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Delito de Opinião

Avª. da Liberdade, 1

Leonor Barros, 13.12.19

O Luís é um reaccionário incorrigível, detesta a Greta Thunberg ao ponto de não retorno, é sempre do contra, porque ser do contra é a sua natureza indomável feita de mares e marés, luas e cartas de navegar vidas e mulheres e cidades. Paradoxalmente ou não, é dono de uma escrita única, tão simples e tão complexa, como a sua natureza revelada sem pudores entre letras. Para quem se habituou a ler blogues, o Don Vivo é um caso sério de persistência, resiliência e longevidade. Para quem gosta do toque, do cheiro, da sensualidade do papel, pode agora lê-lo em livro. É o que vou fazer e sei que não me arrependerei. 

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Pré-lançamento hoje na Ler por aí... 

 

Sónia Ribeiro, 37 anos

Leonor Barros, 26.11.19

Não havia se não leveza naqueles dias a sul. O calor, o abandono dos corpos, o arremessar das tarefas quotidianas, o fardo das obrigações que via Guadiana abaixo, e o meu pai que imaginava naquele mesmo lugar e a quem sempre homenageei na intimidade de mim. Depois saíamos para jantar e sentávamo-nos na esplanada do restaurante a servir de pasto para as melgas, e paradoxalmente felizes e gratos por tudo. A mulher servia-nos quase sempre. Era alta, de cabelo negro comprido sempre amarrado num rabo-de-cavalo longo que abanava quando ela se deslocava entre as mesas e que obedecendo à gravidade se estendia como um pêndulo no corpo esguio e magro. Tinha olhos negros aos quais não era fácil arrancar um sorriso, tinha uma irmã com filhos e tratava as crianças da casa com intimidade. Não havia suavidade no seu trato. Havia rispidez e eficiência, rapidez e pouco tempo para conversa mole. A mulher trouxe-me muitas vezes a felicidade nas fritadas de peixe, só por isso poderia subir ao meu Olimpo, nas sardinhas alimadas ou albardadas, nos bifes de atum com pores-do-sol rubros e o casario incendiado da luz que se crepuscula na Espanha na outra margem. A mulher forte e incansável era também os dias a sul. Um dia de maio a notícia soou 'mais uma', e o pressentimento de que poderia ter sido a mulher do cabelo longo, dos olhos negros, a mulher-mãe, a mulher jovem e esguia tão resoluta e eficiente, com uma vida pela frente. Não lhe sabia o nome até então. "Sónia Ribeiro, 37 anos, Vila Real de Santo António, no Algarve. Foi a filha mais velha, de 16 anos, que a encontrou ao fim da manhã, pelas 11h30, quando regressava da escola. (...) O corpo, caído no chão, tinha pequenas perfurações no peito e uma maior perto do coração, que se soube mais tarde terem sido feitas com um picador de gelo, quando Sónia já estaria morta por asfixia." O meu sul nunca mais será o mesmo. O dela deixou de ser.

 

Em memória da Sónia Ribeiro.

Crónica da região saloia

Leonor Barros, 05.09.15

Entram dois homens que entabulam de imediato conversa: "E tu estás com quantos anos? 86?" O outro diz que sim. Começa também a fazer contas sobre a idade do companheiro. "Ah pois atão". E eis que salta um terceiro ausente à conversa, um tal de João que é um ano mais novo, mas, que, segundo os dois está muito pior que ambos. 'Na faz nada' argumentam. O de 86 tece uma série de comentários sobre a importância de se manter activo e sai-se com uma máxima que me me fez sorrir "Rir é viver. Chorar é morrer" disse peremptório e atirou-me quando me viu sorrir "É ou não é verdade?" Concordei claro. Além de ser verdade e de descrever na perfeição o que sinto em relação à vida, que os deuses me livrassem de discordar de tão assertiva personalidade num corpo alto e ágil que não deixava adivinhar as décadas percorridas. Daí até desfilar argumentos em defesa da vida activa foi um pulinho "Ficam aí parados e depois vão à 'fisoterapia'. Sabes qual é a minha 'fisoterapia'? É assim ó, para cima e para baixo na horta. Essa é que é a minha 'fisoterapia'." E já que veio a horta ao barulho discutiram fervorosamente o andamento da de cada um, O mais baixo reclamava que a batata doce estava muito funda, uma 'trabalhera', claro que a culpa era dele 'puseste-a muito fundo',  atirou-lhe o alto, 'na foi nada. Ela é que cresceu pra baixo e ficou funda' discordou o baixo. Os saloios jamais concordarão enquanto tiverem voz para teimar. E têm uma voz de duração longa e convicções férreas no que se trata a não dar razão ao outro, seja lá qual e quem for esse 'outro'. Finda a querela da batata doce, mudámos dos tubérculos para os cereais. O mais alto vangloriava-se de ter o melhor milho 'daqui até as Caldas da Rainha' e o pomo da discórdia foi a razão da exuberância do milho. E ó se discutiram. Era da água. 'Na é nada!' Era da terra? 'Né nada da terra!' Vim-me embora entretanto. Como dizem os alemães e se não morreram, são vivos ainda, que é como quem diz, se não se calaram entretanto, ainda lá estarão a discutir o milho entre o Dulcolax e o Paracetamol, o Aminoxil e o Trifene 200. Deve ser também isto a que chamam 'vida activa'

