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Delito de Opinião

Crónica de nove mortes anunciadas e uma ameaça de morte por cumprir

Patrícia Reis, 07.02.19

No dia 5 de Janeiro, uma mulher é encontrada morta na zona de Lagoa. O marido jazia ao lado. De acordo com a Polícia, tratou-se de um homicídio seguido de suicídio. Foi a primeira mulher a ser morta neste novo ano, em Portugal. Tinha entre os 50 e os 60 anos de idade. 

Um dia depois, era domingo, dia de Reis, uma mulher portuguesa é morta à facada pelo companheiro, em Toulouse, França. A vítima tinha 29 anos. Antes de morrer conseguiu telefonar ao irmão a pedir ajuda. O irmão não chegou a tempo, bateu à porta da casa da vítima e foi-lhe devolvido apenas silêncio. No dia seguinte, a porta foi arrombada, a filha da vítima, de seis anos, dormia no quarto. O alegado assassino pôs-se em fuga. 

No dia 11 de Janeiro, um homem de 83 anos de idade matou a mulher, com a mesma idade, e a cunhada, também ela octogenária. O homem disparou uma arma de fogo com o objectivo de se suicidar. Não conseguiu e acabou por morrer no bloco operatório num hospital lisboeta. 

No mesmo dia, foi encontrada Vera Silva, de 30 anos, no Pragal, Almada. Era empresária. De acordo com a autópsia, foi morta ao soco e pontapé, sem recurso a qualquer outro objecto. 

Sete dias depois, uma mulher de 70 anos foi morta no Dafundo, Oeiras. Mais uma vez, o acto é classificado como um caso de homicídio e suicídio: o marido, de 71 anos, estava ao seu lado. Ambos mortos por tiro de caçadeira. A filha encontrou o casal morto.

No dia 28 do mesmo mês, uma mulher de 48 anos de idade foi encontrada morta na sua casa, em Santarém. De acordo com a Polícia de Segurança Pública, a mulher foi agredida violentamente. Era brasileira. O caso está com a Polícia Judiciária.

No último dia do mês de Janeiro, uma mulher foi encontrada morta pela GNR em Moimenta da Beira. A mulher vivia com os dois filhos pequenos, de dois e cinco anos.

No dia 4 de Fevereiro foi encontrada uma mulher morta no Seixal. Tinha 60 anos.  O genro da vítima é o principal suspeito e leva consigo a filha. Mais tarde, o mesmo suspeito terá telefonado a indicar o local onde se encontrava a criança: no porta bagagens do seu carro, morta aparentemente por asfixia. A criança chamava-se Lara. A mãe de Lara fez tudo bem, perdeu a mãe e a filha. E agora?

Ontem, dia seis, um homem de 39 anos tentou matou a ex-mulher, da mesma idade. Passou-se tudo na zona industrial de Nelas. O homem disparou uma arma de fogo contra a cabeça da ex-mulher. O homem foi detido, ambos tiveram de ser assistidos no hospital Tondela-Viseu. A Polícia Judiciária de Coimbra tem com o caso nas mãos. 

Falemos em feminicídio. Falemos em moral. Em cultura. Não falemos em saúde mental, porque, nesse caso, estamos a desresponsabilizar e a dizer que há uma perturbação mental que afecta, maioritariamente, homens e cujo mote é a violência contra as mulheres, namoradas, mães, filhas. Falemos em Justiça. E, acima de tudo, falemos em exercício de poder. 

Na maioria dos casos, estes ou as dezenas de casos passados durante o ano de 2018, as histórias não se explicam racionalmente, mas existe sempre a ideia de poder, de subjugar a mulher, da humilhar, da deter à força. 

Feminicídio. Esta é uma palavra que nos deve envergonhar. Mais uma vez, a educação para a paridade, para as relações de respeito e consentimento mútuo, isentas de sentido de posse, é crucial. Os estudos que apontam para uma crescente violência no namoro são alarmantes, mas que fazemos nós para dizer aos mais jovens que a violência não é caminho? O Primeiro Ministro diz que reúne hoje com o ministério da Justiça, ministério Público, Procuradoria Geral e forças da autoridade. Que é uma vergonha vivermos num país onde as mulheres morrem assim. Muito bem, reúnam. Entretanto, talvez não morra mais nenhuma mulher. Entretanto, o juiz que cita a Bíblia e alega que as mulheres adúlteras, enfim, já se sabe, podem ser mortas em alguns países, levou uma reprimenda e, imagino, continuará a presidir a casos de violência doméstica. 

Seja qual for a sua intervenção, Senhor Primeiro Ministro, não se fique pela teoria, nem pela organização de mais uma comissão para discutir e analisar. É urgente travar a violência, o feminicídio a que assistimos dia após dia. A Lei tem de ser dura e eficaz, importa ter exemplos que possam atemorizar potenciais abusadores/assassinos, importa que as potenciais vítimas sintam que possuem mecanismo eficazes de defesa e meios de auxílio concretos. Se uma pessoa faz queixa, consegue dar esse passo, não pode ser ignorada. 

Ao longo da História, as mulheres têm sofrido de excesso de silêncio, de negligência por parte do Estado, de teorias absurdas de comportamento. Já chega. Hoje, se tudo correr bem, não lerei nenhuma notícia de mais uma morte. E amanhã?

Caros desconhecidos

Patrícia Reis, 17.01.19

Venho por este meio informar que não liberto comentários a qualquer post feito por mim que esteja assinado por Desconhecido. Assim, agradeço que se abstenham de comentar caso desejem permanecer Desconhecidos. Por outro lado, como já referi mais do que uma vez, não libertarei comentários ofensivos.

contra o puritanismo, marchar, marchar

Patrícia Reis, 17.01.19

Censurar Fernando Pessoa a pretexto do público-alvo ser adolescente (ao nível do secundário) é um tiro no pé. Se me recordo da minha adolescência, e recordo bem, eu iria logo à cata do que me tivessem proibido de ler.

Bom, mas eu li Os Maias, parece que ainda se lê, e é sobre incesto, não é? E li Jorge Amado, li Marguerite Duras, O Amante, teria uns 15 anos. Li Anais Nin e Henry Miller, a loucura das Novas Cartas Portuguesas de Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno. Também tive a sorte de ter uma professora de português que achava os Lusíadas sexies e Bocage inspirador.

O mundo muda quando se tem bons professores. Os bons professores são os que abrem  caminhos, são os que nos incentivam, não são os que controlam a nossa moral.

No secundário, se me recordo, a malta já pensa em sexo. Diria mesmo que se pensa bastante em sexo, porque nada melhor do que o abordar através da poesia.

Li algures que a Ode Triunfal de Fernando Pessoa, na verdade Álvaro de Campos, para sermos correctos, incita à pedofilia. Ó por favor! Estamos a falar de miúdos com 16 ou 17 anos, miúdos que não são parvos, que usam as redes sociais e têm acesso a sexo gratuito online se assim o desejarem. Não é a falar que a malta se entende e desmistifica preconceitos e ideias falsas?

Ao manual escolar da Porto Editora, editora que recusa a acusação de censura, faltam três versos: "Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas". E ainda: "E cujas filhas aos oito anos - e eu acho isto belo e amo-o! - / Masturbam homens de aspecto decente nos vãos de escada".

Na versão dos professores do mesmo manual o poema está na íntegra. Os docentes são livres de escolher discutir ou não os versos cortados? Parece que é essa a ideia. Dizem que há uma preocupação didáctica-pedagógica. Com o quê? Estamos a falar de miúdos crescidos, daqui a nada universitários ou no mercado de trabalho.

