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Delito de Opinião

Livros: dez sugestões de Natal

Pedro Correia, 23.12.23

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A VIDA POR ESCRITO, de Ruy Castro (Tinta da China). Escreve com a elegante desenvoltura de muito poucos, utilizando a língua portuguesa com talento e requinte. O mineiro Ruy Castro, carioca do coração, ensina a escrever biografias. É algo que o leitor possa aprender? O irónico subtítulo "ciência e arte da biografia" basta para suscitar sérias dúvidas. Mas aqui o essencial é aquilo que o autor nos narra, a pretexto de revisitar os livros que foi publicando - com destaque para histórias ligadas às vidas de Carmen Miranda, Garrincha, Nelson Rodrigues, João Gilberto e outros gigantes da cultura, do espectáculo e do desporto brasileiro. Mundo de algum modo nosso também.

 

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ABRIL EM NOVEMBRO, de Rui Salvada (Lisbon Press). Quase meio século depois, a Revolução dos Cravos lembrada por quem a fez. Exemplo de história com fontes directas, que participaram nos acontecimentos e ainda cá estão para nos contar. Com factos, não com mitos. Homens que foram à guerra e depois lhe puseram fim. Como o coronel Luís Oliveira Pimentel, em 1974 capitão de Infantaria: «O 25 de Abril teve dois grandes motivos, o primeiro foi a ultrapassagem dos oficiais do quadro permanente que ficavam ali parados (...) e o segundo foi o reforço da convicção de que fazer a guerra não levava a lado nenhum.» Também se fala do 11 de Março e do 25 de Novembro de 1975.

 

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O DEVER DE DESLUMBRAR, de Fillipa Martins (Contraponto). Em ano de centenário, Natália Correia (1923-1993) foi lembrada até na Assembleia da República, onde esteve como deputada - primeiro do PSD, depois do efémero PRD. Esta extensa biografia desvenda-nos muito sobre a vulcânica escritora açoriana que a seu modo, bem peculiar, lutou pela liberdade antes e depois de 1974. Filipa Martins já tinha recordado a autora de Não Percas a Rosa ao escrever o argumento da excelente série Três Mulheres, exibida na RTP. Aqui vai mais longe, evidenciando muito do brilho da biografada sem ocultar várias sombras de quem escreveu «Ó subalimentados do sonho! / A poesia é para comer.»

 

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TODOS OS LUGARES SÃO DE FALA, de Paulo Nogueira (Guerra & Paz). Um dos melhores livros publicados sobre a dita "cultura do cancelamento" que vem anulando a liberdade de expressão em muitos países europeus. Vaga iniciada nos EUA a pretexto de justas causas, como a do feminismo com marca #MeToo ou do anti-racismo após o homicídio do negro George Floyd por um polícia branco em Minneapolis. «Uma das principais armas das guerras culturais do século XXI é precisamente o cancelamento: a obliteração do interlocutor, a mordaça digital. Na realidade virtual, o linchamento é electrónico», alerta Paulo Nogueira, escritor e cronista brasileiro que viveu 25 anos em Portugal.

 

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PARA QUE SERVE O PCP?, de Adelino Cunha (Saída de Emergência). Prestes a sofrer talvez o seu pior resultado eleitoral de sempre, o Partido Comunista Português é aqui analisado por um historiador que se especializou nesta área e já publicou obras marcantes, como a biografia do injustiçado Júlio Fogaça, destituído por Álvaro Cunhal no comando do partido durante o salazarismo. Aqui se fala dos anos de fundação do PCP, desde as raízes anarco-sindicalistas à imposição do marxismo-leninisto - "bolchevização", para usar um vocábulo muito em uso naquela época. Com o primeiro secretário-geral (Carlos Rates) acabando a defender Salazar na União Nacional. Tempos que já não voltam.

 

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ANTES QUE ME ESQUEÇA, de Francisco Seixas da Costa (D. Quixote). Memórias de um embaixador que serviu Portugal em Nova Iorque, Brasília e Paris já no topo da carreira. Memórias originais, com base na escrita algo anárquica do blogue Duas ou Três Coisas, que por cá sempre acompanhámos com atenção. É de política que aqui se fala, com vasta gama de protagonistas, portugueses e estrangeiros. Viajamos aos mais diversos locais do globo - da Líbia ao Turquemenistão, sem nunca esquecer Angola. Com múltiplas notas do quotidiano entre 2009 e 2022, além de constantes alusões a décadas mais recuadas. Quase um diário, quase um romance, verdadeiramente inclassificável. Dá gosto ler.

 

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A BIBLIOTECA DE ESTALINE, de Geoffrey Roberts (Zigurate). Homicida contumaz, um dos maiores tiranos que o mundo já conheceu, Estaline era também leitor compulsivo. Tinha uma vasta biblioteca, cheia de livros de história e filosofia. Com Marx e Lenine em lugar privilegiado, mas sem faltarem clássicos russos: romance, teatro e poesia destacavam-se igualmente nas suas estantes. Enquanto lia, fazia anotações nos livros. Durante longos anos, o historiador irlandês foi investigando e desvenda-nos aqui um ditador na intimidade - leitor até de Oscar Wilde e Walt Whitman, de quem ele citava este verso: «Estamos vivos. O nosso sangue escarlate ferve com o fogo da força por usar.»

 

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LIDERANÇA, de Henry Kissinger (D. Quixote). Falecido muito recentemente, já centenário, Henry Kissinger foi académico de prestígio antes de mergulhar a fundo na política, como secretário de Estado dos presidentes Richard Nixon e Gerald Ford na década de 70. Judeu nascido em 1923 na Alemanha, emigrado aos 15 anos nos EUA, nunca perdeu o cerrado sotaque germânico. Neste livro-testamento lega-nos seis ensaios sobre estadistas que conheceu pessoalmente: Konrad Adenauer, Charles de Gaulle, Nixon, Anwar Sadate, Lee Kuan Yew e Margaret Thatcher. Estudos de valor desigual, mas todos ajudam a reflectir sobre o exercício do poder. Só o fascinante retrato do general De Gaulle já valeria a obra.

 

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A RELIGIÃO WOKE, de Jean-François Braunstein (Guerra & Paz). Um dos melhores livros sobre os actuais ditames da correcção política, transformada em moda demencial. Impondo severas censuras um pouco por toda a parte deste mundo a que nos habituámos a considerar livre. A liberdade de outrora tornou-se vigiada. Os exemplos abundam, sobretudo nos meios universitários, aqui dissecados com minúcia e sarcasmo. "A Religião Woke", com o seu cortejo de dogmas, abala até os próprios fundamentos do conhecimento científico. Decreta novos comportamentos, nova linguagem e até novo pensamento. Resultado: sabedoria em regressão e um catálogo de tabus cada vez mais vasto.

 

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RÚSSIA - REVOLUÇÃO E GUERRA CIVIL 1917-1921, de Anthony Beevor (Bertrand). Um clássico instantâneo que nos faz viajar ao estertor da monarquia russa, à fugaz revolução democrática de Fevereiro de 1917 e à posterior insurreição vermelha liderada por Lenine que anunciava ventos de liberdade mas instaurou o mais longo despotismo do século XX. O "primeiro Estado proletário da história" viria a mergulhar os povos da emergente União Soviética num inverno totalitário que parecia não ter fim. Beever, prestigiado historiador britânico especializado em temas militares, guia-nos ao jeito de um thriller neste trilho que não desvenda só o passado: serve também de sério aviso para o futuro.

