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Delito de Opinião

Jingle Bells

Ana Vidal, 23.12.18

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Há os fanáticos do Natal, que todos os anos são os primeiros a manifestar-se.

 

Contam os dias para começar enfeitar a casa e logo a meio de Novembro, mal aparecem nas televisões os primeiros vislumbres de publicidade a brinquedos e perfumes, ninguém os detém. Trazem das lojas de chineses toda a parafernália necessária a um Natal colorido e brilhante: pais-natais trepadores de saco às costas, panos vermelhos com uma estampa do Menino para pendurar nas janelas, árvores desmontáveis de escovilhão verde, bolas de todos os tamanhos e cores, purpurinas, sprays de neve, autocolantes para os vidros, frisos, velas, luzes intermitentes, caixas mecânicas que tocam músicas de Natal em non-stop, napperons de papel brilhante, figuras de presépio, barretes com leds e bandoletes com hastes de rena, papéis de embrulho e fitas para os presentes que rodearão a árvore de Natal. Montam o presépio e a árvore com um entusiasmo de crianças, fazem bolos e pratos tradicionais para a noite da Consoada em família. Deixam-se imbuir de uma beatitude que suspende, por umas semanas, a ira e o cansaço dos dias comuns. Deslumbram-se com as ruas enfeitadas, tiram selfies com o Pai Natal de serviço. Disparam alegremente vídeos e postais de Natal em emails e mensagens nas redes sociais. Oferecem-se para acções de voluntariado, são solidários e empáticos como nunca, distribuem sorrisos e estão dispostos a perdoar o mundo. Chegam ao Natal exaustos mas felizes.

 

Há os ansiosos do Natal. Entram em stress logo aos primeiros acordes de um jingle bell, antecipando o caos: as intermináveis filas nas lojas e nos supermercados, o dinheiro extra que vão gastar, o excesso de trânsito, o crash do cartão de crédito, a correria para comprar todos os presentes, a falta de imaginação para dar presentes que não sejam iguais aos do Natal anterior, a casa por enfeitar, a pressão das crianças com listas de desejos impossíveis, a insinuação insistente de Popotas e Leopoldinas, o olhar crítico dos voluntários de associações de solidariedade perante a recusa de uma contribuição. Arrastam-se pelos centros comerciais como quem caminha para a forca. Chegam ao Natal exaustos e em estado de internamento.

 

Há os deprimidos do Natal, que se distinguem dos anteriores por uma crescente aversão a tudo o que nesta época os lembre de quem já morreu ou se afastou, de que envelheceram, de que estão sozinhos ou mal acompanhados, de que cristalizaram numa infelicidade cultivada, alimentada a anti-depressivos. Chegam ao Natal exaustos e profundamente infelizes.

 

Há os snobes do Natal, que fazem questão de afirmar publicamente a sua total indiferença, ou mesmo repulsa, por festas religiosas ou populares. Desprezam tudo o que cheire vagamente a Natal, reviram os olhos e encolhem os ombros de enfado. São impermeáveis ao espírito da quadra, gostam de mostrar-se desalinhados. Concedem, quando muito, numa árvore de Natal monocromática, de designer, de preferência integralmente preta. Chegam ao Natal devidamente enfastiados.

 

E há o Natal.

Pensamento da semana

Ana Vidal, 08.04.18

 

Conselho para troianas incautas

 

Se lhe aparecer pela frente um macho alfa fi da mãe com uma conversa beta e kapa de bonzinho, csi arma em parvo, traz a gama completa de vícios e se comporta como um iota, esqueça os teta têtes e tau, não o sigma. Vá por mi: fuja delta a sete pis ou corra-o à lambda, antes khi ele lhe faça a vita num omega inferno, se veja grega e ainda acabe no psi.

