Quando o vi, aqui há dias, a protagonizar Desgraça (real. Steve Jacobs, 2008), filme baseado no romance homónimo de J.M. Coetzee, comecei por estranhá-lo. Na obra de Coetzee o professor David Lurie, a personagem de Malkovich, é um homem demasiado comum para se adequar a um actor tão vocacionado para papéis de borderliners.

Mas fui precipitada. Na verdade acabei por considerar o casting muito apropriado. Jessica Haines, que interpreta a filha de Lurie, uma loira independente, obstinada, genuína descendente de boers, é a materialização da mulher que eu imaginei ao ler o livro. E Malkovich, na pele do professor universitário de meia idade que se refugia temporariamente em casa da filha para ultrapassar o escândalo que lhe arruinou a carreira, é magnânimo a passar-nos tudo o que Coetzee pretendeu que a sua personagem nos desse.

A acção passa-se na África do Sul pós-apartheid, mas esse contexto não é particularmente relevante para a história. A desgraça de Coetzee é a do homem que aos 52 anos é forçado, por um golpe do destino, a desmontar o seu traço identitário mais estruturante, que é a sua própria masculinidade. Ao fazê-lo descobre que a diferença entre a agressão sexual perpetrada por um reles violador e os jogos de sedução em que tanto se revia partilham, em última análise, a mesma vontade de poder e o desprezo narcísico pelo outro.

"... É assim o seu temperamento. E o seu temperamento não irá mudar, está velho demais para tal. O temperamento está fixo, estabelecido. O crânio e depois o temperamento: as duas partes mais duras do corpo" - era assim que pensava Lurie, embalado pela sua costumeira arrogância intelectual, antes de tudo mudar.

Predador orgulhoso, cujas necessidades revelavam "ser bastante sóbrias, sóbrias e efémeras como as de uma borboleta", um dia descobre a vacuidade das elucubrações que sempre fez em torno do seu umbigo da forma mais brutal. 

É dura esta descida ao trópico da testosterona. Valeu a Coetzee o Booker Prize de 1999 e agora,  por força do grande actor que é Malkovich, vale-nos a nós o risco da incomodidade.

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