Livros: dez sugestões de Natal

Pedro Correia, 20.12.22

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DIREITA E ESQUERDA, de Joseph Roth (Cavalo de Ferro). Viagem à Berlim de há cem anos, no fugaz interlúdio entre a guerra e a fracassada erupção comunista, por um lado, e a ascensão do nazismo, por outro. Dinheiro, hipocrisia social e radicalismo político são ingredientes deste romance de Roth (1894-1939) enfim editado em Portugal.

 

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NA CABEÇA DE XI, de François Bougon (Zigurate). Inspirado ensaio biográfico sobre o mais poderoso ditador do nosso tempo: Xi Jinping, o Presidente da China, ainda encarado com benevolência em meios geralmente mal informados. Título de referência nesta nova editora, digna de aplauso por surgir em tempos difíceis e não mutilar consoantes.

 

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O SONHO DA CHINA, de Ma Jian (Quetzal). Impiedosa sátira social ao outro lado do espelho do "milagre económico" chinês, marcado pela corrupção da oligarquia comunista agora que a geração dos adolescentes formados na tenebrosa "Revolução Cultural" chegou ao poder. Este romance está proibido na China e o seu autor vive no exilio.

 

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FRANCISCO - O CAMINHO, de Maria João Avillez (Temas e Debates). Transcrição da recente entrevista feita pela jornalista ao Papa para a TVI. Com um prefácio que explica ao leitor como foi possível consegui-la e o contexto concreto em que decorreu, no Vaticano. Francisco pede aos jovens de todo o mundo para «abrirem janelas», com vistas largas. 

 

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BREVE HISTÓRIA DA FILOSOFIA MODERNA, de Roger Scruton (Guerra & Paz). Um dos mestres pensadores do nosso tempo revisita alguns dos filósofos que mais o marcaram. Fascinante percurso pela rota das ideias que fazem girar o mundo. Num estilo elegante e fluente, provando que a erudição não tem de ser árida nem aborrecida.

 

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OLIVENÇA NA HISTÓRIA, de vários autores (Assembleia da República). Muito se fala de Olivença, mas poucos conhecem com rigor o tema - na sua dimensão histórica, cultural e jurídica. Lacuna aqui colmatada, com chancela parlamentar, em textos de valor desigual sobre uma parcela de território sob domínio espanhol que é portuguesa de raiz e lei.

 

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«O MAIS SACANA POSSÍVEL», de António Araújo (Tinta da China). A frase, que o autor adaptou a título com inegável argúcia, é de José Cardoso Pires e serviu de mote inspirador à revista Almanaque, que marcou o início da década de 60 no meio intelectual português. Ainda hoje se fala dela. Toda a história desse mirabolante projecto é contada aqui.

 

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O MUNDO PELOS OLHOS DA LÍNGUA, de Manuel Monteiro (Objectiva). Um dos nossos mais esclarecidos linguistas regressa com uma obra útil a todos quantos escrevem. Alertando para o uso e abuso de erros de palmatória neste nosso idioma por vezes tão maltratado por quem mais devia cuidar dele. Felizmente vai resistindo a quase tudo.

 

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QUARTETO DE HAVANA, de Leonardo Padura (Porto Editora). Na Cuba comunista também há crimes, como em qualquer outro país: o paraíso terreal está longe de existir ali. Quem tiver dúvidas, repare neste excelente escritor, dos raros que não foram presos ou desterrados. Romances policiais ao sol das Caraíbas. Para ler nas linhas e nas entrelinhas.

 

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O INFINITO NUM JUNCO, de Irene Vallejo (Bertrand). Declaração de amor à literatura pela pena ágil de uma investigadora espanhola neste ensaio que parece um romance e foi monumental sucesso de vendas no país vizinho. Fascinante digressão pela civilização greco-romana que há muitos séculos nos ensinou a ler, a escrever, a pensar e a sonhar.

Livros: dez sugestões de Natal

Pedro Correia, 23.12.21

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A BLOGOSFERA PORTUGUESA, de Sérgio Barreto Mota (Fundação Francisco Manuel dos Santos). Breve visita guiada aos anos de ouro dos blogues em Portugal, quando todos os dias nasciam dezenas de títulos, quase todos já desaparecidos. Com visão irónica e mordaz, confessando simpatias e antipatias sem pedir licença a ninguém.

 

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A REBELIÃO, de Joseph Roth (Cavalo de Ferro). Poderosa novela do autor de Hotel Savoy, descrevendo a impressionante penúria da sociedade austríaca no rescaldo imediato da I Guerra Mundial. Centrada na luta quotidiana pela sobrevivência de um antigo combatente, Andreas Pum - condecorado como militar, desprezado na vida civil.

 

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ALMANAQUE DA LÍNGUA PORTUGUESA, de Marco Neves (Guerra & Paz). Este autor ensina-nos a gostar ainda mais do nosso idioma numa prosa cativante, como se estivesse em permanente diálogo com o leitor. Resulta em cheio. Todos aprendemos alguma coisa com ele. Num estilo coloquial, didáctico sem nunca ser pretensioso.

 

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AUTOS-DE-FÉ, de Michel Onfray (Guerra & Paz). Polemista inflamado difícil de catalogar, ateu militante e adversário encarniçado das cartilhas racialistas e da ideologia do género, o filósofo francês dispara neste livrinho em quase todas as direcções. Talvez demasiadas. Mas tem o condão de não deixar ninguém indiferente.

 

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DE MANEIRA QUE É CLARO..., de Mário de Carvalho (Caminho). Memórias do autor dos Contos da Sétima Esfera em fragmentos sincopados, com propositada desarrumação cronológica mas sem nunca perder o fio à meada. Exercício de prosa confessional que estabelece uma discreta corrente empática com o leitor.

 

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IDEIAS SEM CENTRO, de Alexandre Franco de Sá (D. Quixote). «Excelente e oportuno contributo para o debate político nacional num tempo em que, mais do que nunca, se torna necessário que os conceitos e as palavras esclarecidas e esclarecedoras estejam disponíveis para a batalha das ideias», assinala Jaime Nogueira Pinto no prefácio.

 

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ÍNDICE MÉDIO DE FELICIDADE, de David Machado (Leya). Recomendável em qualquer ano: continua disponível no nosso mercado editorial. É um dos romances portugueses mais originais deste século. No tema, na linguagem, no modo como o autor molda as personagens e lhes confere autenticidade. A ler ou a reler.

 

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INTEGRADO MARGINAL, de Bruno Vieira Amaral (Contraponto). Talvez a melhor biografia do ano em Portugal. Resgatando de um relativo esquecimento o autor de Jogos de Azar. Enquanto se evoca toda uma época irrepetível da boémia literária lisboeta, onde o romancista se sentia no seu habitat natural.