 

Este pensamento acompanhou o DELITO durante toda a semana

Cepa torta

Ana Vidal, 08.02.18

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Engraçado, não nos livramos da hipocrisia nem à bala. Nem da incoerência, já agora: as mesmas pessoas que aplaudem entusiasticamente o facto de o movimento "metoo", denunciando casos de assédio e abuso sexual, tenha tido uma projecção mediática estratosférica, tenha explodido numa cerimónia pública e sido encabeçado por figuras conhecidíssimas, vêm agora condenar prontamente a denúncia de Lobo Antunes contando o seu próprio caso de abuso, portanto sobre o mesmíssimo tema, e igualmente numa cerimónia pública. Por causa disso já lhe ouvi chamar gagá, inconveniente, incontinente mental, ofensivo, exibicionista, etc.  

E pasmo. Será por ser homem? Será por ser uma figura tão amada como odiada no meio literário, mas seguramente invejada pela liberdade de dizer tudo o que pensa e sente, doa a quem doer? Será por ter sido perante uma plateia de crianças, como se não fossem precisamente essas que devem ser alertadas para estes perigos? Será por ter "embaraçado" o Presidente da República, ingrato, depois de este lhe ter chamado Genial? Não entendo. Ou entendo bem demais, no fundo. É a velha fórmula que nos faz ser pequeninos desde sempre: tudo o que se passa "lá fora" é bom, mas se alguém se atreve a fazer o mesmo dentro de portas, agitando as águas e incomodando os brandos costumes, aqui d'el rei que devia era estar calado.

O céu a seu dono

Ana Vidal, 23.07.16

En garde!

Ana Vidal, 15.07.16

Schopenhauer tem uma frase extraordinária, qualquer coisa como isto (cito de cor): "Quando não tenho nada que me angustie, é isso mesmo que me angustia". Não é possível inverter-lhe o sentido. Quando nada conseguimos ver que nos anime, não será nunca o desânimo a fazê-lo. E, a somar aos de cada um, motivos de desânimo colectivo não nos faltam hoje em dia, múltiplos, imprevisíveis e cada vez mais sinistros. Não é preciso procurá-los, não é preciso imaginação ou patologia especiais para estarmos infelizes. A depressão é a marca de água do nosso tempo.

Vivo a tentar contrariar esta tendência generalizada, não quero deixar-me dominar por um pessimismo descrente de tudo, que me dobre ao meio e me paralise. Até quando o conseguirei, não sei. A lucidez é a maior inimiga da alegria, e nem sequer falo em felicidade. Mas recuso, pelo menos enquanto tiver forças para isso, depor armas perante os monstros que rondam diariamente. Faço-o com total consciência, teimosamente, sem o bálsamo que seria alhear-me da realidade. Às vezes preciso de algum malabarismo para iludir-me, outras sinto que o meu optimismo é quase ridículo. Há dias em que ando muito perto da rendição, mas nunca tão perto que não sacuda o pó e volte a levantar-me. O meu maior trunfo, o que me salva sempre? O humor.

Entre mim e o desânimo existe uma guerra antiga, jurada, declarada e sem tréguas. Que vença o melhor.

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Jogo, logo existo

Ana Vidal, 07.07.16

Alcançada a meta física, chega a hora da metafísica. É o momento grande dos filósofos da bola, um olimpo que não está ao meu alcance. Não deixa de ser uma arte, admito, dizer absolutas vulgaridades durante horas a fio com a pompa e a convicção de quem proclama verdades universais. E, mais sofisticado ainda, com um léxico que não lembraria ao mais hermético dos pessoanos.

 

Fico-me pelo básico, que é o que interessa: Viva Portugal! (ou devo dizer "Portugal allez"?). Só sei que nada sei, mas estou contente. Alguma coisa que nos corra bem.

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Batatas

Ana Vidal, 21.06.16

"Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria e ousadia da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas. Se a guerra não fosse isso, tais demonstrações não chegariam a dar-se, pelo motivo real de que o homem só comemora e ama o que lhe é aprazível ou vantajoso, e pelo motivo racional de que nenhuma pessoa canoniza uma ação que virtualmente a destrói. Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas."