Ora, a obra de Fernando Pessoa e os respectivos heterónimos integra as chamadas “aprendizagens essenciais” definidas pelo Ministério da Educação. Acho bem. Como acho bem Os Maias ou Os Lusíadas com as suas sereias encantatórias.

O que não acho bem é o puritanismo e esta polícia do pensamento. Já a tivemos em Portugal, durou até 1974, vamos voltar atrás? Há um politicamente correcto e um sentido regulador que se impõe e que é tutelado por alguém. Não sei quem seja, mas as proibições e censuras cheiram sempre mal. Podem invocar o que quiserem, não tenho como entender.

Sexo aos 50 anos é melhor, cretino!

Patrícia Reis, 10.01.19

Esta coisa de ser mulher não é fácil, às tantas deveríamos fazer conferências de imprensa diárias para esclarecer sexistas e machistas, mas quem tem tempo para tanto?

Um escritor francês, premiado e presença regular na televisão do seu país, afirma que não conseguiria amar uma mulher com 50 anos de idade – a mesma idade do dito cujo senhor –, que os corpos das mulheres mais velhas não são extraordinários como os das mulheres de 25 anos de idade e que, cereja no topo do bolo, que as mulheres mais velhas se tornam invisíveis. Diz tudo isto em declarações à extraordinária Marie Claire francesa (que saudades que tenho da revista em versão portuguesa!).

E, é evidente, as declarações causaram furor nas redes sociais e afins. A minha pergunta, a primeira, é: quem é este senhor? E por que carga de água é que tem palco para tanto disparate? Porventura será muito famoso, ganhou um prémio literário com relevância no mundo das letras, mas quem é? É que malta a ganhar prémios há muita e nem todos são dignos da história da literatura universal. E como se atreve, este cretino? Será para criar soundbites?

Deduzo que possa dar-se ao atrevimento porque hoje é tudo possível. O dito cujo senhor acrescenta ainda que prefere mulheres orientais, porque o seu gosto apurado no que toca a mulheres asiáticas dá-lhe um certo... panache? Acrescenta ainda, este escritor cujo nome escolho não nomear, que pode ser triste e redutora a forma como classifica o aspecto desejável das mulheres asiáticas, mas é ele. Devemos dar-lhe pontos pela sinceridade?

Uma mulher de quase 50 anos, é o meu caso, tem de conviver com várias pressões da sociedade, pode escolher viver melhor ou pior, mas sabe que existem. É evidente que um corpo aos 25 anos não é comparável com um de 50, embora seja relativo, por existirem corpos em todas as idades que podem ser classificados como “pouco interessantes” do ponto de vista estético. O que me perturba nas declarações desta criatura tão versada nas coisas do mundo é – desculpem a repetição – o facto de dizer que as mulheres mais velhas são “invisíveis”. Não somos. As mulheres nunca são invisíveis, não importa a idade ou o corpo. Cada mulher é um ser humano que traz consigo uma experiência, uma história. Haja paciência!

O escritor, torturado por diversas personalidades nas redes sociais, diz que não tem culpa e que não pode ser julgado no “tribunal do gosto”. Há muitas mulheres mais velhas que se riem com tudo isto, eu não consigo. Uma amiga próxima, porém, arrancou-me uma gargalhada ao dizer que aos 50 o sexo é muito melhor, “o escritorzinho é que não sabe e talvez não queira ser confrontado com a sabedoria e experiência que nós, mulheres, acumulamos. Azarinho”. Que é como quem diz nous sommes désolées.

O mundo já se tornou uma ficção, agora vale tudo.

Patrícia Reis, 02.11.18
The House of Cards é ficção, e mostrou ao mundo uma perspectiva maléfica e esquematizada de poder que, no mundo real, parece estar a tomar proporções extraordinárias, escrevo extraordinárias no sentido de fora do “normal”.
 

Estreia esta sexta-feira, em Portugal e nos Estados Unidos da América, em simultâneo, a sexta temporada da série House of Cards. É a temporada final, constituída por oito episódios, e à frente temos Robin Wright no papel de Claire Underwood, agora presidente dos EUA. O retomar da série, depois de um ano de interrupção, levou também ao retomar das acusações feitas a Kevin Spacey. Robin Wright diz ter mantido uma relação profissional com o actor e que não conhecia o homem, apenas o artista incrível que ele era. Além da acusação de assédio feita por Anthony Roger, uma acusação face a um episódio com 30 anos de existência, Kevin Spacey tem sido, desde então, alvo de escrutínio e outras acusações foram surgindo. Sinal dos tempos.

Mas esta não é mais uma crónica sobre o assédio e a discriminação, embora a tentação possa ser grande. Ser-me-á permitido um ligeiro desvio? O jornal The Guardian publicou esta semana um artigo que garante que para as mulheres ganharem o mesmo que os homens, o mundo terá de rodar muitíssimas vezes e, mesmo assim, a perspectiva de demora é de mais de 200 anos. Não será, por isso, no meu tempo, no tempo dos meus filhos, dos meus netos, dos meus bisnetos e por aí adiante. Robin Wright, a magnífica actriz que contracenava com Kevin Spacey em The House of Cards, não era remunerada de forma igual e, além de ter tornado o facto público, lutou pela paridade salarial. Fim de desvio.

The House of Cards é ficção, já se sabe, mas mostrou ao mundo uma perspectiva maléfica e esquematizada de poder que, no mundo real, parece estar a tomar proporções extraordinárias, escrevo extraordinárias no sentido de fora do “normal”. Não é apenas o que assistimos na Europa com a extrema-direita a retomar assentos onde os já tinha perdido, ou o 45º presidente dos Estados Unidos da América a vociferar disparates. É o Brasil que elegeu democraticamente alguém cujo discurso é perigoso. Mete medo. Se o poder se exercer com fundamentalismo e na crença de que se é “escolhido”, mesmo não sendo o mais classificado, o abuso sobre as pessoas e instituições é uma inevitabilidade. Algo que na série norte-americana está espelhado de forma brilhante. Não consigo já entender a ficção como apenas isso, o exercício da imaginação. Revejo as temporadas anteriores de The House of Cards e acho que tudo aquilo é possível: manipulação, deturpação, mentira, corrupção, assassinato. A verdade é que, como Dorothy no Feiticeiro de Oz, já não estamos no Kansas e o irreal tornou-se negro, negro como todos os retrocessos civilizacionais são negros. Onde estaremos daqui a dez anos? Talvez a seguir a The House of Cards surja outra série que nos mostra a vida real e a cores.

Terá a igreja católica fé nas mulheres? Desprezo tem de certeza

Patrícia Reis, 26.10.18

As mulheres e a igreja católica é uma história longa, dura, tenebrosa até. Existem pesadelos mais suaves. Não depende do tempo, do contexto histórico, porque a sociedade evolui, mas o papel da mulher mantém-se: serve para servir, para ser perseguida ou discriminada ou viver dentro da instituição com a clareza das coisas invisíveis.

São o elo mais fraco. Leituras da Bíblia, de diversos estudiosos desta coisa da ciência das religiões, fazem interpretações várias do papel das mulheres nos evangelhos; alguns até se atrevem a questionar se Madalena seria considerada como uma discípula. Afinal, a quem aparece Jesus quando ressuscita? Pois. Para a instituição que é a igreja católica faz pouca diferença, é o mundo de homens, sempre foi. E continua a ser.

Li no Observador há dias um artigo de João Francisco Gomes – porventura um dos jornalistas da nova geração mais interessantes e ligado a estas coisas da igreja – que no Sínodo deste ano, dedicado à juventude, as resoluções contaram com votos de frades, mas não de freiras, apesar do estatuto eclesial ser o mesmo. Há sempre um certo desprezo, ou aquilo a que eu entendo como desprezo, no que toca às mulheres no centro da decisão. O Sínodo é o conselho consultivo do Papa, talvez se possa dizer que é um dos órgãos mais importantes. As sete freiras que participaram no Sínodo deste ano podem ter tido ideias, podem ter explicado cenários relevantes, podem ser possuidoras de um conhecimento elevadíssimo. Não faz diferença. Menina não vota.