 

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UMA ESTRANHA AMIZADE, de Maria Filomena Mónica (Relógio d' Água). Fala-se muito de Eça de Queiroz, incomparavelmente menos de Ramalho Ortigão. Dois parceiros de lides literárias que nunca se trataram por tu: entre eles houve muitos encontros e alguns desencontros. Recordados em prosa enxuta, sem gongorismos académicos.

 

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VERA LAGOA - UM DIABO DE SAIAS, de Maria João da Câmara (Oficina do Livro). Uma das jornalistas mais polémicas das décadas de 70 e 80 alvo de minucioso retrato biográfico onde não falta um desfile de nomes conhecidos da política e da cultura - de Humberto Delgado a FranciscoSá Carneiro, de Alves Redol a Natália Correia. 

Notas breves

Sérgio de Almeida Correia, 03.02.21

Um dia é a notícia de que o presidente da câmara “subtraiu” – termo constante da sentença judicial – dois quadros do atelier de uma artista para os oferecer a uma ministra que agora irá devolvê-los.

No outro é um administrador hospitalar que "à má fila" mandou vacinar a mulher e a prima recepcionista.

Depois é a outra autarca que exerce voluntariado, e que por esta última razão se achou com direito a fazer-se vacinar primeiro que alguns mais necessitados.

Antes tinha sido o imbróglio do currículo do procurador, mais as aulas que não poderiam ser à distância, antes de poderem voltar a ser, de acordo com as razões do ministro do “eduquês” que disse que “estamos melhor preparados do que estávamos no passado”. Nota-se.

Isto sem esquecer as sucessivas listas de deputados da nação para vacinação, ou o clima destrambelhado (será cansaço?) que grassa pelos lados da administração interna.

Como se tudo isso não fosse digno das lendas nocturnas de um castelo no sopé dos Cárpatos, ainda se têm de ouvir as desvergonhas daquela serigaita que tão depressa se queixa da falta de enfermeiros para acudirem às necessidades da pandemia, como logo a seguir recrimina o Governo por querer contratar no estrangeiro os que não há e que fazem falta.

E antes do epílogo, que nunca se sabe quando e como será, ainda há o pandeireiro televisivo que também anima, sabe-se lá porquê, as reuniões do Conselho de Estado, mais conhecido como o topo gigio de Fafe, quando critica as decisões do Governo sobre o confinamento, desdizendo tudo o que ele próprio dissera semanas antes, sem sequer se dar ao trabalho de referir que estava equivocado, mal informado ou que simplesmente se enganara.

De tudo isto se tem feito, como diz um amigo, a espuma dos dias. Afastar a espuma dos dias que nos cega, escapar ao desvario que nos persegue, é o exercício que vos sugiro.

E para isso nada como começar por ler uma interessante entrevista de André Corrêa d’Almeida, na linha do muito que tem dito e escrito, e de onde retirei a seguinte frase: “porque não é preciso muita ciência para se achar inconcebível que um deputado que está na comissão parlamentar que trata da privatização da EDP seja ao mesmo tempo quadro superior do banco que faz a assessoria aos chineses que estão a comprar a empresa. Ou que um conselheiro do Banco de Portugal seja, imagine-se, gestor de um fundo de investimento”. 

Para concluir estas breves linhas, sendo o rectângulo tão pequeno que se torna impossível ficar mais do que alguns minutos a olhar para ele, sob pena de delirarmos, atente-se no que um qualificado anónimo escreve no Politico sob o sugestivo título “To Counter China’s Rise, the U.S. Should Focus on Xi”.

Há mais mundo para lá da nossa porta. É preciso manter a sanidade.

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 10.06.17

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 Livro dez: Santos e Milagres, de Alexandre Borges

Edição Casa das Letras, 2017

287 páginas

 

De múltiplas histórias é feita a História. Para transmiti-las aos contemporâneos não basta o domínios dos factos: é também fundamental ter o dom da narração e um perfeito conhecimento deste nosso idioma, sedimentado ao longo de séculos. Importa ainda revelar alguma adesão emocional ao tema que se aborda, característica sem a qual a narração se torna árida e estéril.

Alexandre Borges – investigador, argumentista, licenciado em Filosofia – supera com distinção todas as provas atrás descritas neste seu mais recente livro, Santos e Milagres. Uma obra que, logo na capa, assume perante os leitores o solene compromisso de lhes proporcionar “uma história portuguesa de Deus”. E cumpre a promessa: aqui desfilam figuras em destaque ao longo de vinte séculos de cristianismo – todas de algum modo ligadas a este pedaço de chão no recanto mais ocidental da Europa hoje chamado Portugal, que só ascendeu à independência devido à íntima ligação entre o trono e o altar. Um elo que sempre nos serviu de senha de identidade.

Por estas páginas passam remotos protagonistas, alguns provavelmente mais lenda que facto: São Manços, São Torpes, São Vítor, São Vicente (hoje padroeiro da diocese de Lisboa), São Martinho de Dume, São Frutuoso, Santa Senhorinha, São Geraldo. Não faltam os santos nascidos ou radicados neste reino já independente: Santo António, a Rainha Santa Isabel, o Santo Condestável. Sem esquecer São Teotónio, conselheiro espiritual de D. Afonso Henriques: “Se um foi o primeiro rei de Portugal, o outro foi o primeiro santo. Nasceram portucalenses, morreram portugueses. Poder temporal e poder espiritual. A espada e a cruz que fundaram um dos mais antigos estados-nação do mundo.”

Dos últimos séculos, destacam-se São João de Deus, São Gonçalo Garcia (luso-indiano mártir em Nagasáqui), São João de Brito e – no capítulo final, intitulado “O Tempo de Agora” – os videntes de Fátima, dois dos quais acabam de ser elevados aos altares pelo Papa Francisco.

É um livro que sente o que descreve – e de poucos podemos hoje garantir o mesmo de forma tão categórica. Sem intuitos de catequização ou proselitismo. Dirigindo-se em simultâneo a leitores que acreditam ou duvidam, como fica evidente nas seguintes palavras do capítulo final que bem podiam aplicar-se a quem procurar esta obra: “Fátima não é dogma de fé. Muitos católicos não acreditam em Fátima – e muitos não católicos acreditam em Fátima. (…) Visitam o santuário todos os anos cinco milhões de peregrinos, oriundos de toda a parte. Católicos e de outras confissões. Crentes e ateus. Só cada um deles sabe o que o traz ali.”

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 09.06.17

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 Livro nove: Ao Largo da Vida, de Rainer Maria Rilke

Tradução de Isabel Castro Silva

Edição Ítaca, 2017

117 páginas

 

O que mais impressiona nesta obra de estreia em prosa do grande escritor de expressão germânica nascido no Império Austro-Húngaro é a plena maturidade do seu conteúdo, dado à estampa em 1898, quando o autor mal completara 22 anos. Ao Largo da Vida – pequeno volume de “novelas e esboços” em que apenas um dos textos se poderá considerar novela e os restantes são contos, aliás magníficos – propicia-nos personagens confrontadas com a dor, a doença, o luto, a velhice e a morte. Temas que se esperariam de um livro redigido por alguém com uma idade bastante mais avançada.

