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Delito de Opinião

Informação ou propaganda

Pedro Correia, 23.08.23

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Reparem nas notícias. 

Nunca há fogos nos países do terceiro mundo. Nunca arde nada na Índia. Nem na China. Nem na África do Sul. Nem no Irão. Muito menos na Rússia. Ainda menos no Brasil, agora que está lá Lula da Silva (com a ajuda do amigo José Sócrates) a estancar o desmatamento na Amazónia.

Incêndios florestais? Só no sinistro "Ocidente". Na Europa Ocidental, onde vivemos. E, claro, na tenebrosa América do Norte.

Isto não é informação. É ideologia.

Alguns vão atrás, convencidos de que é a verdade. Mas já questionava o velho Pilatos muitos antes de figurar no Credo cristão: «O que é a verdade?»

Homenagem ao esquecimento

Paulo Sousa, 23.06.23

O interior foi esquecido.

A partir desta frase poderíamos pensar que o interior deixou de sofrer de falta de memória. Foi esquecido, mas felizmente, já não o é.

Infelizmente a realidade impede que tal plasticidade da língua portuguesa aqui se aplique.

O interior foi definitivamente esquecido.

O esquecimento não começou ontem, nem há meia dúzia de anos. É um processo já quase antigo e que dificilmente será interrompido.

Os incêndios de 2017 ficarão inscritos na nossa memória colectiva.

Avalio o incêndio do Pedrogão Grande como o culminar desse processo de esquecimento do interior, que foi reforçado pelas ortopedias realizadas uns meses antes na Administração interna e que propiciaram o alavancar da desgraça.

De forma diferente, o incêndio do Pinhal de Leiria, do Pinhal do Rei, propriedade do estado português, do qual sobrou pouco mais de dez por cento, resulta da banalização da mediocridade entre os nossos governantes e da falta de estima para com o que é nosso. Depois de toda a desgraça o que menos precisávamos era de um parolo urbanita ir ali plantar sobreiros, mas que só reforçou a minha opinião.

Há dias, foi aberto ao público o, assim designado, Memorial às Vítimas do Incêndio do Pedrogão Grande.

É certo que o aparato mediático que se dedica a eventos onde se cortam fitas, se descerram placas, se fazem discursos para a imprensa, se deglutem uns petiscos e refrescos, para logo depois, dali desaparecerem a 160 km/h, são tudo menos edificantes. Após a debanda, tudo será consumido nuns efémeros instantes televisivos e depois regressa o sossego. E o esquecimento.

Confesso que não aprecio este governo, composto por irresponsáveis, esquivos mentirosos e trapaceiros, mas tenho de reconhecer que foram coerentes quando decidiram que no dia em que este memorial fosse aberto ao público, não lá colocariam os chispes.

Falharam apenas no nome do monumento. Deveria ser o Esqueçorial* às Vítimas do Incêndio do Pedrogão Grande.

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Nuno Brites/Global Imagens

* Copiado do Henrique Monteiro

5 anos após os incêndios na Beira Alta

jpt, 15.10.22

 

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(Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

Passam hoje exactamente cinco anos sobre a segunda vaga dos incêndios de 2017 no distrito de Viseu, entre o concelho de Tondela e seus limítrofes, devastando a "Beira Alta", dessa vez causando mais de 40 mortos, a somar aos mais de 60 que haviam perecido durante o Verão anterior. Logo depois o meu amigo Miguel Valle de Figueiredo percorreu aquela região, que bem conhece pois os seus ascendentes dali eram oriundos, e durante três meses calcorreou mato, lugares, aldeias, vilas, encarou a gente que ali teima, desta ouvindo do horror de então e da violência posterior, advinda da arrogância burocrática de quem vem podendo - a memória desse trabalho foi publicada na "National Geographic", com texto de Gonçalo Pereira Rosa.