Existem muitas frentes que procuram lutar por um protagonismo feminino dentro da Igreja, não são vozes de hoje, são vozes que se ouvem há muito. Não têm tido muito sucesso, apesar de 80% das pessoas, dentro da igreja católica, que consagram a sua vida à instituição serem mulheres. O superior dos frades dominicanos, o Padre Bruno Cadoré, é quem o afirma no citado artigo do Observador. Ora, 80% é uma percentagem altíssima, até para quem não aprecia a função dos números e da estatística. E o que é consagrar a vida à igreja? É, muitas vezes, abdicar de tudo em função da fé, a mesma fé que se faz representar por uma igreja que, tendo sempre sido activa no papel castrador face às mulheres, não pode continuar cega e surda no que diz respeito à luta das mulheres por mais protagonismo.

O papa Francisco, que padece do mal que afecta os governos, instituiu uma “comissão” no vaticano, coisa ambígua no meu entender, para analisar as questões do diaconado das mulheres. (Nota: O feminino de diácono diz-se diaconisa. A igreja católica não concede o Sacramento da Ordem para mulheres, apenas para homens).  A dita comissão foi composta em 2015. Até agora não encontro nenhum documento da autoria dos membros da comissão. Talvez tenham começado a analisar os séculos para trás e, como tudo na igreja, lentamente lá chegarão ao século XXI.

Historicamente, a igreja trata as mulheres como mães e santas, como servidoras ou demoníacas, neste caso acusando-as da responsabilidade do pecado original. Diria que já chega, é tempo de mudar a agulha e de entender que a igreja beneficia do feminino, sempre beneficiou, e que as mulheres são uma mais-valia que precisa de ser visível. Mulheres só nos bastidores? Freiras a carregar chapéus de senhores bispos? Administrativas? Para a limpeza? Imaginam o que aconteceria se estas mulheres decidissem fazer greve? Pois, quer-me parecer que os senhores bispos e afins também não se deitam a imaginar essas coisas.

Somos jovens, autonomia pode esperar, os pais aguentam...

Patrícia Reis, 18.10.18

No estado do mundo, os mais jovens dedicam-se a pensar e a repensar na vida, são muitas horas condicionadas por cenários abstractos, catastróficos, reais ou irreais e que têm por base verdades do tempo que vivemos: os ordenados são baixos, o mercado é difícil e complexo, os estudos não garantem nada, a falta de estudos garante ainda menos, ter um projecto de autonomia, libertar âncora e sair de casa dos pais é cada vez mais complicado. Em casa até aos 30 anos? E em que circunstâncias? A verdade é que os jovens estão a começar os seus projectos de vida cada vez mais tarde, permanecendo em casa dos pais mais tempo do que gerações anteriores. Não há uma solução à vista.

Uma jovem, com licenciatura e mestrado (este com distinção) diz-me que recebe o ordenado mínimo nacional, gosta do que faz, não está na sua área de estudos, mas aceita a situação com bonomia. “O que me importa mesmo é trabalhar”, garante-me. Não sairá de casa da mãe tão cedo, acha mesmo uma missão impossível. “Tenho 25 anos, ganho o ordenado mínimo, como é que vou fazer? Como é que vou pagar renda, água, luz?” Pois, nos grandes centros urbanos não irá morar certamente, basta estar atento às notícias sobre o mercado imobiliário para percebermos que viver em Lisboa ou no Porto está muito longe de ser acessível.

Estando grata por ter conseguido estudar o que quis, mesmo que não exerça a profissão, esta jovem é o exemplo paradigmático da realidade de muitos outros jovens. Os pais, como acontece com os bons pais, empurram com a barriga e vão cuidando, pagando, fazendo o melhor que podem. No caso de terem condições, perguntarão? Pois, no caso de possuírem condições económicas para tanto.

Um estudo de investigadores do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas e publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos neste início de verão, intitulado a "Igualdade de género ao longo da vida: Portugal no contexto europeu", conclui que os portugueses são os que mais tarde abandonam o ninho dos pais. O estudo conclui que a idade média de saída de casa dos pais chega aos 29,7 para os homens e 28,2 para as mulheres. O estudo é claro: "muitas das mulheres e homens jovens que estão na casa dos pais podem já não ser dependentes economicamente destes, e estarem a trabalhar, sem terem ganhos suficientes para adquirirem autonomia residencial". Nos países nórdicos é diferente por existir um estado social mais forte e com políticas de autonomização dos mais jovens, ou seja, existem bolsas e empréstimos a longo prazo e uma realidade laboral mais estável.

Os projectos de vida, de autonomia, de abraçar a vida, a denominada vida de adulto, são adiados e trazem consequências, reflectem-se não só não só nos processos de auto-estima como na evolução individual de cada um. Um jovem licenciado, com ou sem mestrado, que ganhe o ordenado mínimo não pode viver satisfeito, mesmo que as contas sejam pagas parcial ou totalmente pelos pais. Leio que Portugal é o maior consumidor europeu de anti-depressivos. De repente, nada me admira.

Penso na reforma, faço cenários e caio na real

Patrícia Reis, 17.10.18
Aceita, Patrícia, que custa menos. Faltam-me 17 anos de labor.
 

Ciclicamente faço contas à vida. Mudo a minha imagem no mural do Facebook para um frame do filme da Disney "Branca de Neve e os Sete Anões". Alguém decidiu fazer do espaço Disney e das mil personagens uma plataforma de ironia, e, nesta imagem, a Branca de Neve surge de bruços (imagino que no escuro da floresta assustadora, depois de escapar às mãos terríveis da madrasta que a quer ver longe e, preferencialmente, morta) e a legenda reza assim: cansei, quero aposentar-me. É evidente que quem inventou a Disney irónica é uma alma brasileira e, muitas vezes, temos esse gosto suplementar da língua portuguesa recheada de musicalidade brasileira.

E então cá estou eu, em versão Branca de Neve, pronta para me retirar e este assalto emocional de contemplação da vidinha dá-se com uma regularidade matemática assustadora e cada vez menos espaçada. Ando a trabalhar há trinta anos, fui confrontada com isso – trinta anos! – este ano de 2018. Desconto para a segurança social há 29 anos, estive um ano a trabalhar à borla, por isso não tinha como descontar, mas não trabalhava menos por causa dessa manobra de exploração inerente ao então estatuto de “estagiário” da redacção de um jornal.

Como vou fazer 48 anos de idade não tarda nada, achei por bem fazer uma simulação da minha putativa reforma e, qual não foi o meu espanto, quando o senhor Google nem precisa que eu escreva na íntegra a palavra simulador, dá-me logo opções de simulador de IRS, IMT, crédito à habitação e de reforma. Percebo que, além do simulador de reforma disponibilizado pela segurança social (um pouco complicado, o que me levou a recorrer à minha contabilista do coração), temos companhias de seguro e instituições bancárias com o mesmo tipo de aplicação, imagino que tenham como objectivo promover ferramentas de poupança e outras coisas que tais, dando-nos a hipótese (ou será ilusão?) de que estamos a poupar para o futuro. Nós, na velha Europa, temos a tendência para pensar no futuro e planear. Na Índia, por exemplo, referir um Plano de Reforma ou algo assim faz tanto sentido como prever a mudança de tempo súbita.