 

(Quincas Borba, Machado de Assis)

 

Custa a engolir, mas é assim mesmo. Entre a justiça e a sobrevivência nunca há muito que escolher.


Nota: A perenidade dos grandes textos deixa-me sempre fascinada.

 

O estado da arte

Ana Vidal, 15.06.16

O problema dos humoristas em Portugal é que são como o estado islâmico: auto-proclamam-se. Alguns, como é o caso de Rui Sinel de Cordes, vão mais longe ainda nesse fascínio e trocam graças por mísseis e bombas contra um público que, evidentemente, não reage como eles gostariam. Não percebem os auto-proclamados humoristas que escolheram a mais difícil e ingrata de todas as artes, e que fazer rir muitos é para muito poucos. E quando isso não acontece, quando fatalmente constatam o fiasco, reagem como onze virgens ofendidas e vão fazer humor, enormes e injustiçados, para o seu micro-público amante de cintos de explosivos.

 

Não percebem também outra coisa muito básica: o direito à liberdade de expressão que lhes permite violentar todas as fronteiras (as dos outros, claro) é o mesmíssimo direito que assiste a esses outros para os crucificarem depois em praça pública. A mesma praça pública, aliás, e com a mesma violência.

Ele há pessoas e há Pessoa

Ana Vidal, 13.06.16


Hoje não é só o dia de Santo António. É também o dia em que nasceu Fernando Pessoa (curiosamente, Santo António também se chamava Fernando), essa extraordinária excepção humana que, para nossa sorte, teve como pátria a língua portuguesa. Pensava à velocidade da luz e numa amplitude de registos tal que vai da complexidade da Ode Marítima ao léxico minimalistana e quase cómico do drama de bairro espelhado na carta de uma corcunda apaixonada por um vizinho indiferente. Mas o que mais me espanta nesta cabeça vertiginosa não é a explosão mental ininterrupta - muitos outros cérebros anónimos a terão, rotulados como casos patológicos e medicados para se manterem numa "normalidade" controlada - mas sim a capacidade que tinha, verdadeiramente única, de registar tudo o que pensava à mesma velocidade, com método, clareza e coerência. Essa capacidade, mais do que tudo o resto, define um prodígio.

 

Aqui fica uma nota biográfica escrita e assinada pelo próprio. Fico a imaginar se lhe terá servido de apresentação para conseguir um emprego, e a reacção de quem a recebeu. Que patrão arriscaria medir forças com um funcionário deste calibre? 

 

[NOTA BIOGRÁFICA] DE 30 DE MARÇO DE 1935

“Nome completo: Fernando António Nogueira Pessoa.

“Idade e naturalidade: Nasceu em Lisboa, freguesia dos Mártires, no prédio n.º 4 do Largo de S. Carlos (hoje do Directório) em 13 de Junho de 1888.

“Filiação: Filho legítimo de Joaquim de Seabra Pessoa e de D. Maria Madalena Pinheiro Nogueira. Neto paterno do general Joaquim António de Araújo Pessoa, combatente das campanhas liberais, e de D. Dionísia Seabra; neto materno do conselheiro Luís António Nogueira, jurisconsulto e que foi Director-Geral do Ministério do Reino, e de D. Madalena Xavier Pinheiro. Ascendência geral: misto de fidalgos e judeus.

“Estado: Solteiro.

“Profissão: A designação mais própria será «tradutor», a mais exacta a de «correspondente estrangeiro em casas comerciais». O ser poeta e escritor não constitui profissão, mas vocação.

“Morada: Rua Coelho da Rocha, 16, 1º. Dt.º, Lisboa. (Endereço postal - Caixa Postal 147, Lisboa).

"Funções sociais que tem desempenhado: Se por isso se entende cargos públicos, ou funções de destaque, nenhumas.