Seria talvez a sua sensibilidade poética a falar por ele: Rainer Maria Rilke foi acima de tudo um poeta, mesmo quando escrevia em prosa, como esta obra até agora inédita no mercado editorial português bem demonstra. De resto, a tradução merece elogio por respeitar o mais possível a musicalidade da escrita – sempre complexa, por mais simples que pareça.

Diz-se que o poeta não só sente: também pressente. Pressentiria o ainda tão jovem Rilke – falecido em 1926, com apenas 51 anos – que metade da sua vida estava já quase cumprida no momento em que escrevia estes “esboços” marcados por uma mágoa tão serena e luminosa?

A pergunta faz sentido ao lermos Festa em Família, onde somos introduzidos numa velha casa onde quase todas as cadeiras estão associadas a um óbito. Ou ao conhecermos a amargura de uma mãe servindo talvez a última chávena de chá ao filho acamado devido a uma grave doença cardíaca. Ou ao acompanharmos a revolta interior de um jovem de pernas paralisadas que passa os seus dias a talhar imagens da Virgem Maria com o rosto de uma inacessível mulher terrena. Ou ao lermos esse conto simplesmente intitulado O Menino Jesus que é uma das mais ternas, tristes e tocantes histórias de Natal que jamais alguém escreveu.

A melhor homenagem que pode prestar-se a este livro é considerá-lo uma via de comunicação directa com a poesia de Rilke. Aliás podiam servir-lhe de epígrafe estes versos dele que Jorge de Sena tão bem transpôs para português: “Que fazes tu, poeta? Diz! — Eu canto. / Mas o mortal e monstruoso espanto / Como o suportas? — Canto. / E o que nome não tem, tu podes tanto / Que o possas nomear, poeta? — Canto.”

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 08.06.17

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 Livro oito: Prantos, Amores e Outros Desvarios, de Teolinda Gersão

Edição Porto Editora, 2016

140 páginas

 

O conto volta a estar na moda entre nós? Se for assim, todos quantos apreciamos este género literário devemos congratular-nos. A satisfação redobra ao verificarmos que esta aposta das editoras distingue obras de indiscutível qualidade. Falei de uma há dias, falo desta hoje. São 14 histórias em que Teolinda Gersão se confirma como uma exímia cultora da ficção em formato curto. Sem uma palavra em excesso, com pleno domínio da técnica da escrita e uma gama larga de registos estilísticos que nunca deixa de surpreender o leitor.

“O que Teolinda faz é escrever a vida”, sublinha Maria Alzira Seixo, leitora atenta desta ficcionista que se estreou em 1981 com a publicação do romance O Silêncio, logo distinguido com o Prémio do Pen Club. É uma síntese certeira desta obra que nunca se compraz com a excelência formal ou o culto narcísico de quem tão bem domina o idioma: a prosa de Teolinda Gersão faz questão de nos conduzir a temas e variações da natureza humana, confrontando-nos com situações emblemáticas da nossa fragilidade existencial. Situações quase sem referências cronológicas ou geográficas, como se pudessem ocorrer em qualquer lugar e em épocas imprecisas das últimas décadas, despojadas de afectos na razão inversa da acumulação de bens materiais.

Alguns destes contos são autênticas peças de filigrana. “O Meu Semelhante” – delicioso preâmbulo à luta de classes num condomínio fechado, repassado de terna ironia. “Uma Tarde de Verão” – reencontro entre dois antigos amantes confrontados com a irreversível erosão do tempo no mesmo cenário de outrora. “As mimosas” – magoado exercício de nostalgia, com as flores simbolizando a frágil e fugaz matéria de que são feitos os sonhos. Ou a magistral autenticidade que emana de histórias escritas na primeira pessoa do singular, como “Pranto da Mãe Mentirosa” e “A Mulher Cabra e a Mulher Peixe”.

"É tudo um equívoco, nunca deixamos de estar sós. A vida não é fácil, nem feliz." Palavras de uma personagem que Teolinda aqui nos traz. Podemos escutar nela os ecos mais profundos da nossa própria voz.

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 07.06.17

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 Livro sete: 1933 Foi um Mau Ano, de John Fante

Tradução de José Remelhe

Edição Alfaguara, 2017

109 páginas

 

1933 foi o ano da subida de Hitler ao poder na Alemanha. Foi também o ano em que os Estados Unidos mergulharam ainda mais fundo na Grande Depressão, responsável por atirar milhões de americanos para o desemprego.

Um péssimo ano, portanto.

É o ano a que John Fante (1909-1983) regressa em pensamento quase meio século depois, lembrando a penúria vivida no Colorado, numa família de imigrantes oriundos da aldeia italiana de Torricella Peligna, situada nos confins do Abruzzo. O texto póstumo agora editado em português pela Alfaguara destinava-se aparentemente a um romance de grande fôlego, para sempre interrompido por grave doença do escritor. Fante, cego desde 1978, ocupou os últimos anos a ditar textos à mulher – incluindo este, impresso dois anos após o seu falecimento.

Nunca saberemos como seria esse romance que só ficou em projecto. Mas enquanto leitores teremos ganho com a troca: esta é uma excelente novela situada numa América de chocantes assimetrias sociais, com a pobreza a resvalar em ondas convulsas para a miséria.

É uma novela profundamente autobiográfica. Sem mudar o nome da aldeia de origem da família do protagonista – Dominic Molise, alter ego do autor – nem alterar a profissão do pai, um pedreiro que a depressão condenou à inactividade e procurava sustentar a mulher, a mãe viúva e os filhos com apostas numa mesa de bilhar. Dominic, o mais velho dos quatro irmãos, está prestes a fazer 18 anos e sonha ser um astro do basebol na Califórnia, imitando um Babe Ruth ou um Lou Gehrig.

“Sonhadores, éramos uma casa de sonhadores. A Avó sonhava com a sua casa na longínqua Abruzzi. O meu pai sonhava com não ter dívidas e assentar tijolo com o filho ao seu lado. A minha mãe sonhava com a sua recompensa divina: um marido feliz que não fugisse. A minha irmã Clara sonhava em tornar-se freira e o meu irmãozinho Frederick mal podia esperar para crescer e tornar-se um cowboy. Quando fechei os olhos, consegui ouvir o zumbido de sonhos que percorriam a casa, e então adormeci.”

Uma escrita exemplar, sugestiva e comovente do princípio ao fim.

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 06.06.17

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 Livro seis: O Tesouro, de Selma Lagerlöf

Tradução de Liliete Martins

Edição Cavalo de Ferro, 2017

98 páginas

 

Na arte literária, como em quase tudo o resto, o tamanho não conta. Provas não faltam. E eis mais uma: esta belíssima saga nórdica escrita pela sueca Selma Lagerlöf, primeira mulher a ser galardoada com o Nobel da Literatura (em 1909, nono ano da distribuição do prémio).

Em menos de cem páginas, aqui se condensam muitos dos tema centrais da melhor literatura de todos os tempos: o amor, a traição, a vingança, o perdão e a morte. A escritora - desde sempre influenciada pelas lendas medievais do seu país, povoadas por espectros, duendes e almas penadas - transporta-nos à Suécia ocidental do século XVI, num pedaço de território costeiro confinando com a Noruega, onde os dias de sol são escassos e a água facilmente se transforma em gelo.