Concluí então que não tenho como, mais ironia ou menos ironia, procurando auxílio nas personagens maravilhosas do imaginário infantil ou em outras, reclamar e anunciar a minha retirada do mercado de trabalho até aos 60 anos de idade. E, com essa possibilidade, tenho uma penalização imensa, mais de 50% do valor da reforma que terei se andar a batalhar até aos 65 anos. Conclusão? Aceita, Patrícia, que custa menos. Faltam-me 17 anos de labor. Não me incomoda se pensar no que tenho aprendido, nas pessoas com quem me tenho cruzado, na imensidão de projectos que ainda gostaria de ver por aí a vingar, a fazer caminho. Incomoda-me quando sou confrontada com a falta de ética, a velocidade extrema com que os clientes querem qualquer coisa, porque se é feito no computador (pois) não implica muito trabalho, pois não?, ou ainda quando percebo que aquela pessoa ali, com quem tenho de privar durante um tempo indeterminado, é um(a) sacana do pior, mal formado(a) e sem escrúpulos. Acabo por concluir que nestes trinta anos não mudei assim tanto: não é o trabalho que me maça, são as pessoas. Não é o que me custa fazer, é o pouco que se paga (e, nesse aspecto, posso assegurar que todos os orçamentos vieram por aí abaixo, cantando e rindo, cada vez mais irrisórios, cada vez mais infelizes).

Isto é arte, pá, pornografia é outra coisa!

Patrícia Reis, 27.09.18

Bem vindo ao império do politicamente correcto. Uma higiene moral imposta por quem considera que o público em geral é apenas uma criança a precisar de orientação. O retrocesso civilizacional a que assistimos é tremendo. Não respeitamos a liberdade do Outro, impomos regras, moral e puritanismo. Em nome de quê? De uma teórica civilização.

Vamos censurar uma exposição de um artista cuja obra é abundantemente conhecida? Obra cujo teor polémico tem sido amiúde debatido pelo mundo? Vamos limitar a entrada, porque - Deus proíba - há quem vá ver uma exposição com crianças de seis anos a Serralves sem se informar sobre o que está exposto? Talvez existam famílias assim, claro. Num mundo de tecnologia em permanente vertigem de informação, sendo o sexo acessível com enorme facilidade (olá sites pornográficos gratuitos), como é que nos atrevemos a fiscalizar a arte? O que é a arte senão o derrubar da norma para ver o avesso das coisas? E se arte explora o sexo desde sempre - historicamente é fácil de comprovar - por que carga de água é que agora nos dá para oferecer vendas para os olhos e estipular que o visitante de um museu tem de ser “moralmente” guiado?  

A história da suposta censura em Serralves à exposição do artista norte-americano Robert Mapplethorpe (1946-1989) é uma trapalhada de todo o tamanho. Certamente que existem bastidores negros, pormenores que nunca chegarão ao grande público. O dito e o não dito: a entrevista da antiga ministra da cultura, Isabel Pires de Lima, ao Expresso; as declarações do director artístico e curador demissionário, João Ribas, ao Público. Acresce: pequena manif para destituir a administração composta por Ana Pinho (Presidente), Manuel Cavaleiro Brandão (Vice- Presidente), Manuel Ferreira da Silva (Vice-Presidente); Isabel Pires de Lima (Vice-Presidente); Vera Pires Coelho; Carlos Moreira da Silva; António Pires de Lima e José Pacheco Pereira.

A administração que começou por reagir laconicamente, a seguir corrige o tiro (ontem em conferência de imprensa, a mesma administração declara que nunca houve censura em Serralves e que as decisões foram todas da responsabilidade do curador). O curador e director artístico demissionário (então, o homem demite-se mas vai ao vernissage?!) apresenta a sua demissão por email. Porquê? Os membros do Conselho de Administração dizem que não sabem.

Também achei graça ao director do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, António Filipe Pimentel, que comentando a polémica achou por bem dizer-nos que a Fundação Serralves tem mais apoio do Estado que a maioria dos museus (“Só em Serralves [o ministério da Cultura] investe mais que em todos os museus públicos nacionais”), ou seja, 40% do financiamento da Fundação Serralves é proveniente do orçamento do Ministério da Cultura. Para quem não se recorde, o orçamento para a Cultura não chega sequer a um por cento do Orçamento de Estado. Sobre este facto – não tenho porque não acreditar nas declarações de António Pimentel – não me recordo de ler mais uma linha sequer. Mas não ficamos por aqui.

Lúcido, o director do Museu Nacional de Arte Antiga explicou que em Serralves, na exposição da Colecção Sonnabend, esteve exposta uma fotografia da artista porno Cicciolina. Não se tratava, como é bom de ver, de pornografia, era arte.

Conclusão? Uma telenovela para apimentar a nossa existência, é certo. No fim, o artista – exposto em Portugal várias vezes em anos anteriores, mesmo que não numa retrospectiva de obra – ganhou: as visitas a Serralves foram muitas, mais de seis mil pessoas em quatro dias. Vamos lá ver o que é isso de sexualmente explícito e chocante? Vamos, mas olhem que é arte, só isso, arte. O resto é politiquice e intriga.

sexo por delicadeza

Patrícia Reis, 05.09.18
Ter direito a dizer que não. Ter direito a dizer “agora não me apetece”.
 

Quantas mulheres tiveram relações sexuais por boa educação? Por elegância? Para não parecer mal?

Não se fala do sexo neste contexto. O da delicadeza.

Não se trata de uma violação, trata-se de acatar ou de atuar de acordo com as expectativas do Outro, para agradar, para não criar conflito.

A intimidade implica diálogo e, na adolescência, essa consciência é inexistente.

Eu não sabia que era possível dizer ‘não’ sempre que não me apetecia. Sem que tal recusa fosse sinónimo de falta de entusiasmo e de afeto. Descobri mais tarde, porventura, tarde de mais.

Ter a noção concreta do poder do desejo e do prazer, e da paridade possível entre parceiros, é crucial, mas não é evidente.

A falta de desejo pode implicar medo. Ficará a gostar menos de mim, se eu não quiser fazer amor? Como justifico o não querer? O não me apetecer? Estas são as perguntas que muitos adolescentes fazem. As respostas serão distintas, ou talvez haja quem não tenha respostas.

Existem cedências de vários níveis no discurso e na prática amorosa. No sexo não há exceções, as cedências também acontecem.

Há muito tempo, numa conversa de raparigas, constatei que a maioria das minhas amigas, não tendo vontade, já tinha cedido ao ato de fazer amor com o parceiro ou parceira. Não havia uma queixa implícita, apenas o facto de perceberem, todas aquelas mulheres, que, por vezes, o desejo não acompanhava o desejo dos que elas amavam.

A insegurança dentro de uma história de amor limita, prejudica, alimenta equívocos. Nesse sentido, o diálogo é, mais uma vez, a ponte possível para a construção de uma sexualidade saudável. Mas quem é que fala sobre a sua sexualidade com o parceiro? Muitas pessoas o fazem; outras tantas calam.

Volto então à adolescência, a esse tempo terrível em que vivemos em ruínas permanentes, a tombar e a fazer nascer ideias e sentimentos, com uma intensidade única. Na minha geração não se falava de sexo com o parceiro. Era apenas a conversa dos corpos que importava, a conquista do prazer, essa partilha absoluta que podia, se fosse o caso, levar a outras histórias, a relações consistentes no tempo. Mas estamos a falar da adolescência: a continuidade, seja do que for, é sempre relativa.

Com a idade percebi que era possível dizer ‘não’ sem deixar de ser amor. Assisto, com perplexidade, a algumas conversas de amigas que, tal como eu, tendo elas mais de 45 anos de idade, permanecem no silêncio quanto ao que lhes apetece. Não lhes ocorre que recusar é um direito. Pior ainda: não querem discutir o assunto, encolhem os ombros. E essa atitude, só por si, entristece.