“Obras que tem publicado: A obra está essencialmente dispersa, por enquanto, por várias revistas e publicações ocasionais. O que, de livros ou folhetos, considera como válido, é o seguinte: «35 Sonnets» (em inglês), 1918; «English Poems I-II» e «English Poems III» (em inglês também), 1922, e o livro «Mensagem», 1934, premiado pelo Secretariado de Propaganda Nacional, na categoria «Poema». O folheto «O Interregno», publicado em 1928, e constituído por uma defesa da Ditadura Militar em Portugal, deve ser considerado como não existente. Há que rever tudo isso e talvez que repudiar muito.

“Educação: Em virtude de, falecido seu pai em 1893, sua mãe ter casado, em 1895, em segundas núpcias, com o Comandante João Miguel Rosa, Cônsul de Portugal em Durban, Natal, foi ali educado. Ganhou o prémio Rainha Vitória de estilo inglês na Universidade do Cabo da Boa Esperança em 1903, no exame de admissão, aos 15 anos.

“Ideologia Política: Considera que o sistema monárquico seria o mais próprio para uma nação organicamente imperial como é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, a Monarquia completamente inviável em Portugal. Por isso, a haver um plebiscito entre regimes, votaria, embora com pena, pela República. Conservador do estilo inglês, isto é, liberdade dentro do conservantismo, e absolutamente anti-reaccionário.

"Posição religiosa: Cristão gnóstico e portanto inteiramente oposto a todas as Igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma. Fiel, por motivos que mais adiante estão implícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a Tradição Secreta em Israel (a Santa Kabbalah) e com a essência oculta da Maçonaria.

“Posição iniciática: Iniciado, por comunicação directa de Mestre a Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal.

“Posição patriótica: Partidário de um nacionalismo místico, de onde seja abolida toda a infiltração católico-romana, criando-se, se possível for, um sebastianismo novo, que a substitua espiritualmente, se é que no catolicismo português houve alguma vez espiritualidade. Nacionalista que se guia por este lema: «Tudo pela Humanidade; nada contra a Nação».

“Posição social: Anticomunista e anti-socialista. O mais deduz-se do que vai dito acima.

“Resumo de estas últimas considerações: Ter sempre na memória o mártir Jacques de Molay, Grão-Mestre dos Templários, e combater, sempre e em toda a parte, os seus três assassinos – a Ignorância, o Fanatismo e a Tirania”.

Lisboa, 30 de Março de 1935

Fernando Pessoa

(In Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal, ed. Richard Zenith, Assírio & Alvim, 2003, pp. 203 - 206.)

 

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(carta astral de Fernando Pessoa)

 

Nota: Informação encontrada no site da Casa Fernando Pessoa.

Digam-me que hoje é o 1º de Abril, por favor.

Ana Vidal, 09.06.16

Acordo fechado entre a Visabeira e o Estado português tem a duração de 50 anos

 

"O grupo Visabeira vai investir 15 milhões de euros para instalar um hotel no Mosteiro de Alcobaça. O grupo português vai pagar ao Estado uma renda anual de 5 mil euros, mais IVA, noticia o Diário Notícias. A Visabeira assinou ontem com a Direção-Geral do Património Cultural um contrato de concessão do Claustro do Rachadouro do Mosteiro de Alcobaça, válido por 50 anos. O acordo vai permitir ao grupo a construção de um hotel de cinco estrelas, de três pisos, 81 quartos e nove suites, SPA, ginásio, para além de espaços para organização de congressos e eventos. O espaço foi atribuído depois de um concurso público internacional. A abertura do hotel está prevista para 2019."

 

Algumas das mil perguntas que esta notícia me sugere:

É esta a tão apregoada superioridade da esquerda em relação à cultura? Ou será que a cultura não inclui o património?

Para que serve uma Direção-Geral do Património Cultural, para trocar conventos por hotéis?

E a renda de 5.000 € anuais, esse valor astronómico, é para resolver o problema do défice?