Aqui se desenrola uma espécie de drama shakesperiano em torno de um tesouro amaldiçoado, que condena os seus sucessivos detentores a mortes sangrentas, de que nos vamos apercebendo desde as linhas iniciais através de uma série de aforismos e presságios. O mérito de Lagerlöf (1858-1940) é envolver-nos desde o início como testemunhas privilegiadas do drama e das suas ramificações sobrenaturais - como se assistíssemos a um filme de Carl Dreyer ou Ingmar Bergman - conscientes do carácter mitológico do enredo mas sem nunca nada nos soar a moralismo gratuito.

"É um grande pecado abater uma árvore no rebentar da folha, quando ela está tão cheia de força e não pode morrer. É terrível para um morto quando não consegue ter paz na sua sepultura. Os que estão mortos já não podem esperar nada de bom, não podem ser contemplados pelo amor nem pela felicidade. O único bem que ainda podem almejar é o de poderem descansar em paz serena", escreve aqui, pela boca de uma das personagens centrais, a autora de obras tão marcantes como A Saga de Gösta Berlings (1891) e A Viagem Maravilhosa de Nils Holgersson Através da Suécia (1906-1907).

O Tesouro fala-nos do bem e do mal, tomando partido. Nada aparentemente mais fora de moda para os cultores do relativismo moral. Mas nada mais eterno: este dualismo originou mais de mil anos de excelente literatura.

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 05.06.17

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Livro cinco: Coração de Cão, de Mikhail Bulgakov

Tradução de Sílvia Valentina

Edição Alêtheia, 2014

168 páginas

 

Escrita vertiginosamente entre Janeiro e Março de 1925, esta novela constitui uma poderosa sátira à Rússia vermelha. Um retrato impressivo desse colossal embuste a que a propaganda comunista da época chamava o “homem novo” soviético. Propaganda que logo encontrava eco no Ocidente europeu, onde nunca faltaram intelectuais disponíveis a entoar mil hossanas aos putativos ventos da liberdade que soprariam de Moscovo. Como o tempo comprovou, dando razão a uns quantos cépticos, não havia liberdade alguma. Ainda antes de o estalinismo assentar como bloco de betão no antigo país dos czares, já as sementes do totalitarismo estavam lançadas por Lenine, que há cem anos fundou o Estado soviético.

A acção da novela concentra-se num prédio moscovita, pertencente às chamadas classes dominantes no tempo pré-revolucionário e confiscado por “populares” sob o comando de vigilantes vanguardas revolucionárias. Só um irredutível inquilino mantém ao dispor um piso de várias assoalhadas: o professor Filipe Filipovich Preobrajensky, autorizado a manter clínica no domicílio.

O professor não disfarça: é um nostálgico dos tempos antigos. “Um dia, quando tiver tempo, hei-de estudar o cérebro e vou demonstrar que toda esta balbúrdia é simplesmente um delírio doentio.” E assim faz: recolhe em casa um cão vadio, enxotado por todos na rua, alimenta-o e acarinha-o, acabando por sujeitá-lo a uma experiência inédita: enxerta uma hipófise e um par de testículos humanos no animal.

Charik, o transplantado, acaba por transformar-se num homo sovieticus. Bebe vodca a toda a hora, arrota à mesa, odeia teatro por servir de palco à “contra-revolução” e passa a ter como livro de cabeceira “a correspondência de Engels com o… ah, como é que o raio do homem se chama… Kautsky”. Do passado canino quase só conserva uma atávica aversão a gatos.

Bulgakov (1891-1940), romancista e dramaturgo de enorme talento, acabou proscrito pela ditadura, que o condenou ao ostracismo. As suas obras foram proibidas durante décadas: este Coração de Cão, por exemplo, só teve edição legal em 1987, já com os ventos da perestroika lançados por Mikhail Gorbatchov, futuro Nobel da Paz.

O escritor obteve uma vitória póstuma: a União Soviética - que oprimiu toda a criação artística - extinguiu-se, enquanto esta sátira sobreviveu incólume.

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 04.06.17

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Livro quatro: Os Filipes, de António Borges Coelho

Edição Caminho, 2015

295 páginas

 

É talvez o período menos conhecido da História de Portugal. Um período que parece relegado pelo nosso inconsciente colectivo para as brumas da memória. E no entanto os sinais desagregadores dos conceitos de pátria e nação neste mundo globalizado deviam levar-nos a analisar com muita atenção estas seis décadas em que, devido a uma gravíssima crise dinástica, estivemos submetidos ao jugo de Castela. Numa relação desigual desde logo em termos demográficos: os castelhanos eram então 6,6 milhões, enquanto os portugueses residentes no rectângulo europeu não excediam 1,5 milhões.

Seis décadas (1580-1640) em que se sucederam no trono de Portugal três reis espanhóis, que em tese garantiam a independência do nosso reino, em regime de união dinástica sob o mando dos titulares da coroa imperial espanhola, que foram asfixiando em grau crescente as nossas liberdades.

António Borges Coelho desvenda-nos o essencial da dinastia filipina num livro que merece elogios a vários níveis: pelo rigor, pelo olhar abrangente e despido de preconceitos. E também pela sua inegável qualidade literária. Os Filipes – quinto volume da História de Portugal, que tem sido editada em segmentos pela Caminho – pode ler-se perfeitamente como obra autónoma.

Foram três reis muito diferentes. Filipe II (o I de Portugal) era neto de D. Manuel I e fez-se valer de poderosos argumentos jurídicos para conquistar a coroa lusitana. Este monarca a quem chamaram Prudente falava fluentemente o nosso idioma e tinha genuíno apego à terra de sua mãe, a infanta D. Isabel. Entre 1581 e 1583 permaneceu 20 meses em Lisboa, fugazmente transformada em capital da Ibéria. “A princípio guardou, no essencial, as leis e privilégios do reino de Portugal e procurou arredar a ‘melancolia’ dos portugueses que preferiam o rei Prior do Crato”, observa o historiador.

Bem diferentes foram os sucessores. Filipe III (II de Portugal) esteve mais de vinte anos sem pisar solo português. Entronizado em 1598, só aqui se dignou vir em 1619: demorou-se quatro meses, quase sem contactar o povo, e regressou de vez a Madrid. O terceiro Filipe (quarto rei com este nome em Espanha) nunca se dignou fazer aclamar em Lisboa ou aqui prestar juramento destinado a “guardar os privilégios do reino”.

Os atentados contínuos à nossa soberania, os impostos cada vez mais pesados, as violações impunes dos nossos territórios coloniais e a mobilização forçada de mancebos portugueses para as guerras europeias de Castela fizeram esgotar a paciência nacional. O golpe dos conjurados no 1.º de Dezembro pôs fim ao domínio castelhano, "reinventando a monarquia portuguesa" e devolvendo-nos a soberania que começara a afogar-se nos areais de Alcácer Quibir.

Fica-nos o aviso: a História pode sempre repetir-se. Até por isso este livro merece leitura atenta.