Diz-se que o sexo é também uma relação de poder.

O melhor do sexo é descobrir que esse poder é partilhado.

 

(Texto escrito para o Dia Mundial da Saúde Sexual e publicado originalmente no site da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica. A efeméride assinala-se a 4 de Setembro, mas a sua comemoração prolonga-se pelo resto do mês, e do ano. “Saúde sexual e direitos sexuais são fundamentais para o bem-estar” é o slogan que serve como ponto de partida para uma reflexão e discussão, que se pretende global (trans/nacional), e voluntária, abrangendo os mais diversos contextos: políticos, sociais, culturais, mediáticos, científicos, médicos, universitários, escolares e artísticos.)

Carta para Eduardo Prado Coelho

Patrícia Reis, 25.08.18

Querido Eduardo
Sobrevivemos mais um ano e as histórias são múltiplas, impressas numa vertigem que te encantaria e, depois, seria pretexto para te sentires derrotado. Existem poucas pausas. Não te faria sentido esta velocidade e, embora possa perceber que tivesses a tua página aqui ou em outra rede social, serias mais voyeur do que participante, creio. Tu gostas de observar, bem sei, de ver como se vai de A para B e que atalhos puros ou conspurcados farão esse caminho. Darias muitas gargalhadas com as enormidades recheadas de pensamentos pequenos, pequeninos, minados de inveja - ah, esse sentimento tão português!. E pasmarias com a quantidade de imagens e comentários sobre a perfeição de uma vida para consumo alheio. A intimidade é aterrorizadora, arranjámos uma montra para disfarçar as pregas, os buracos, as bainhas descaídas de uma vida que se entende cada vez menos. O planeta tem gestos políticos cada vez mais fortes, cada vez mais, mas pasmamos e fazemos pouco, fazer implica um movimento de auto preservação que parece que só teremos na iminência de um ataque daqui a doze horas. Até lá empurramos com a barriga. Ficarias desgostoso com as politiquices e com a política fria e pouco humanista que parece crescer e multiplicar-se pelo mundo fora. Não é o Trumpo, é tudo, são todos. É assustador como a banalidade do mal de que falava Arendt não prescreveu, como não conseguimos melhorar. Sim, tenho de te dizer que não melhorámos em nada. De resto, querido Eduardo, a tua morte parece estar calada nas coisas da cultura, quem se lembra de quem? Seria bom estares aqui para explicar o conceito: cultura, o que é? Porquê a sua importância? Rumores e boatos temos em fartura, conquistas poucas, egos mexidos em excesso. Infelizmente, o tempo traz a idade e a idade as limitações - quantas vezes falámos sobre isto? - e, também por isso, a nossa mm escreve com a sua velocidade de cágado e protege-se numa cápsula protector que tem uma porta invisível, apenas reconhecida por ela. Não a vejo como gostaria. Não falamos ao telemóvel, bem sabes como odeia essa coisa de falar para dentro de uma pequena caixa que vai aquecendo na pequenez das mãos. Not even the rain has such small hands, não é assim? Das mãos da mm nasce uma rede de apoio e de afecto que se estende por mim, pelos meus. Embora longe não existe distância. E de ti, querido, mantemos a proximidade, em pensamento, em saudades. Já te disse que não deverias ter ido tão cedo? Sim, eu sei, é tarde. Beijo-te daqui

estou farto de não fazer nada, disse ele

Patrícia Reis, 23.08.18
O desabafo deu origem a várias coisas, entre elas a constatação estranha de não sabermos desligar, de termos dificuldade em descansar.
 

Um grande amigo, uma das melhores pessoas que conheço, tinha um restaurante em Lisboa e vendeu-o. Era o princípio do Verão e estava livre, sem compromissos. Com mais de 50 anos, podia – finalmente – gozar uns dias de praia, a monotonia de quem está a viver em pleno a silly season. Acontece que ao fim de poucos dias, mais de dez, menos de trinta, o meu amigo suspirou e disse: “Estou farto de não fazer nada”.

O desabafo deu origem a várias coisas, entre elas a constatação estranha de não sabermos desligar, de termos dificuldade em descansar. “Dá-te tempo”, aconselhei eu já em stress com não sei quantas coisas, a invejar o potencial fare niente do meu amigo. Rimos e aproveitámos o que nos reúne, mas concluímos que nenhuma das pessoas à mesa conta reformar-se, todas estão mentalizadas para trabalhar até “ter de ser”. Não se trata de não acreditar, como acontece a muitas pessoas, na impossibilidade de ter uma reforma do Estado. Trata-se de saber que a mesma terá condicionantes e pode não chegar para as necessidades. Os que estavam à mesa têm todos filhos, alguns netos. Não éramos um grupo de gente nova, já se vê, somos todos crescidinhos e temos a noção de que filhos ou netos ainda precisam de nós. Importa correr atrás da bola. O meu amigo podia continuar a gozar o seu momento de descanso, refazer a sua vida com calma, mas está ansioso por ter coisas para fazer, por ter um rendimento.

A jovem que nos servia um lanche primoroso composto por queijo e chouriço assado vai este ano para a faculdade. Tem dezoito anos. Em vez de aproveitar a praia e o último Verão antes dessa coisa estranha que é passar a ser universitária, decidiu que queria trabalhar e está a ajudar num restaurante. Num momento de pausa, confessou-me: “Gosto de trabalhar, mas não queria fazer disto vida, é muito duro. São muitas horas de pé e num restaurante atura-se o melhor e o pior”. É com orgulho que a vejo afastar-se com um tabuleiro em perfeito equilíbrio. Talvez o orgulho seja maior por entender que há uma satisfação tremenda em ter o nosso dinheiro, fruto do nosso trabalho, e que esta jovem está a ter essa experiência. Com a idade dela, eu já trabalhava e nunca deixei de o fazer. Pergunto-me se conseguiria estar parada.

Uma vez, há muito, muito tempo, fui a uma aula de yoga. Foi a primeira e a última. E porquê? Os últimos minutos eram de relaxamento, de alheamento de tudo, “deixar a mente ir”, dizia o professor. Eu tive o meu momento Julia Roberts e acabei por abrir os olhos (odeio que me mandem fechar os olhos!), observar aquele grupo de pessoas que, aparentemente, estavam mergulhadas numa certa paz, deu-me um frenesim, levantei-me e saí. Seria eu capaz de resolver as minhas questões profissionais e abandonar-me a uma certa letargia? Não creio.

O meu amigo riu-se e acrescentou: “O drama é que a nossa geração gosta de trabalhar, fomos educados para isso. Passámos necessidades. Conquistámos com muito esforço. As novas gerações...” Olhei para a jovem a servir um casal que acabara de lamentar a inexistência de pratos de caracóis, e tive a certeza de que as novas gerações são como a nossa. Mais coisa, menos coisa.

Respect

Patrícia Reis, 16.08.18

 

O senhor doutor entende-me, não é verdade?

Ah, eu espero que sim.

Olhe que nunca pensei em ter de recorrer a estas coisas da psicanálise e da terapia, mas uma colega convenceu-me e a minha angústia é tão grande que achei melhor marcar uma consulta com urgência. A sua assistente foi de uma delicadeza sem fim, percebeu logo o desespero na minha voz, até me disse de que nada valia estar assim, que vou morrer e que preciso de canalizar as minhas energias para coisas positivas. Mal sabe ela, a sua assistente, o que eu faço para pagar as contas.