Três pisos num claustro? Como, deitando-o abaixo?

O que se seguirá, uma discoteca nos Jerónimos? Um food hall na Torre de Belém?

E a Unesco, não tem uma palavra a dizer já que o Mosteiro está classificado como Património da Humanidade?

 

(é que nem consigo pôr uma tag nesta aberração)

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Muito bem, Sr. Presidente

Ana Vidal, 08.06.16

Na primeira prova de fogo (embora, na verdade, seja ainda um lume brando em relação ao que aí virá) e depois do alegre trolaró sem grandes compromissos em que tem andado até agora, Marcelo Rebelo de Sousa surpreende-me pela positiva. Passo por cima da lei das 35 horas de trabalho, sobre a qual não tenho ainda opinião formada que possa fundamentar como tal, e refiro-me apenas às decisões em relação às leis que dizem respeito (não só, mas sobretudo) às mulheres:

1. A promulgação da PMA, permitindo o seu acesso a TODAS as mulheres sem distinção nem discriminação de qualquer tipo, garante finalmente uma real igualdade de direitos, mais do que justa.

2. O veto da gestação de substituição, vulgo "barrigas de aluguer", é um prudente e escrupuloso travão à precipitação de aprovar a abertura de uma quase certa caixa de Pandora, sem a garantia de todas as devidas (e possíveis) salvaguardas que atenuem consequências dramáticas para os envolvidos nesta prática. Uma matéria desta complexidade e delicadeza não pode ser aprovada à pressa, só porque o mimado Bloco de Esquerda quer impor ao governo uma agenda que é a sua.


Mas não é por Marcelo ter feito exactamente o que eu faria no seu lugar que eu digo que ele me surpreende pela positiva. É por ter decidido claramente acima da sua opinião pessoal sobre estas matérias, porque tenho quase a certeza de que não concorda com nenhuma delas.

Impotência

Ana Vidal, 07.06.16

Mais um atentado hoje em Istambul.

 

Uma das maiores perversidades deste mundo da informação global imediata, dominado sobretudo pelas redes sociais, é fazer-nos sentir culpados e insensíveis quando não comentamos as grandes tragédias, como se as ignorássemos ou lhes fôssemos indiferentes. Mas, que palavra nossa manteria à tona um barco no Mediterrâneo, abarrotado de gente faminta e atraiçoada? Que indignação suspenderia o choque de impacientes placas tectónicas no Nepal ou no Chile? Que like deteria o sabre ou o cinto de explosivos de um fanático islâmico? Que post impediria a violação de uma criança na Nigéria? Que fotografia chocante, que poema, que música mudariam alguma coisa na vida e na morte destes eternos filhos de um deus menor? Perante o horror, quase sempre se me secam as palavras na garganta e as lágrimas nos olhos. Fica só um tumulto cá dentro, surdo, mudo, cego. Que não ajuda ninguém.

Olivença? Não conheço.

Ana Vidal, 05.06.16


Acabo de chegar de Inglaterra. Enquanto os portugueses estão preocupados com as sanções da UE, temendo a expulsão (como se isso alguma vez fosse acontecer, qualquer que seja o défice) desta confraria que já ninguém sabe exactamente o que é nem para onde caminha, os ingleses estão mortos por sair dela. Muitos deles, muitos mais do que se pensa. Cameron farta-se de fazer discursos inflamados - aflitos, diria mesmo - apelando ao Sim no referendo de dia 23, sinal claro de que não é nada improvável uma vitória do Brexit. Até o funcionário do aeroporto que me despejou a mala inteira numa mesa (por causa de um maldito creme de 30 ml que eu não pus no maldito saquinho de plástico) e revistou tudo com o ar enfadado de quem considera pertencer a uma casta superior, me disse, antipático: "Da próxima vez que cá vier, esse documento que tem na mão já não lhe vai servir de nada". Fingi não ter percebido e perguntei-lhe se o meu BI estava ilegível ou fora de prazo. Respondeu-me, no mesmo tom seco, "Não, mas vai precisar de um passaporte porque nós já não estaremos na UE. Não precisamos da Europa para sabermos quem somos." Respondi-lhe que nós, portugueses, também não. E acrescentei, de nariz empinado - apesar do pouco edificante espectáculo dos meus soutiens e outras intimidades espalhados na mesa entre nós - "Talvez o senhor não saiba que Portugal tem as fronteiras mais antigas da Europa," (eu sei que não é exactamente assim, mas cheguei para ele) "mas, sabe, achamos que a Europa precisa de nós". O resultado foi uma cara ainda mais antipática e algum tempo extra de inspecção aos meus pertences, mas saí dali consolada.