Nisso fotografou as "cinzas" promovidas pela fúria dos elementos, o desnorte nacional e a incúria estatal,. Enquanto uns, urbanos, se menearam vaidosos insanos, lamentando-se "de não ter tirado férias" ou, pelo contrário, "iam de férias" e pediam para "não os fazerem rir" a propósito destes e doutros assassinos fogos, e se gabavam de se preparar para as "cheias de inverno", inaugurando casas refeitas com dinheiro alheio, apregoando ter revolucionado as florestas como nunca desde a Idade Média, e se faziam entrevistar em quartel de bombeiros, o Miguel foi para aquele lá, verdadeiros "salvados" de um país que insiste em desistir de o querer ser por via do apreço que vota aos tocos que julga gente, e até elegível.

Dessas suas andanças, vindas do seu fervor de fotógrafo e do seu dever de cidadão, produziu um manancial iconográfico, uma verdadeiro arquivo para alimentar uma memória social do acontecido, deste sofrido que a história recente do país se mancomunou para gerar. E organizou a exposição "Cinzas" - paisagens, pois o pudor impeliu-o a evitar mostrar os retratos feitos dos violentados , 42 fotografias. A qual teve itinerância nacional. 

Agora, para assinalar os cinco anos sobre aquele momento a exposição é hoje mesmo, 15.10.2022, reapresentada em Tondela, no seu Quartel dos Bombeiros Voluntários, - concelho então tão devastado (só nele arderam mais de 400 casas, 219 das quais primeiras habitações). Será muito pedagógico ir lá ver o horror e desperdício que o mvf vagorosa e condoidamente captou. Para que não o esqueçamos. Mas também para que tomemos consciência de que, como diz agora o fotógrafo, "5 anos sobre o terrível incêndio que devastou grande parte da Beira Alta e, como se viu depois em Monchique ou mais recentemente na Serra da Estrela, independentemente de tudo (i.e. alterações climáticas), pouco se aprendeu, ou melhor, o que se aprendeu não serviu de muito na prevenção destas tragédias."

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 (Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

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 (Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

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 (Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

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 (Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

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 (Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

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 (Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

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 (Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

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 (Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

 

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(Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo)

Está no Governo a fazer o quê?

Pedro Correia, 20.08.22

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Foto: Global Imagens

 

Portugal sofre neste momento uma das maiores catástrofes ambientais de que há memória. Cerca de um terço do Parque Natural da Serra da Estrela - património nacional, reserva ecológica europeia - já foi consumido pelas chamas. Há fortes suspeitas de incúria e de incompetência no combate a esta acção devastadora das chamas, como tem sido reportado na comunicação social. Incluindo o registo de aviões a fazerem descargas de água em locais onde nada ardia.

Mas não só ali. Ontem, registavam-se 95 fogos florestais e agrícolas em todo o País, tendo duplicado para 26% o registo de acções criminosas, segundo o ministro da Administração Interna. A linha ferroviária do Norte foi encerrada quando as chamas já ameaçavam as carruagens, como ficou registado em vídeo por passageiros.

 

Neste quadro, potencialmente agravado pela perspectiva de subida das temperaturas, o que fez o Governo? Esperou por esta sexta-feira para anunciar que no domingo Portugal entrará em «situação de alerta».

Porquê tão lenta reacção?

Porquê este absurdo hiato de 48 horas?

Ninguém sabe explicar.

Muito menos a secretária de Estado da Protecção Civil, Patrícia Gaspar, que ontem à noite compareceu sorridente nos estúdios da SIC para uma entrevista em que se revelou incapaz de responder às perguntas feitas pelo jornalista Rodrigo Pratas.

«Uma situação deste género foi de alguma forma trágica», disse esta cultora de eufemismos, chamando «ocorrência» à destruição florestal em curso na Serra da Estrela. Enquanto, confrontada com sucessivas questões concretas do seu pelouro, ia balbuciando: «Não tenho informação.»

 

Neste trágico Verão, já arderam 92 mil hectares no nosso país. Portugal é hoje o terceiro Estado da União Europeia com mais área queimada em números absolutos, sendo superado apenas por Espanha e Roménia, países com maior superfície territorial. 

Perante isto, o que disse a secretária de Estado, que anteriormente foi número dois da Protecção Civil a nível nacional? 