Há mais de vinte anos que escrevo sobre mortos. Não fique tão admirado. É um trabalho honesto. É, para ser sincero, a minha especialidade. Nos dias que correm já não escrevo sobre nada a não ser sobre os mortos.

Se o senhor doutor me disser um nome de um morto, pois decerto que escrevi o obituário e, posso dizer com certo orgulho, tenho livros publicados, sempre correctos, sem margens de risco para a difamação ou eventuais processos judiciais. Escrevi sobre quase todas as personagens importantes da nossa História.

As pessoas confiam em mim, sabe? As famílias. E contam tudo o que podem. Mostram os objectos, as cartas, os guarda roupas, as coisas mais íntimas. Muitas vezes, sou eu que faço censura. Claro que o editor não sonha que tenho informações sobre as quais não escrevo uma linha, mas que sabe um editor? Actualmente? Sabe pouco.

O que me custa mais, senhor doutor, é o arrivismo extremo da juventude que ainda não percebeu que a morte é algo respeitável e que lhes irá acontecer, mesmo que tenham um automóvel de marca ou uma namorada nova a cada quinze dias. Nada disso tem importância.

O que acontece, senhor doutor, é que é muito diferente escrever sobre os mortos, muitas vezes no próprio dia da morte, sob pressão, com os olhos de todos em cima de mim, todos à espera do meu texto. Muito mais fácil do que escrever sobre os vivos. Aqueles que irão morrer.

Pois, a minha ansiedade deriva desta lista que aqui tenho. Veja só o senhor o que me incumbiram de fazer até finais do mês de Junho. Estiveram fechados numa sala a ver quem tem mais probabilidades de morrer e depois, com um enorme desplante, entregaram-me a lista dizendo que deveria ser um alívio ter tempo para escrever sobre um putativo morto.

Não, não estou a brincar, o editor disse “putativo”. Não é uma palavra da minha eleição, mas... enfim, nem todos somos versados no melhor português e morte com palavras destas não andam bem de mão dada. Mesmo que isto pareça um cliché, terá de me perdoar, mas estou deveras perturbado. À cabeça da lista, como pode ler, está o nome dela.

Ora, foi ao ler o nome dela que eu entrei neste frenesim. Eu posso fazer os obituários que quiserem, de políticos a estrelas de cinema, mas da Aretha Franklin? Sabe quantas vezes eu canto “the moment I wake up...”... Todos os dias, senhor doutor, todos os dias.

Só seria mais dramático se o nome fosse o da Barbra Streisand, confesso. Sim, sim, todos temos os nossos fétiches, os nossos sonhos e momentos de euforia pessoal. Comigo são estas duas e, senhor doutor, não consigo. Simplesmente não consigo escrever a história de Aretha.

Não sei se está a par. Não tem tido uma vida fácil, agora está semi-retirada. Há três anos ainda a vi em Nova Orleães, comprei o bilhete on-line, estava cheio de medo que as coisas não corressem de feição, no entanto na hora lá estava eu e ela a cantar como mais ninguém. Trazia um vestido com as mangas rendadas. Eu sei que há homens que preferem as mulheres esqueléticas, cadavéricas. Aretha, para cantar como canta, preciso de ter peso, de ter caixa. Como as cantoras de ópera, de certa forma.

A revista Rolling Stone escreveu, há uns anos, que é a melhor cantora de todos os tempos. Eu subscrevo. Gosto especialmente de a ouvir cantar o que começou por ser o seu chão, o gospel. É uma forma de conversar com Deus e, quando a ouvimos, Ele fica mais próximo e acreditamos, mesmo quando não somos crentes.

Em Memphis, onde ela nasceu, pois o gospel era obrigatório e Aretha não tardou a ser solista. Daqui até à fama foi um salto. O Estado de Michigan declarou a voz desta deusa como uma das maravilhas naturais. É a rainha da soul, a rainha do gospel, a rainha. Olhe, é tão importante, que é a primeira mulher a ter conseguido chegar ao Rock & Roll Hall of Fame. Tem dezoito grammies. E mais uma série de prémios que não vale a pena enumerar. Está a olhar para mim um pouco alarmado? Cristo! Não sabe quem é Aretha?

Espere lá... Gosta de George Michael, aquele rapaz que é constantemente apanhado em casas de banho a assediar outros rapazes? Pronto. Aí tem: Aretha gravou com ele o “I knew you were waiting for me”. Não está a ver? Certo. Deixe ver se eu consigo cantar um bocadinho...

Like a warrior that fights
And wins the battle
I know the taste of victory
Though i went through some nights
Consumed by the shadows
I was crippled emotionally
Somehow i made it through the heartache
Yes i did. I escaped.
I found my way out of the darkness
I kept my faith (i know you did), kept my faith

When the river was deep i didn't falter
When the mountain was high i still believed
When the valley was !ow it didn't stop me, no no
I knew you were waiting. I knew you were waiting for me

With an endless desire i kept on searching
Sure in time our eyes would meet
Like the bridge is on fire
The hurt is over, one touch and you set me free
I don't regret a single moment, no i don't looking hack
When i think of all those disappointments
I just laugh (i know you do), i just laugh

When the river was deep i didn't fairer
When the mountain was high i still believed
When the valley was low it didn't stop me
I knew you were waiting. I knew you were waiting for me

So we were drawn together through destiny
I know this love we snared was meant to be
I knew you were waiting, knew you were waiting
I knew you were waiting , knew you were waiting for me

 

Acha mesmo que tenho boa voz? Já a minha mãe, Deus a guarde, dizia o mesmo. Eu dediquei-me a esta coisa da escrita e fiquei por aqui. Não é uma escrita qualquer, está a ver? Escrever sobre os mortos é importante e a fronteira entre a elegância e o macabro pode ser ténue. Não imagina o que eu passei para escrever o obituário da Withney Houston. Coitadinha. Estava disposta a recompor a sua vida... Era sobrinha da Dionne Warwick.

Outra que está aí na lista e eu não consigo, não consigo, garanto, escrever uma linha sobre as pessoas como se elas já tivessem ido. É de mau gosto.

Se me pedirem para escrever sobre a Marilyn Monroe? Faço as páginas que me pedirem, acho que sei mais da loira burra, que não tinha nada de burra, que muita gente. Há uma série de televisão muito interessante, está a passar agora. Já viu? Chama-se Smash. A ideia é fazerem um musical com base na vida de Marilyn. Estou ali a ver, na sala com a Mimi, a minha gata, e fico com os nervos em franja só com os disparates que dizem sobre a senhora.

Com Aretha, tenho de ser honesto, nem sei por onde começar e, depois de a ter visto cantar, acho que preferia que outro colega lhe escrevesse o obituário. Sim, não fique aí a pensar que sou só eu a escrever sobre os mortos. São sete cães a um osso. E nos dias de hoje, a competição é ainda mais estranha. Eu tenho um certo estatuto e tal, talvez por isso me tenham dado a lista. Como é que lhes vou dizer que posso escrever sobre todos menos sobre a Aretha?

O senhor doutor, diga-me, que comprimido é que devo tomar?

 

(conto escrito em 2013 para a colecção Divas cujo selecção musical esteve a cargo de Rui Vieira Nery)

 

Parabéns à Madonna, parabéns a todas as mulheres

Patrícia Reis, 16.08.18

O que é que aborrece na Madonna? Não me digam que são os 15 lugares de estacionamento, por favor. Se me disserem que são os 300 milhões que terá, fortuna estimada por revistas da especialidade, e que a inveja vos rói enquanto fazem o euromilhões desta semana, pois estou convosco.

Para muitas outras pessoas o que aborrece na Madonna é o facto de ser dona e senhora do seu nariz desde que surgiu na cena musical. Não aprendeu a dizer que não e a rebelar-se contra o sistema com a idade. Surgiu com "Like a Virgin", já a dizer que não aturaria muito do lixo machista que por aí singra. Fez uma carreira sem grande voz mas com imenso talento para parcerias e mega produções.