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 03.06.17

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Livro três: A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade

Edição Companhia das Letras, 2017

248 páginas

 

É um dos mais marcantes livros da poesia de língua portuguesa do século XX. Fruto de várias encruzilhadas – na história humana, na vida do Brasil, no percurso literário do próprio autor. A Rosa do Povo traz preocupações sociais e até políticas para o modernismo poético, tingindo-o de uma linguagem coloquial irmanada ao discurso do homem da rua.

O Brasil vivia em ditadura e o mundo atravessava a mais devastadora das guerras quando Carlos Drummond de Andrade publicou esta obra que reúne 55 poemas – escritos entre 1943 e 1945, quase todos em verso livre, sem preocupações de rima ou de métrica, mesclando escrita erudita com vocabulário comum. Uma mescla simbolizada no próprio título: se a rosa convoca o classicismo romântico, o povo alarga os horizontes espaciais e temporais do poeta, situando-o como cidadão do mundo.

Este foi, durante anos, o título de referência máxima na produção poética de Drummond (1902-87), figura ímpar da lírica de expressão lusíada, além de contista e cronista, célebre pelos seus aforismos nunca destituídos de um singular veio irónico e de um olhar compadecido perante as singularidades da natureza humana.

A Companhia das Letras – prestigiada chancela brasileira agora também com sede em Portugal – relançou A Rosa do Povo (1945) numa edição de irrepreensível bom gosto, que honra o espírito desse esteta que Drummond nunca deixou de ser.

É a ocasião propícia para recuperarmos o contacto com o autor mineiro, carioca por adopção, lusófono de raiz e cultura. No seu poema Visão 944, marcado pela dilacerante angústia desse habitante de um planeta em guerra: “Meus olhos são pequenos para ver / a massa de silêncio concentrada / sobre estes campos e estes oceanos / que esperam a passagem dos soldados.” Ou na carta redigida em verso, sob o signo da urgência, aos sitiados de Estalinegrado: “As pobres e prudentes cidades, outrora gloriosas, entregues sem luta, / aprendem contigo o gesto do fogo.”

Porque nada do que está no mundo é alheio à sensibilidade poética. Como nos ensinou António Gedeão, aliás contemporâneo de Drummond, “todo o tempo é de poesia / desde a névoa da manhã / à nevoa do outro dia.”

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 02.06.17

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Livro dois: Singularidades, de A. M. Pires Cabral

Edição Cotovia, 2017

157 páginas

 

O conto continua a ser um parente pobre na literatura portuguesa. Como se alguns dos nossos maiores escritores – de Eça a Miguéis, de Sophia a Cardoso Pires – não tivessem sido cultores do género.

A edição de contos neste país que só acorre às livrarias em busca de bestas céleres – para recorrer à deliciosa expressão de Alexandre O’ Neill – é um acto de resistência cultural que merece louvor. E que propicia ao leitor boas supresas.

Aconteceu-me com este voluminho intitulado Singularidades: aqui se agrupam oito histórias autónomas – todas com nome próprio elevado a título. Quadros do quotidiano marcados pela suave intromissão do insólito nas roldanas da rotina. Numa linguagem cuidada e precisa, sem desperdício de vocábulos, A. M.Pires Cabral confirma-se aqui como um arguto observador de comportamentos humanos, sem anátemas nem juízos morais. Basta-lhe sondar o rasto de umas quantas notas soltas na partitura dos dias.

Flávio Cerqueira, analista num laboratório clínico e solitário bebedor nocturno. Honório Rocha, suposto agente de seguros com um segredo por desvendar. Gabriel Guerra, ex-activista universitário travestido em charlatão com bola de cristal. Hipólito Clemente, quadro superior de uma editora assediado por um imbecil armado em intelectual. César Gaspar, pacato organizador de abstrusas antologias. Rodolfo Isidro Palha, hipocondríaco assombrado pela coincidência entre as iniciais do seu nome e as do piedoso voto em latim que ornamenta muitas sepulturas – Requiescat in pace. Artur Pacheco, exaltado “colunista de causas” num jornal de província. Basileu Simões, doente terminal que faz um pedido surpreendente à mulher.

Nem sopro de epopeia nem vanguarda literária: apenas um conjunto de narrativas tocadas pelo prazer antigo de contar uma história. A nossa civilização começou a construir-se assim, graças à sedução do relato oral, entretanto passado a escrito. É bom saber que esta arte de narrar ainda se cultiva com esmero, mesmo com tantas bestas céleres a cruzar o horizonte.

Dez livros para comprar na Feira

Pedro Correia, 01.06.17

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Livro um: A Máquina do Tempo, de H. G. Wells

Tradução de Tânia Ganho

Edição Antígona, 2016

156 páginas

 

Há livros que nunca passam de moda: esta é uma das melhores definições de um clássico. Seja qual for o género literário. Neste caso, a ficção científica, de que Herbert George Wells (1866-1946) foi pioneiro e mentor.

O escritor britânico - quatro vezes nomeado para o Nobel - transporta-nos nestas páginas ao sonho máximo do ser humano: dominar o tempo, transformando-o num precioso aliado em vez do implacável adversário que nos vai consumindo células e filamentos nervosos. Dando largas à ideia de que “o tempo é uma quarta dimensão e que o presente normal é uma secção tridimensional de um universo quadridimensional”, como acentuou num prefácio à reedição de 1931.

É literatura, sim. Mas é também, de algum modo, filosofia. Com a marca do socialismo utópico que serviu de bandeira a boa parte da ficção de Wells, inicialmente seduzida pelo darwinismo social e cada vez menos idealista à medida que testemunhava uma atmosfera de iniludível declínio da civilização ocidental, irreversível aos olhos do autor que nos legou A Guerra dos Mundos, O Homem Invísivel e A Ilha do Doutor Moreau.

A Máquina do Tempo surgiu inicialmente em 1895, em vésperas da alvorada de um novo século supostamente destinado a inundar a humanidade de luz.

É neste contexto que decorre a insólita digressão do anónimo Viajante no Tempo rumo a uma sociedade do longínquo futuro, dissociada de realidades tão básicas aos nossos olhos como a família ou a habitação individual. Comunismo implantado enfim no ano 802.601? Assim parecia. “Aquelas pessoas do futuro eram todas iguais”, relata o viajante quando a máquina que o transportou o devolve ao convívio com os seus contemporâneos.

Sonho ou pesadelo? O facto é que as aparências iludem – em qualquer época e em qualquer lugar. Já neste romance de um Wells ainda jovem as páginas finais contrariam o optimismo inicial. Como se delas emanasse um presságio do mundo que havia de dissolver-se na lama das trincheiras, ao som dos tambores de guerra.

Dez livros para comprar no Natal

Pedro Correia, 10.12.16

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Livro dez: Macbeth, de William Shakespeare

Tradução de José Miguel Silva

Edição Relógio d' Água, 2016

149 páginas

 

Um clássico, ensinou-nos Italo Calvino, é uma obra literária que nunca cessa de dizer aquilo que tem a dizer. Felizmente ainda existem entre nós editoras que apostam nos autores clássicos – aqueles que conseguiram seduzir sucessivas gerações de leitores em diversas latitudes e continuam a possuir o dom de nos elevar acima da mediania.