Algo espantoso, depois de consultar um papel. Afirmou ela: «Os algoritmos dizem que a área ardida que devíamos ter devia ser 30% superior.»

Patrícia Gaspar considera portanto, com base na esforçada consulta à sua cábula, que ainda ardeu pouco. Apenas 70% do território que estaria previsto no tal canhenho algorítmico foi consumido pelas chamas.

Em vez de nos indignarmos, devíamos até comemorar. 

 

Oiço estes dislates e uma vez mais me interrogo: esta gente está no Governo a fazer o quê?

Ceder energia, arder por indiferença

João Pedro Pimenta, 22.07.22
Felizmente já estão em fase de resolução (espero, porque em dois casos voltaram), mas os grandes incêndios da última semana, tirando o da Guarda e o do Fundão, foram todos em Trás os Montes. E à parte de um perto de Bragança, todos no distrito de Vila Real - Chaves, Vila Pouca, Murça, até o de Baião invadiu o Marão. Entre aldeias habitadas por idosos, que por isso mesmo têm mais dificuldade em limpar as suas propriedades, fragas difíceis de alcançar e pinhais dispersos, arderam milhares de hectares, inúmeras árvores que eram o sustento das populações, algumas casas e morreram inúmeros animais e três pessoas (apesar de tudo muito menos do que em 2017).
 
Tudo isso poderia levar-nos para a discussão do abandono, desertificação e envelhecimento do interior, mas houve um pormenor em que poucos notaram: a não muitos quilómetros dos incêndios, em Ribeira de Pena, António Costa inaugurava esta semana a nova central hidroeléctrica do Tâmega, três albufeiras que se destinam à produção de electricidade. Ou seja, um empreendimento que sacrificando parte das terras em redor, por norma do interior, pretende fornecer energia a parte do país, mas aparentemente sem grandes contrapartidas às populações da região. Vimos o mesmo com as barragens no Planalto Mirandês, vendidas sem que os municípios recebessem o que quer que fosse. Ou com as enormes albufeiras no Barroso, que poucos benefícios palpáveis vieram trazer à região. Os tais "empregos" e "oportunidades" não passaram de ilusões e a população decresceu a olhos vistos.
 
Este é o drama permanente do interior, particularmente de Trás os Montes: continuamente desbastado para fornecer energia ao resto do país, mas esquecido em tudo o resto e notícia apenas quando há tragédias como os fogos, consequência do abandono e do desinteresse por parte de sucessivas administrações que sempre olharam para a região apenas como reserva de energia. E vamos lá a ver se não abrem umas crateras para explorar lítio a mando do secretário de estado Galamba, o perfeito exemplo do governante que se está nas tintas para o território desde que tire de lá benefícios (nem contrapartidas se lhes pode chamar). Suprema e cruel ironia, a da zona que usa a água para o fornecimento de energia necessitar tanto dela para salvar o seu território.
 
Fogo em Murça possui uma frente ativa e lavra em zona sem acessos

Juntos seguimos e conseguimos *

Paulo Sousa, 05.01.22

“A partir das últimas décadas do século XX, este Pinhal tem sido largamente negligenciado. Para se ter uma ideia deste desinteresse, basta referir, por exemplo, que, no domínio dos recursos humanos, em 1980 havia 144 trabalhadores rurais, que, segundo os técnicos da altura, “não chegam para resolver cabalmente os problemas da instalação e tratamento dos povoamentos”, 29 guardas florestais, 4 mestres e 9 técnicos (engenheiros silvicultores). Hoje há 30 trabalhadores rurais (sobretudo mulheres), não há guardas a dependerem desta Direcção Geral (a Polícia Florestal que surgiu em sua substituição actua sobretudo na fiscalização da caça e pesca nos concelhos de Leiria, Marinha Grande, Pombal, Batalha e Porto de Mós) e há apenas 2 técnicos para uma zona que compreende Marinha Grande, Pombal, Figueira da Foz e Serra dos Candeeiros.