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(Fotografia - Chema Madoz)

Regressos

Ana Vidal, 26.05.16

Há dias em que tudo nos nos puxa inexoravelmente para o passado. Dias que nos obrigam a olhar para trás e a reviver momentos longínquos, antes que a voragem do tempo os leve para sempre da nossa memória. Que nos devolvem imagens de muros caiados, cheiros e sabores há muito perdidos, sons de passos em soalhos encerados ou lajes de pedra, alamedas de cedros e palmeiras onde o sol se entretém a desenhar sombras chinesas, povoando de fantasia os misteriosos caminhos da infância.

Ontem foi um desses dias. Sem saber como nem porquê, no regresso de Lisboa para Sintra fiz um desvio e fui procurar uma velha quinta, vendida há anos, onde passei os mais saudosos Setembros da minha vida. Foi um erro. Para começar, custou-me encontrar o lugar, porque já nada existe que seja reconhecível: os arredores passaram de muros de pedra cheios de musgo e estradas de terra batida a um emaranhado de ruas asfaltadas entre prédios altos, todos iguais; a antiga casa da quinta, desenhada por Raul Lino, foi substituída por inúmeras moradias geminadas pintadas de um amarelo pífio; todas as árvores e plantas morreram ou foram arrancadas; o portão verde de ferro rendilhado deu lugar a uma enorme placa metálica que obedece ao abre-te sésamo de um qualquer comando electrónico; o velho tanque, a que gostávamos de chamar piscina e fazia as nossa delícias, desapareceu sem deixar rasto. Há uma grade alta que rodeia tudo, sem ter sequer uma sebe a suavizar-lhe a rigidez ameaçadora.

É um condomínio de luxo, minha senhora, disse-me uma mulher a quem fiz perguntas cujas respostas não queria ouvir. Luxo? A mim pareceu-me uma triste gaiola partilhada.

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Pesos e medidas

Ana Vidal, 25.05.16

"Não gosto de fanatismos, porque nos cegam. Quem defendeu como nós a total liberdade da imprensa e pintou na cara a bandeira francesa quando surgiu a tragédia do Charlie Hebdo, porque se indigna agora ao rubro com um anódino cartaz em que Mário Nogueira vestido de Estaline puxa os cordelinhos a um ME marioneta? Porque o cartaz é da JSD? Porque Mário Nogueira é sacrossanto, intocável e sagrado? Porque é proibido fazer humor com políticos e com sindicatos? Afinal não queremos liberdade de imprensa? E é proibido rir?"

 

(Teolinda Gersão, na sua página do facebook)

 

A verdade é que muita gente ainda não integrou bem o conceito de liberdade de expressão, por isso lida mal com ela quando não é praticada pelos "seus". E quando a esta se associa o humor, tudo piora ainda mais.

 

Fora de série (9/2)

Ana Vidal, 24.05.16

Nota prévia: No último jantar do Delito, onde foi lançada a ideia da série colectiva “Fora de série”, eu e o Zé Navarro de Andrade declarámos ao mesmo tempo que escolhíamos “Les Galapiats” (“Os pequenos vagabundos”, na tradução portuguesa). O mais engraçado é que foi também num uníssono imediato que repetimos as palavras que retivemos na memória até hoje, e de alguma forma nos marcaram para sempre: “C’est féerique!”. O que quer dizer que escolhemos ambos esta série pelas mesmas razões: uma paixão assolapada pelos protagonistas. Por isso combinámos escrever ambos sobre ela.