Um dos mais recentes clássicos reeditados entre nós, em irrepreensível tradução de José Miguel Silva, é este Macbeth – que integra o quarteto de tragédias capitais nascidas do génio de William Shakespeare (1564-1616), em conjunto com Hamlet, Otelo e O Rei Lear. Ascensão e queda de um tirano assombrado pelas suas vítimas, este drama em cinco actos é uma viagem à face mais sombria da política, simbolizada no usurpador do trono escocês e da sua mulher, Lady Macbeth, uma das maiores vilãs da história da literatura, que implora desta forma aos espíritos malignos: “Despojai-me do meu sexo e cumulai-me / de terrível crueldade. Que meu sangue / se adense, impedindo a passagem ao remorso; / que nenhuma compaixão possa abalar / os meus ímpios desígnios, interpondo-se / entre eles e os seus efeitos.”

Todas as paixões andam à solta neste magnífico texto teatral em que Shakespeare leva mais longe do que em qualquer outro a sua indisfarçável “extravagância da imaginação”, como acentuou o crítico britânico William Hazlitt (1878-1830) num ensaio incluído em posfácio desta edição. A Relógio d’ Água, recorde-se, já deu à estampa Henrique IV, Ricardo III, Hamlet, Romeu e Julieta e O Mercador de Veneza, entre outros títulos do cânone shakesperiano, revisitado com justificado interesse neste ano em que se assinala o quarto centenário da morte do escritor.

Para George Steiner, Shakespeare era “um ser cujos poderes criativos, num certo e determinado sentido, rivalizavam com os da natureza e da divindade”. Na mesma linha, Harold Bloom enaltece-o como “único rival possível para a Bíblia em termos de poder literário”. Atributos bem patentes neste Macbeth, cheio de solilóquios que ilustram o enigma da condição humana no ilusório palco da vida, tantas vezes percorrido por torrentes de “som e fúria” em direcção ao nada.

Dez livros para comprar no Natal

Pedro Correia, 09.12.16
 

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Livro nove: LX80, de Joana Stichini Vilela e Pedro Fernandes

Edição Dom Quixote, 2016

272 páginas

 

Por mais que as mensagens em voga nos instiguem a “viver o presente”, seja lá o que isso for, o revivalismo é uma fonte inesgotável de descobertas capazes de somar o conhecimento ao prazer quando transpostas para livro. É o caso deste volume, que merece ser cumprimentado pela escrita ágil e elegante, aliada ao notório bom-gosto gráfico. LX80 insere-se numa série, que já nos conduziu às duas décadas anteriores, sempre centradas na capital.

Está paginado nuns casos em forma de revista e noutros como caderneta de cromos, percorrendo toda a década que entre nós começou com a comoção nacional gerada pela trágica morte do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro e terminou com Marcelo Rebelo de Sousa a divertir o País com um mergulho no Tejo que animou a campanha autárquica de 1989 sem no entanto contribuir para o seu sucesso nas urnas em Lisboa.

Foi uma década de nomes inconfundíveis – e em certos casos irrepetíveis. A década de António Variações, Ana Salazar, Kruz Abecasis, Tomás Taveira, José Maria Tallón, Carlos Paião, Fernando Chalana, Paulo Futre, Pedro Caldeira, Dona Branca. A década do Frágil e do incêndio do Chiado. A década das Amoreiras (que nasceram) e do Monumental (que morreu).

Também a década do Pão com Manteiga e do Independente. A década do Kilas e do Serafim Saudade. A década das rádios-pirata e do Bloco Central. A década da Vila Faia e dos Heróis do Mar. A década da televisão a cores e da banca privada. A década dos aquaparques e do bebé-proveta. A década de muitas e variadas e por vezes desvairadas siglas: AD, UHF, PRP, TSF, FMI, CEE.

Foi ainda a década da vitória do Sporting por 7-1 em Alvalade, frente ao Benfica – a diferença mais desnivelada de sempre entre os dois históricos rivais do futebol português.

Uma década inesquecível, aqui revivida por Joana Stichini Vilela e Pedro Fernandes. Para alguns de nós parece ter sido ontem, para outros terá sido há uma eternidade. O livro, confesso, deixou-me nostálgico: nada a objectar, tudo a favor.

Dez livros para comprar no Natal

Pedro Correia, 08.12.16

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Livro oito: O Segredo dos Seus Olhos, de Eduardo Sacheri

Tradução de Vasco Gato

Edição Alfaguara, 2016

309 páginas

 

Já conhecíamos a  belíssima longa-metragem de Juan José Campanella – galardoada com o Óscar de 2009 para melhor filme não falado em inglês. Faltava a obra literária que serviu de ponto de partida para a película: O Segredo dos Seus Olhos, belo romance de Eduardo Sacheri, um professor de História nascido em 1967 na capital argentina, autor de seis livros de ficção.

É um misto de thriller com melodrama, tendo em fundo um fio de intriga política, percorrido por alusões à implacável ditadura militar argentina das décadas de 70 e 80. Anos de chumbo, em que o valor da vida humana caiu a pique e o futuro permanecia envolto em nevoeiro.

Um crime horroroso cometido em Buenos Aires vai marcar algumas vidas para sempre. Incluindo a de Benjamín Chaparro, vice-secretário num tribunal de instrução e fracassado aspirante a escritor. No decurso de longas horas de vigília, ele acaba por solucionar esse crime que permaneceu demasiados anos enterrado sem estar encerrado. Um crime que funciona como sugestiva alegoria de uma sociedade irremediavelmente doente – sob o signo do silêncio, do sofrimento e da solidão.

Chaparro, como tantos outros, voga desamparado na espuma de um quotidiano sem esperança: num mundo concentracionário, corrompido pelo vírus totalitário, o mínimo descuido pode traçar a fronteira entre a vida e a morte. E no entanto este modesto funcionário público insiste em ir ao encontro da justiça e da verdade, mesmo que isso faça estilhaçar os últimos vestígios que nele subsistem de crença na natureza humana.

“Não vemos a dor. Não podemos vê-la, simplesmente porque a dor não se vê em circunstância alguma. Podem ser vistos, quando muito, alguns dos seus mínimos sinais exteriores. Mas esses sinais sempre me pareceram mais máscaras que sintomas. Como poderá expressar o homem a angústia atroz da sua alma? Chorando a jorros e soltando alaridos? Balbuciando umas palavras desconexas? Gemendo? Vertendo umas quantas lágrimas? Eu sentia que todas essas demonstrações possíveis de dor eram apenas capazes de insultar essa dor, menosprezá-la, profaná-la, colocá-la à altura de demonstrações gratuitas.”

Palavras que ficam connosco muito depois de as lermos. Dificilmente haverá maior elogio a um livro, seja ele qual for.

Dez livros para comprar no Natal

Pedro Correia, 07.12.16

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Livro sete: O Homem Fatal, de Nelson Rodrigues

Edição Tinta da China, 2016

368 páginas

 

Foi um dos maiores prosadores da língua portuguesa do século XX. E um dos mais insuportáveis cronistas da imprensa brasileira para os seus alvos de estimação, que dardejava com impiedoso sarcasmo e um perfeito domínio estilístico.