As tarefas dos trabalhadores rurais passam sobretudo por medir pinheiros fiscalizar cortes, pintar casas e pontes. Nas matas do Pedrogão e do Urso, que juntas perfazem 8.000 ha, trabalham apenas duas mulheres. O número é claramente insuficiente, segundo o responsável pela administração deste Pinhal, acrescentado ainda que este “está ao abandono”. Efectivamente o orçamento de 2003 para limpeza e conservação da Mata foi zero. Por outro lado, ela rende anualmente ao estado cerca de milhão e meio de euros.”

 

Vidas de Carvão, As carvoeiras do Pinhal do Rei
de Paula Lemos
Imagens & Letras - 2007

 

O grande incêndio de 2017 destruiu 86% da área da mata conhecida por Pinhal do Rei. O texto acima, quase premonitório, foi publicado dez anos antes deste evento trágico. Já aqui postei sobre a demora na sua replantação e de como é difícil passar por ali, lembrando toda aquela imensidão de verde, que nos idos anos 40 inspirou o poeta Afonso Lopes Vieira.

 

Catedral verde e sussurrante, aonde
a luz se ameiga e esconde
e aonde, ecoando a cantar
se alonga e se prolonga a voz do mar,
ditoso o Lavrador que a seu contento
por suas mãos semeou este jardim

 

Quem não conhece a zona, quem ali não tenha construído memórias e desconheça a sua dimensão, não imagina o sofrimento de quem visita a mata.

Na sua largura máxima a mata tem 8.400 mt e 18.700 mt no seu maior comprimento, num total que ultrapassa os 11.000 ha divididos em 342 talhões. São necessários longos minutos de carro para atravessar a zona. É uma imensidão de área que nunca mais voltarei a ver como a conheci.

Não chegasse a incúria que nos levou a esta tragédia, António Costa, apostado em desrespeitar o “ditoso Lavrador” de Afonso Lopes Vieira, uns meses após a tragédia visitou a área e mostrou-nos que o que ficava ali bem eram sobreiros. Os nossos antepassados eram uns palermas e ele é que sabe.

Em Abril passado, e perante a decisão do Governo de adiar mais uma vez a sua replantação, o PS da Marinha Grande manifestou “a sua mais profunda desilusão e descontentamento" o que é demonstrativo da falta de sensibilidade com que se governa o país a partir de Lisboa.

Muito mais do que em qualquer metáfora literária, plantar uma árvore é realmente oferecer algo às próximas gerações, e nisso, estes adiamentos consecutivos dizem muito da forma como este governo lida com o futuro.

Entretanto, as acácias vão progredindo e os sobreiros plantados pelo senhor das meias verdes, sucumbiram.

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Foto minha tirada a 3 de Janeiro de 2020

* Slogan do PS para as eleições legislativas de 30 de Janeiro 

A incúria do Estado

Paulo Sousa, 18.10.20

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Esta semana assinalou-se o terceiro aniversário do incêndio que destruiu 86% da área da Mata Nacional de Leiria.

Logo de seguida e por recomendação do fucus groupAntónio Costa fez-se fotografar e filmar na plantação de sobreiros num dos talhões afectados. Ao mudar de espécie, de pinheiro para sobreiro, terá pretendido corrigir um erro com mais de 500 anos. El Rei Dom Dinis enganou-se ao escolher pinheiros e finalmente alguém ajuizado iria corrigir o erro. Logo depois a natureza, essa ingrata, fez com que os sobreiros não sobrevivessem naqueles areais e, talvez pela afronta, o governo decidiu entregar-lhe então a gestão daqueles 9.480 hectares.

Depois disso, e pelo facebook, soube de várias iniciativas de grupos de cidadãos identificados como amigos do Pinhal de Rei, que foram travados na sua vontade de replantar um talhão que fosse, pois esse processo teria de obedecer a um plano do ICNF.

Neste terceiro aniversário um grupo de cidadãos assinou uma carta pedindo explicações ao governo sobre o plano de recuperação desta área que equivale a 54% do concelho da Marinha Grande.