Tornou-se incontornável, assumiu-se como um porta-estandarte da causa feminista e fez um pouco mais: disse alto e bom som que gosta de sexo, de prazer, de fazer o que lhe dá na real gana e que não deve explicações a ninguém. Incómoda? Faz-me lembrar um marido a dizer à mulher que ela precisa de aprender a não ser tão acintosa. Madonna grita-nos há mais de trinta anos que o podemos ser: acintosas, barulhentas, refilonas, capazes, poderosas, livres.

 

A artista expôs a sua vidinha muito tempo antes de andarmos a brincar às vedetas e as vidas felizes nas redes sociais. Expôs o bom e o mau, o corpo e as emoções, os desgostos de amor e esta mania terrível de dizer que ser mãe é ser também feliz (embora seja a profissão mais difícil do mundo).

Devemos à Madonna - como a tantas outras, bradarão para aí e com razão - uma ideia de mulher mais livre e isso faz de nós, mulheres, parte integrante desta chegada aos 60 anos da cantora. Sim, ela que não se importa de não pintar as raízes do cabelo, que deve ter feito um ou outro ajuste à cara e que tem o corpo pelo qual muitas mulheres (e homens) suspiram, também é condenada pela passagem do tempo.

Não há nada de simpático nessa inevitabilidade biológica - tudo a cair, tudo a enrugar -, mas o que importa verdadeiramente? Talvez seja o dia de hoje, o momento. Madonna parece estar bem consigo, com os filhos pequenos que adoptou, com a cidade onde escolheu viver, esta Lisboa que será impressa obrigatoriamente no próximo disco da super mega estrela.

Ela vende mais discos do que qualquer outra mulher e tem vários recordes. Chateia muita gente o facto de ainda cá estar, já o disse publicamente em diferentes situações, mas não creio que seja a idade a vergar a vontade absoluta de engolir o mundo, percebê-lo antes de tempo e reinventar-se a si mesma para pasmar o mundo e a todos nós.

Inscrever na faculdade... Para quê?, perguntam eles

Patrícia Reis, 26.07.18
Fui à faculdade entregar um papel e falar com o meu orientador de mestrado tendo ficado dentro de uma maré de estudantes ávidos de apresentarem as suas candidaturas ou apenas impacientes para ter respostas às mil perguntas. Sentei-me na cafetaria, lugar genial para quem gosta do exercício observação sociológica. Sim, sentei-me a ouvir as conversas dos miúdos à minha volta, sem qualquer pudor, dirão, e eu concordo.
 

“Eu nem sei se vale a pena...”, suspira uma jovem de telemóvel em punho, naquela atitude semi distraída em que anda meio mundo, entre a realidade e as redes sociais. “Eu safava-me se fosse trabalhar”. E a amiga, cabelo comprido, sorriso meigo, responde-lhe com rapidez: “Sim, sim, vais parar a uma loja, trabalhas que nem uma escrava e ganhas uma miséria para todo o sempre”. E a partir deste mote, os outros rapazes sentados à mesma mesa, três miúdos com 18 ou 19 anos de idade, fungam e explicam que trabalhar não deve ser tão mau assim, pior mesmo é pensar que em outubro voltam aos estudos. “Eu cá dispensava ter mais professores e mais livros”, diz o moço à direita, chupando um cigarro com afinco. E a conversa mantém-se neste tom, sem grande entusiasmo, sem alegrias excessivas. Uma das raparigas interroga-se: “Inscrever na faculdade... Para quê?”

O meu lado maternal podia entrar em acção e contar-lhes como a vida é dura e tal, como o mercado de trabalho é cada vez mais árduo e a importância extrema de uma formação digna desse nome. Podia, mas fiquei calada. Um dos rapazes apanhou um livro que deixei cair, sorri, agradecendo. “Vida de estudante...”, comento, pegando em mais livros para abandonar a mesa do café.

Ficaram a olhar para mim, a ver-me ir à vidinha. Terão ficado a pensar que já não tenho idade para estas andanças e eu a pensar que não sabem a sorte que têm. Podem ainda desfrutar deste tempo. Muitos dos novos universitários terão o entusiasmo que faltava a estes com quem me cruzei. E terão trabalhado muito para chegar a este momento de inscrições. Ainda bem. Conheço adolescentes que roeram unhas à espera da nota dos exames nacionais, que fizeram melhoria de nota, que querem muito – com empenho e compromisso – estudar, fazer uma licenciatura e a seguir mestrado (muitos sabem que não irão a lado algum somente com uma licenciatura). É o tempo deles, de se prepararem, de perceber que o futuro se constrói com estratégia e que tomar decisões nesse sentido é o maior acto de inteligência que existe.

Bem-vindos ao fascismo. O que tenciona fazer? Acatar ou resistir?

Patrícia Reis, 21.06.18
Não basta comentar o estado do mundo. Importa saber como organizar uma resistência eficaz e combativa face ao início desta realidade drástica: existem países cujo modelo político adoptado é fascista. Não existe outra palavra: fascismo. Não podemos assistir em transe, como se estivéssemos numa máquina de viajar no tempo, o reviver de situações similares às que vivemos nas décadas de 30 e 40 do século XX.
 

Os Estados Unidos da América, na sua política de tolerância zero à imigração, é um país que coloca crianças em jaulas, separa-as dos pais, algumas são dadas como desaparecidas. Tal como nos campos nazis, esses contra-monumentos, como lhes chamou Vergílio Ferreira depois de visitar Dachau, os funcionários são instruídos para se absterem de contacto físico com as crianças. Não há espaço para o afecto. O que os move não é o consolo e a rápida solução para estas crianças, com dignidade, é o racismo. Não há outra forma de entender.

Jornalistas como Raquel Maddow choram em directo na televisão ao receber notícias sobre estas crianças enjauladas e ficam incapazes de continuar a ler o que lhes acabou de chegar. Os comentários nas redes sociais sobem de tom. A mulher de Donald Trump reclama como se tivesse espaço ou credibilidade para o fazer e o seu marido, tão amigo do senhor Putin, assobia para o lado e manda retirar os Estados Unidos do Conselho dos Direitos Humanos a pretexto de não fazerem justiça àquilo que deveriam representar. A sério?

A resistência durante a segunda guerra mundial fez-se em vários palcos, mais ou menos organizados. Importa que a Europa possa fazer resistência ao que se passa do outro lado do Atlântico? Importaria se a Europa fosse forte, consolidada nos mesmos princípios e valores, unida e coesa, como foi o sonho dos fundadores da união europeia. Não é.

Infelizmente, alguns países europeus caminham para o mesmo tipo de política que se pratica sob a batuta do senhor Trump. Racismo, xenofobia, discriminação. Itália, Hungria e quais serão os países que se seguem?

Portugal, no seu esquema eterno de brandos costumes, não tem voz política para liderar qualquer resistência, bem sei, mas é pena. Não creio que a diplomacia seja a chave para resolver o nosso futuro. A pergunta impõe-se: que futuro queremos? Um futuro de gente branca para um lado e o resto em jaulas? Não vimos já o resultado destas políticas?

Numa entrevista ao Jornal de Negócios, Franco Berardi, o filósofo italiano, afirma: “A solidariedade é a maior ameaça para o capitalismo financeiro. A solidariedade é o lado político da empatia, do prazer de estarmos juntos. E quando as pessoas gostam mais de estar juntas do que de competir entre si, isso significa que o capitalismo financeiro está condenado. Daí que a dimensão da empatia, da amizade, esteja a ser destruída pelo capitalismo financeiro”.

