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Delito de Opinião

10 de Junho

José Meireles Graça, 13.06.25

No Natal e na Páscoa todos, incluindo ateus e agnósticos, celebram as efemérides na certeza inconsciente de que são as da nossa identidade enquanto cristãos. Não muçulmanos, nem budistas, nem sikhs, nem outra coisa qualquer – cristãos.

Larga pertença, essa. Há outras, como a nacional, que consiste em, por ter nascido aqui e crescido no meio de modos próprios de ser, de falar, de pensar, de comer, de conviver, e de crer e descrer, sabermos que somos irremediavelmente Portugueses, até mesmo os que arrastam pela vida o grande desgosto de não terem nascido Ingleses ou Americanos.

Ser Português quer dizer muitíssimas coisas para muitíssimas pessoas agudas, mas para mim, que sou simples e chão, basta-me o saber que em qualquer lugar no estrangeiro sou estrangeiro. E é claro que não tenho dúvidas de que, em que pese o justificadíssimo desporto nacional que os melhores de nós tradicionalmente praticam, e que é o de cascar em todos e em tudo o que achamos explica o nosso atraso relativo, nós Portugueses não temos qualquer problema de identidade – se alguma coisa temos é identidade a mais, não a menos.

De modo que há algumas datas em que se celebra esta identidade. E mesmo que nelas o comum do cidadão não ouça os discursos, nem tenha excessiva curiosidade pelas cerimónias, uns e outras tradicionalmente chatas, e prefira ir à praia, ao passeio ou à batota, ninguém levaria a bem que não se fizesse nada. Temos uns mestres de cerimónias que elegemos para esse efeito, entre outros, dos quais o Presidente da República é o mais representativo.

O 10 de Junho é um dia desses. O pretexto é a data da morte de Camões, o poeta da portugalidade por antonomásia, e está muito bem assim.

Sucede porém que este ano o discurso do  orador convidado (oradora, a escritora Jorge) causou repulsa a muitíssimas pessoas de direita e, imagino, a algumas de esquerda que não deem nada para o peditório da autoflagelação. Repulsa porquê? Vamos ver.

O admirável João Pedro Marques, aqui, demoliu metodicamente tudo o que de factualmente errado a arenga continha, e é muito.

O que sobra, além da floresta de erros? Começa bem, com um longo e muitíssimo bem escrito exórdio sobre a vida, obra, importância e actualidade de Camões, sem esquecer o que dizem investigações recentes sobre a sua vida e obra.

Mas depois começa a psicologizar os três monstros literários da época e de sempre (além do próprio, Shakespeare e Cervantes) e não é que, com citações criteriosamente escolhidas, os preclaros anunciavam os malefícios para a humanidade dos três impérios de que eram nacionais, e antecipavam o opróbrio e a ignomínia com que a historiografia revisionista e woke hoje, a golpes de ignorância e descontextualização, cobre as impressionantes realizações das Descobertas e da expansão e conquistas que se lhes seguiram? Quais conquistas o quê? As crueldades, a subjugação, a exploração, a pilhagem, tudo o que caracterizou a história da humanidade e que quando se “deram novos mundos ao mundo” se amplificou gigantescamente, precisava mesmo era de um tribunal internacional de Haia, que infelizmente não estava disponível à época. Não faz mal, realizamos agora o julgamento e, no caso de sermos brancos e de nacionalidades com passado imperialista, devemos fazer um acto de contrição e expiar a nossa culpa indemnizando os tetranetos das vítimas, mesmo que não saibamos bem quais dos nossos ascendentes andaram a pôr o mundo a ferro e fogo, e quais dos habitantes das regiões antigamente oprimidas descendem dos Adões e Evas que naqueles tempos pregressos gozavam em aldeias de palhotas os benefícios das suas inocentes, pacíficas e tranquilas existências.

Lídia Jorge sobre os Romanos não disse nada. Fez muito bem porque no tempo deles Portugal não existia e Portugal era o assunto do discurso. Mas na verdade a lógica que amarra ao pelourinho da abominação os conquistadores vale por maioria de razão para a civilização Romana, que assentava na escravatura, e não sei se na prosa de Cícero, ou nos versos de Virgílio, não haverá condenações avant la lettre – é procurar bem.

Camões está afinal entre nós hoje não porque a sua epopeia faça parte da nossa história e da nossa memória colectiva, mas porque anunciava “o fim de ciclo que se seguiu ao tempo da Renascença malograda”, que evidentemente se relaciona com os dias que estamos a viver.

“O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a Terra redonda é disputada por vários pescoços em competição, como se mais uma vez se tratasse de um berloque”.

Confesso: quando de manhã vou ao encontro das notícias da noite no meu “écran de bolso” não vejo nada desses pescoços e pavores e portanto peço licença para não seguir a opinião que Lídia preopina de ser contra isso, e por isso, que vale a pena que Portugal e as Comunidades Portuguesas usem o nome de um poeta por patrono.

Nem compro o resto do discurso, um longo arrazoado segundo o qual a cultura digital subverteu a regra da exemplaridade. “O escolhido passou a ser o menos exemplar, o menos preparado, o menos moderado, o que mais ofende”.

É verdade. A essa escumalha infecta que pulula nas redes sociais deu-lhe ultimamente para guinar para a direita. Deve ser por não lerem Camões. Nem Lídia Jorge.

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