Um desses alvos era D. Helder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife. “D. Helder só olha o céu para saber se leva ou não o guarda-chuva”, dizia dele Nelson Rodrigues (1912-80), pré-moderno assumido, alérgico aos “padres de passeata” e à esquerda em geral. “O Reacionário”, assim se autodefinia – de tal maneira que deu este nome a um dos seus volumes de crónicas, surgido em 1977.

Desse e de outros dois – O Óbvio Ululante (1968) e A Cabra Vadia (1970) – Pedro Mexia recolheu 80 crónicas, a que introduziu prefácio e reuniu num livro intitulado O Homem Fatal. Um dos acontecimentos editoriais do ano em Portugal: era chocante a ausência no mercado nacional das obras deste dramaturgo, romancista e jornalista que mantém uma legião de leitores fiéis em ambas as margens do Atlântico.

Oriundo de uma família de repórteres tarimbeiros, que gostava de equiparar aos “remadores de Ben-Hur”, Nelson Rodrigues começou a trabalhar em jornais com apenas 13 anos. Fez o tirocínio da profissão como redactor desportivo e criminal: cultivava hipérboles e costumava dizer que manchete sem ponto de exclamação era “jornalismo castrado”.

Publicadas durante anos na última página do diário O Globo, as suas confissões bastavam para assegurar a popularidade do periódico, polarizando opiniões: ou se amava ou se detestava este admirador de Eça de Queirós que enriqueceu o léxico comum do Brasil com expressões da sua autoria. Exemplos: “óbvio ululante”, “cabra vadia", “calor de derreter catedrais”, “mau tempo de quinto ato do Rigoletto”. Sem esquecer a "grã-fina com narinas de cadáver”, que no estádio do Maracanã perguntava: "Quem é a bola?"

Poucos como ele cultivavam com tanto requinte a arte do aforismo, que ia repetindo de crónica em crónica sem recear vencer o leitor pelo cansaço. Alguns ascenderam à glória do provérbio: “Toda a unanimidade é burra”; “todo canalha é magro”; “invejo a burrice porque é eterna”; “a televisão matou a janela”; “o dinheiro compra tudo – até amor verdadeiro”, “a companhia de um paulista é a pior forma de solidão”.

Frase imortais deste pernambucano de nascimento mas carioca adoptivo, um sedentário que só viajava nas letras, anacronismo vivo que supera incólume todos os testes do tempo.

Dez livros para comprar no Natal

Pedro Correia, 06.12.16

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Livro seis: Cartas por um Sonho, de Ángeles Doñate

Tradução de São Amaral

Edição Suma de Letras, 2016

372 páginas

 

A morte do romance, tal como prenunciaram os cultores do nouveau roman no seu labiríntico processo de “desconstrução da narrativa ficcional”, era manifestamente exagerada. Meio século depois, o romance como género literário está bem e recomenda-se – e contagia até outros formatos, incluindo as séries televisivas de qualidade, onde as regras da narrativa clássica são assumidas sem sombra de constrangimento.

As modas literárias nascem e morrem, mas não se apaga na espécie humana o gosto de contar uma história – tenha os saltos cronológicos que tiver, recorra a sofisticados jogos metafóricos ou a vocabulário da rua, utilize a primeira pessoa do singular ou o plural majestático, seja narrada de trás para diante ou da frente para trás.

Prender a atenção de um vasto número de leitores com uma narrativa de alcance universal é um dom revelado pela escritora catalã Ángeles Doñate neste seu romance de estreia a solo, surgido originalmente em 2015, sob o título El invierno que tomamos cartas en el asunto. Cultora da ficção epistolar, de que dá tão recomendáveis provas nesta obra, a autora constrói um enredo para todas as idades, capaz de dar um bom filme em qualquer idioma.

Eis o ponto de partida: para que serve um carteiro num mundo onde já ninguém redige cartas à moda antiga e a tecnologia digital condenou à extinção o gosto pela escrita manual? Sara, a carteira de uma aldeia de montanha chamada Porvenir, prepara-se para ser transferida da povoação: o posto do correio inaugurado há mais de um século será extinto por falta de utentes. Nasce aí um surpreendente movimento de solidariedade, que mobilizará as pessoas mais diversas – e, sem nenhuma delas suspeitar, várias vidas mudarão dessa forma. Porque “quando alguém escreve uma carta, entrega parte do seu tempo e da sua alma”.

Êxito editorial em Espanha, já traduzida para vários países, esta obra confirma que o romance atravessa um período de inegável fulgor, contrariando as velhas previsões dos seus supostos coveiros. Assim continuará. Como se o tempo ficasse suspenso e todos os sonhos se tornassem possíveis face ao sortilégio da letra impressa.

Dez livros para comprar no Natal

Pedro Correia, 05.12.16

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Livro cinco: A Vida e a Morte dos Nossos Bancos, de Helena Garrido

Edição Contraponto, 2016

215 páginas

 

Este livro cumpre uma missão de serviço público. Num tom sereno e reflectido mas sempre acutilante, a jornalista Helena Garrido descreve a sucessão de lamentáveis episódios que fizeram tremer o sistema financeiro português, levando à queda do BPN, do BPP, do BES e do Banif, à descapitalização da Caixa Geral de Depósitos e ao esforço acrescido dos contribuintes, através dos impostos, para evitar que o rombo fosse ainda maior. “As responsabilidades financeiras assumidas pelo Estado nos três casos de morte bancária somam 14 mil milhões de euros, quase tanto quanto o Estado recebeu em IVA no ano de 2015”, observa a autora.

Por incompetência, incúria, negligência ou dolo, a banca nacional caucionou durante duas décadas os negócios mais ruinosos – na construção civil, na promoção imobiliária, em empréstimos milionários para aquisição de terrenos, em insustentáveis parcerias público-privadas, nos “grandes projectos estratégicos” que por vezes nem chegaram a sair do papel mas contavam com generosos financiamentos, afinal a fundo perdido. E a banca, por sua vez, alimentava-se de uma ilusória espiral de crédito que durou até o Banco Central Europeu fechar a torneira.

Foram os anos da “grande farra”, como os classifica a autora, ex-directora do Negócios e comentadora assídua de temas económicos em jornais e canais televisivos. Os banqueiros traíram a confiança dos depositantes para praticarem actos inversos ao que deu fama ao Rei Midas, fazendo volatilizar o dinheiro. Em sete anos, desapareceu 20% do sistema bancário português. Só um gestor, José Oliveira e Costa, esteve algum tempo preso. Mais ninguém.

Os exemplos multiplicam-se. Eis um dos mais chocantes: o BES emprestou três mil milhões de euros à sua filial angolana, o BESA, mas quase toda a carteira de crédito sumiu-se: “está perdida, alguém ficou o com o dinheiro, não há a quem reclamar.” No auge da euforia dos projectos turísticos, o próprio Estado, através da Estamo, “comprou a prisão de Pinheiro da Cruz para fazer ali um empreendimento com campo de golfe” que nunca avançou.

A Vida e a Morte dos Nossos Bancos lê-se de um fôlego e com crescente indignação perante este ruinoso panorama, que beneficiou de estreitas cumplicidades do poder político e da chocante complacência do Banco de Portugal, que sob diferentes administrações agiu sempre tarde e quase sempre mal. E nós a pagarmos tudo.