 

 

Pois é, Zé, nesse tempo não falavam os animais mas falavam as hormonas, e como! Ou melhor, gritavam, impunham-se, passavam à frente de tudo sem dó nem piedade. No teu caso (e no de muitos outros rapazinhos, aposto) com efeitos imediatos, traduzidas em furores físicos descontrolados. No meu, e no de tantas outras adolescentes românticas e ingénuas como eu, traduzidas em paixões sofridas, tão arrasadoras como inconsequentes.

 

Mas atenção, isto não é assunto com que se brinque: Jean-Loup foi o meu primeiro grande amor, e nem sequer posso dizer que fosse um amor “ virtual” já que, para mim, era a pura realidade. Se querem saber, acho que nem fazia ideia do nome do actor. Só agora descobri que se chamava Philippe Normand ou Philippe Cantrel, diferentes apelidos que usava como actor ou como cantor. Talentoso, hein? Foi uma paixão que levei tão a sério que condicionou totalmente os primeiros anos da minha vida amorosa, a ponto de só me ter permitido cair de amores por um rapaz (finalmente tangível, aleluia) parecidíssimo com o meu herói. Jean-Loup, o parisiense de férias na Bélgica, tinha criado na minha cabeça sonhadora um padrão, o meu modelo de príncipe encantado. Mais tarde, na mesma linha, veio Alain Delon, quem sabe se porque eu o imaginava como uma espécie de Jean Loup em adulto. O meu namorado de carne e osso era realmente parecido com ambos, e só não ponho aqui uma fotografia do dito (a prova inquestionável do que afirmo) porque não sei se ele lê o Delito.

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Por outro lado, e como não podia deixar de ser, havia a Marion-des-Neiges, a protagonista, para o Zé o supra-sumo da perfeição feminina aos 12 anos e para mim a rival odiada, deslavada e débil mental, sempre a precisar da protecção do meu herói e incapaz de uma proeza por conta própria. Bah.

 

“C’est féerique!” (nessa altura aprendíamos francês, aquela frase ficou-me atravessada no coração como um dardo, ainda antes de ler a legenda), referia-se aos bosques mágicos do Canadá e era dita no último episódio pela delambida Marion ao meu Jean-Loup, no momento da despedida de ambos, convidando-o a ir visitá-la um dia ao seu país. A sonsa. E eu sem nada de feérico para a troca: nada de florestas mágicas, só uma vilória rural com meia dúzia de pinheiros quase milenários, é certo, tudo o que restou do histórico e outrora famoso Pinhal da Azambuja. Uma vilória sem castelos de pontes levadiças nem tesouros perdidos por resgatar, onde o mais excitante que acontecia eram as largadas de touros, na feira de Maio, pelas ruas em que se misturavam poeira, febras na brasa e mil bebedeiras. A vida não é justa.

 

Por isso, por favor, não me contem o que sucedeu com o passar dos anos a Jean-Loup na vida real. Não quero saber. Deixem-me recordá-lo assim, um galã imberbe e aventureiro, de melena nos olhos, com solução para tudo e uma esperteza ilimitada para desmascarar malfeitores e salvar vítimas inocentes. Deixem-me retê-lo na memória desses anos de todas as ilusões, na versão “retrato do artista enquanto jovem” que me incendiava a imaginação e me povoava a mente e o coração, mesmo durante as aulas. A não ser, claro, que tenha casado com a idiota da Marion e estejam ambos obesos, num sofá qualquer em Montréal, a comer pipocas e a ver reality shows. Isso sim, seria a minha vingança servida fria. Gelada.

 

(A despedida e o célebre “C’est féerique!” – ver min 22.27)