Na vertigem do mundo, é urgente parar, pensar e agir para nos salvar, para nos restituir a dignidade, para que o século XXI não seja mais um século de horror na História.

engana-me que eu gosto

Patrícia Reis, 14.06.18

Esta semana deparei-me, numa rede social, com uma publicação patrocinada de mais uma aplicação de localização de pessoas. A mesma é vendida com a palavrinha “safe” associada. Ora, bem sei que vivemos tempos negros e que as questões de segurança são hoje mais pesadas do que em tempos idos, mas há algo de imoral e pouco ético nesta ideia de que possuímos o direito de “seguir” as pessoas de quem gostamos.

Seguir por amor? Não, por controlo. E controlar o outro, localizá-lo minuto a minuto no seu dia-a-dia, ter acesso ao histórico dos seus movimento (promessa da dita cuja aplicação) é uma forma de censura e não um princípio saudável. Confiar no outro é crucial? Para alguns de nós sim, para outros nem tanto.

Se fizermos um bom exercício de memória e formos honestos, sabemos que todos temos, filhos ou parceiros(as), certas coisas que são só nossas. Precisamos de autonomia, de silêncio, de privacidade e de certos segredos, por ser inerente à nossa condição humana. Quem não mentiu aos pais? Quem não omitiu? Esse processo de conquista de autonomia fez-se sempre, creio, destes caminhos, porventura menos “limpinhos”, mas urgentes para alcançarmos o outro lado da vida. Chama-se crescer.

Andar atrás de saber o que os filhos fazem, a toda a hora, muitas vezes sem o conhecimento dos mesmos, controlando com uma ferramenta digital que garante que é para a sua segurança é uma bizarria e é desonesto. O mesmo se aplica aos maridos e mulheres que, em vez de praticarem de forma veemente a confiança, vão para o outro lado das coisas.

Há uns anos, uma mulher que era idiotamente controlada pelo marido (ele via os seus sms, lia os seus emails, controlava os seus gastos tendo acesso à sua conta bancária) disse-me: “Como ele não confia em mim, vou arranjando outras formas de fazer as minhas coisas. O princípio de funcionamento do nosso casamento é o 'engana-me que eu gosto'. Se ele não gostasse de ser enganado não fazia estas coisas”. O casamento terminou há uns meses. Eu não me surpreendi.

Que moral existe na perseguição do outro? Como se pode legitimar essa perseguição e controlo invocando conceitos amorosos, palavrinhas que derivam do tal “safe”, de amor e cuidados constantes? Não se pode.

Parece que a dita aplicação, que se apregoa como sendo muito melhor do que um sistema sinistro de invasão e espionagem, é um sucesso de vendas. Perante estes dados, admito que fico surpreendida. Talvez seja ingenuidade minha, aceito que o seja.

Que mundo é este? Não o reconheço. E quando os discursos se inflamam sobre a privacidade, a intimidade, os direitos básicos de cada um, pelo menos por padrões ocidentais, parece que vivemos numa bipolaridade ou numa esquizofrenia: queremos liberdade para nós, não damos liberdade aos outros. Que é como quem diz: não faças o que eu faço, faz o que eu digo, porque a teoria que se apregoa é lindinha e sustentada em bons princípios. A prática? Ah, muito haveria a dizer sobre isso mas não há tempo.

me, myself and I

Patrícia Reis, 13.06.18

Vivo para admirar a malta que tem egos mexidos e auto marketing. É um chuto na tola, mas temos de admirar essa capacidade imensa de se venderem, como se estivessem vestidos faustosamente, cheios de brilho verdadeiro (diamantes e não zircões; Armani e não H&M, só para contextualizar) e que, como reza a história do rei, pois estão nus, nuzinhos, em pêlo. Nada a oferecer a não ser bazófia. Existem nos diferentes géneros, porventura em diferentes raças e galáxias. E eu pasmo perante a forma como se vendem e como alguém compra. Como se mantêm sem qualquer sustento moral ou humanista. Mascam pastilhas com a boca aberta, não colocam a mão à frente da boca quando bocejam? Sim, isso também, mas isso são regras que ficam com o chá de pequenos, que uns beberam, outros não. Deve ser por estas e por outras que uns têm pedigree e outros têm cadastro, nem é curriculum. Isto tudo porquê, Senhor, se é feriado em Lisboa? Um passeio nas redes sociais pela manhã, outro pelos jornais e fico neste estado de alma parva que me dá para estes textos que não têm qualquer capacidade de mudar o mundo, mas que me dão uma certa paz. O meu marido dirá: on a mission to civilize the world, frase que gamámos ao Newsroom, série que talvez não tenha tido o sucesso que merecia. Agora, já se faz tarde, e vou ali trabalhar, quer dizer, atacar a minha dissertação de mestrado que eu cá não vou embelezar o meu CV só para efeitos públicos. Bom feriado, gente.

eu sei que vou te amar

Patrícia Reis, 12.06.18

Não é uma música do Chico Buarque, tão pouco este a cantou nos concertos de há dias em Lisboa e no Porto, mas foi assim, a cantarolar a canção de Tom Jobim, que saí do Coliseu dos Recreios depois de duas horas da melhor música do mundo. Passaram-se dias, e não me sai da cabeça.

Em vez de nos esmagar com canções que sabemos cantar menos bem, aquelas que compõem o novo disco ou o seu percurso mais longínquo, o artista optou por um alinhamento musical tecido com inteligência e cuidado. E houve tempo para as novidades, para os clássicos, para os ultra clássicos e para a homenagem ao grande Wilson das Neves, a quem o concerto é dedicado.

Houve alegria e comoção de Chico Buarque que foi também a nossa alegria e comoção.

É preciso amar um artista que nos dá o seu melhor e, nesse aspecto, Chico chegou inteiro para se entregar.

E o público português aplaudiu, assobiou, elogiou, atirou cravos para o palco e bateu com os pés nos estrados de madeira, provocando aquele som único que só o Coliseu permite. Sim, o público português quando é generoso é muitíssimo generoso.

Amamos o Chico. Por parecer pouco vedeta, por ser o homem que compõe canções que enriquecem a nossa banda sonora de vida, por escrever aqueles versos que, de repente, são nossos, contam a nossa história, ou nos fazem pensar que talvez seja possível cair “na contramão atrapalhando o tráfego".

Não é possível viver sem música. E a música brasileira tem - sempre teve - um lugar especial para nós. Não é só país irmão, a aproximação da língua (até porque a riqueza do português do Brasil é, tantas vezes, surpreendente), é por termos assim o condão de garantir um gingado que, naturalmente, não possuímos e que a música popular brasileira nos oferece sem regras. Mexemos o corpo (sim, não chegamos a sambar, mas mexemos o corpo), cantamos a plenos pulmões mesmo que seja ingrato acompanhar alguém como o Chico.

Para mim, a música brasileira é a minha mãe, ela que ouvia o disco em vinil do concerto ao vivo do Chico com o Caetano, de 1972, como quem respira, sempre em loop; ela que sabe as letras todas; ela que não desafina; ela que pede emprestado às letras pequenas graças que aplica no dia a dia. Há uns anos, num outro concerto, a minha mãe desatou a chorar. A minha mãe chora pouco, portanto a minha aflição foi imensa. Não chorava de tristeza, chorava de alegria pela música, por estar ali, por aplaudir vários músicos absolutamente excelentes.

No concerto do Chico Buarque, no fim de semana passado, chorámos as duas um bocadinho. Creio que a maioria das pessoas no Coliseu chorou um bocadinho e, nessa união, quase que pedimos para que o Chico não "deixe em paz meu coração", porque é todo dele.