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Delito de Opinião

Toda as mortes são prematuras

Pedro Correia, 26.12.16

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 Montgomery Clift e Marilyn Monroe em 'The Misfits'

 

Há frases que fixamos para sempre. Lembro-me de, em miúdo, ter ouvido o meu avô materno dizer que todas as mortes antes dos 75 anos eram "prematuras". Tomei nota da palavra, que não esqueci. E daquela espécie de desejo implícito contido naquela frase. Desejo cumprido, pois o meu avô morreu com 76 anos.

Muito mais tarde, Jorge de Sena ensinou-me, seu modesto leitor, que "todas as mortes são prematuras". O ser humano é vocacionado para a vida eterna - e saber de antemão que não cumprirá este anseio do seu corpo e este desígnio do seu espírito constitui a chave para sempre indecifrável de todo o pensamento filosófico, que procura responder às mais simples e mais complexas questões.

Quem sou? Que faço aqui? Em que medida se cumpre um destino humano?

 

Por estes dias em que Mário Soares trava uma luta tenaz contra a morte ouço dizer que teve "uma vida bem vivida". Face ao critério do meu avô, há muito que o ex-Presidente superou a perspectiva de uma morte prematura. Mas deverei dizer que os seus 92 anos foram "bem vividos" se no mesmo dia em que ele se encontra em estado muito crítico num hospital me cruzo num dos estabelecimentos comerciais mais conhecidos de Lisboa com a actriz Carmen Dolores - igualmente com 92 anos, mas nascida sete meses antes de Soares - caminhando com sacos de compras, elegante, grácil, quase etérea, sem sequer o apoio de uma bengala?

Filmou com António Lopes Ribeiro, Leitão de Barros e Jorge Brum do Canto, contracenou com António Silva, Vasco Santana, Ribeirinho, João Villaret, figuras há muito inscritas no panteão do nosso teatro e do nosso cinema, e ei-la aqui, tal como nós, na idade do skype e do instagram. Teve um admirável percurso artístico, iniciado na remota década de 40. Mas por mais anos que permaneça connosco serão sempre escassos.

 

"Todos, homens e mulheres, estamos a morrer a cada momento que passa", dizia Marilyn Monroe no apogeu do seu talento e da sua beleza, interpretando-se de algum modo a si própria na última longa-metragem que acabou por rodar: The Misfits. Filme trágico e triste e assombrosamente belo, um dos filmes da minha vida

Cada existência é irrepetível e nuclear. Cada vida é um micrograma na poeira cósmica. Um sobressalto na nossa fisiologia, frágil como espiga ao vento, basta para sepultar toneladas de "certezas inabaláveis" que nos iludem na fatal transição entre os dois pontos extremos da nossa biografia - sempre imperfeita e fugaz, sempre situada aquém da insaciável espiral de todos os sonhos.

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