De cabeça erguida

Leonor Barros, 10.07.15

Tenho andado aqui a digerir a polémica em torno do aparecimento da mulher de Passos Coelho sem cabelo e sem peruca num evento oficial. Confesso que a minha primeira reacção foi 'caramba, mas ela não podia ser mais discreta? Há alguma necessidade de se expor desta maneira?' Depois disto, recolhi-me no meu canto, ouvi opiniões sem fim, que como se sabe somos muito opinadores, e comecei a pensar que o desconforto era mais meu, meu apenas pelo horror que sempre me provocam estas situações. Infelizmente não faço parte daquele leque de pessoas preparadas a priori para lidar com a doença e a degradação e sei bem como se morre de cancro, sem essa história ridícula de chamar a todos guerreiros. Cada um luta como sabe e pode. Acredito piamente que todos lutarão enquanto souberem que vale a pena e que sentirão quando chegou o momento de descansar, não de desistir. Descansar. Não vejo razão por que a mulher do PM se há-de cobrir. Tem cancro. Assumiu. Não tem de ficar em casa para nos poupar ao desconforto e não tem de usar peruca pela mesma razão. A vida é o que é.Tiro-lhe o chapéu pela coragem, isso eu sei, porque se tal me acontecesse/acontecer duvido que deixasse que alguém em público me visse careca. 

Nada teu exagera ou exclui

Leonor Barros, 03.07.15

Para que conste. Nada me choca que Eusébio esteja no Panteão, só me incomoda porque aquilo não tem um ar nada confortável, é tudo muito mármore, branco e ascético, muito frio e deve haver poucas farras, como o Eusébio gostaria e que se saiba a Amália também era rapariga para alinhar numas festas e cantorias. Sou contra qualquer visão elitista da vida. Não acho que um escritor possa, a priori, valer mais do que um futebolista ou uma fadista. Ai de nós se as margaridas rebelo pinto desse mundo granjeassem um lugar na casa dos deuses apenas pelo seu epíteto e ai de nós se, a juntar-se aos que já lá estão, fosse aquela a última morada dos tonis carreiras deste canto luso apenas porque há que garantir quotas e igualdade de género. Os portugueses são feitos de muitos, e nesses muitos, cada um se destaca e se ergue sobre os demais pela sua grandeza, igual se escritor, futebolista ou artista plástico, igual se andou a jogar futebol com uma bola de trapos ou a estudar francês e a tocar piano. Como diria um poeta e um homem grande 'para ser grande, sê inteiro'. É quanto chega, mas nem todos lá chegam.

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Delitos poéticos (23)

Leonor Barros, 23.07.14

 

 

Some men never think of it.

You did.

You’d come along

And say you’d nearly brought me flowers

But something had gone wrong.

 

The shop was closed. Or you had doubts -

The sort that minds like ours

Dream up incessantly. You thought

I might not want your flowers.

 

It made me smile and hug you then.

Now I can only smile.

But, look, the flowers you nearly brought

Have lasted all this while.

 

Wendy Cope

 

 

 

Imagem: Diego Rivera, "Nude with calla lilies"

A eloquência desta gente é igual à sua competência

Leonor Barros, 03.01.14

Blogue da semana

Leonor Barros, 03.11.13

Raramente concordamos. Politicamente não concordamos vez alguma mas o que mais gosto neste discordar é o nosso pacífico e sempre civilizado concordar em discordar. Concordamos algumas vezes aqui, e partilhamos um gosto semelhante em prazeres mundanos de garfo e faca. E, depois, já o terei dito algumas vezes, gosto de blogues despretensiosos, na mesma medida em que prefiro pessoas sem manias às que se sentam na cátedra blogosférica à espera de aplauso. E gosto de blogues ao ritmo da vida. Hoje um pensamento esparso, amanhã um texto mais longo, uma fotografia, um pensamento, muitos mundos lá dentro. E gosto de ouvir os homens a pensar, esse mundo relativamente hermético para uma mulher ocultado em silêncios longos e distantes. Apresento-vos o meu blogue da semana: Don Vivo.

Livros de cabeceira (14)

Leonor Barros, 02.11.13

 

“At the end of a school day you leave with a head filled with adolescent noises, their worries, their dreams. They follow you to dinner, to the movies, to the bathroom, to the bed.”

Frank McCourt, Teacher Man.

 

O malogrado Frank McCourt da minha querida Ilha Esmeralda não poderia ter descrito melhor este mester de se ser professor. No fim do dia são os momentos falhados, as frustrações de se saber que talvez se pudesse ter feito melhor, as expressões do olhar. Ontem trouxe uma dessas para casa, agarrada a mim, os olhos aflitos da rejeição, as lágrimas quase a saltar. E estarão comigo. Seguem-me. Perseguem-me. E depois há os momentos bons, plenos, conseguidos e que dão sentido à profissão, um sorriso, um caminho bem trilhado, uma aula bem-sucedida e o sorriso que fica quando abandono a escola, atravesso a estrada e julgo que assim a deixei lá, os deixei lá, enganando-me a mim própria.
A minha mesa-de-cabeceira é ecléctica. Nunca tem apenas um livro e reflecte sempre o que sou: professora, mulher, leitora curiosa que paira por vários sítios, escolhe um poiso temporário e parte para outras paragens. Tenho entre mãos os manuais de Alemão, um livro de sugestões didácticas e, por fim, um empréstimo de uma colega, A Purga sobre a história de duas mulheres que se cruzam na Estónia depois da queda do Muro de Berlim, um dos meus momentos preferidos da História. Para a semana mudarão. Manter-se-á A Purga, vou sensivelmente a meio, e outros substituirão os manuais. Sou muitas e nunca sou a mesma.

O que estou a ler (7)

Leonor Barros, 21.07.13

Não há nada tão determinante num livro como as primeiras linhas ou as primeiras páginas. Em tempo de esbulho e saque e com o inevitável ajustamento das minhas finanças o exercício que faço para me decidir se o livro é merecedor dos euros sobejantes é o de ler o primeiro parágrafo. Quando pedi o livro emprestado o aviso foi peremptório Essas primeiras cenas são horríveis. E eram. E são. Escritas com um enorme realismo e sem pudores bacocos oscilamos entre parar ali ou ultrapassar aqueles primeiros horrores para acompanhar Jorge. Resolvi acompanhá-lo. Até agora não me arrependi. Um bocado ensimesmado, é verdade, aquele tal episódio declarou-lhe uma existência reservada e sofrida, feita de silêncios grandes no casarão algures lá para os Algarves onde habita com as Manas, suas fiéis zeladoras e das lides domésticas e outras da mansão, Samuel, e D. Rosa. Quando um dia, Sarah, uma escritora excêntrica aventureira e a viver no limite, se muda lá para casa, tudo muda. E muda ainda mais quando surge em cena Biafra, ávido por uma chantagem. E quando mais personagens se juntam para adensar a trama. E mais não digo.

Depois da desilusão de Mazagran e da paixão imediata e irrevogável – boa palavra – por A Amante Holandesa, este Mentiras & Diamantes de José Rentes de Carvalho tem um ritmo alucinante, uma deambular incessante entre mundos, palavras sem rodeios, e personagens fortes que não conseguimos esquecer. Lê-se com prazer. Cavalgam-se páginas para saber mais. Nesta minha nova condição de comprar livros de seis em seis meses, um Rentes de Carvalho será merecedor dos parcos euros. Só posso recomendar.

 

 

E agora passo a leitura ao Luís Menezes Leitão. Que andará ele a ler?