É tal a desolação que evito por ali passar. Hoje, pela segunda vez desde o incêndio, regressei a este espaço de que guardo recordações maravilhosas. Olhando em volta, tudo isso parece mais distante do que nunca. É uma dor de alma.

Para quem o quiser entender como tal, esta é mais uma prova da incúria do Estado, da sua incapacidade em resolver os assuntos que advoga como seus.

Este vídeo é por isso dedicado aos que acham que aquilo que precisamos é de mais Estado.

Incêndios na Amazónia

jpt, 26.08.19

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Mudei-me para Lisboa, regressei ao lar, agora reinstalei internet em casa, visito as redes sociais (e os muito mais interessantes blogs). Vejo que muitos discutem algo relativo aos incêndios na Amazónia. Muitos gritam contra Bolsonaro - são os mesmos que quando este apareceu o guinchavam contra os homossexuais, as mulheres e os negros, secundarizando a sua anunciada política amazónica. Na época isso não lhes era relevante, não estava nas suas agendas de bolso agitando-se. E outros, muitos, gritam contra os que gritam contra Bolsonaro - parece que a devastação da Amazónia já existia antes, descobrem, e isso sossega-os. Esganiçados, o que lhes interessa é criticar os esganiçados do BE e afins.

Mal comparado é como se eu aqui viesse escrever a anunciar que tinha um cancro e as pessoas se preocupassem com os hipotéticos erros ortográficos e até sintácticos do auto-comiserado postal.

As pessoas não são só insensíveis. São-no mas não só. Não são só estúpidas. São-no, e numa até incomensurável dimensão, por mais doutores especializados e analíticos que surjam. Mas não só. São, acima de tudo, más. Não maliciosas. São malvadas. São a Besta. Não umas bestas, que isso é óbvio que também são. São mesmo a Besta. Imunda.

E veraneam!

Nossa Senhora de Paris

jpt, 15.04.19

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À notícia do incêndio da Notre-Dame acorri à tv, deixando-me diante da (tão desiludida) France2. É uma desgraça, por tantos sentida como que se quase pessoal - "notre-dame" é como se a igreja de todos, verdadeiro nome próprio assim como se a tratássemos por "tu", muito  mais do que a catedral de Pedro, a romana, que traduzimos, dando-lhe assim a terceira pessoa. Coisa, ligação, um pouco devida a Victor Hugo mas mais ainda, até porque Hugo é mais falado do que lido, da época ainda recente em que Paris foi centro cultural do mundo, e depois turístico, "uma festa" alguém disse, ou talvez fosse mais um "simpósio" que o autor quisesse subentender, mas pouco importa agora, hoje, esse esmiuçar.

E logo me lembrei do "Paris Já Está a Arder?", o célebre livro tão marcante para a minha geração - e para a anterior. Tendo Hitler mandado arrasar a cidade na retirada de 1944, o generalato alemão, apesar dos constrangimentos que tinha - após o atentado a Hitler, e até talvez mesmo antes, as famílias dos oficiais superiores, eram reféns, e talvez isso tenha explicado o suicídio de Rommell -, recusou-se a cumprir essas ordens. Por isso ficou a cidade salvaguardada, imune aos catastróficos efeitos da II Guerra Mundial, ao invés de tantas outras cidades europeias, hoje pejadas de réplicas de um passado, sem "patine", algumas mesmo verdadeiros fantasmas - lembro sempre o meu espanto, numa era bem pré-internet, de tão menos informação detalhada, quando cheguei a Sofia: não havia nada antigo, um mono de arquitectura estalinista, e na qual os restos da velha e tão importante cidade romana cabiam na esplanada de um café lisboeta.

Venho aqui ecoar essas sensações e noto que Luís Menezes Leitão já explicitou as mesmas memórias. Não serei tão escatológico como ele. A F2, às 9 horas, já fala de reconstrução, mostrando espírito estóico, resistente, exemplo de ânimo. E ali se lembra como a catedral de Reims foi incendiada pelos bombardeamentos da I Guerra Mundial, e depois reconstruída.

Nesta desgraça ficam-me, assim em cima do momento, três pontos: a verdadeira irrelevância da "espuma dos dias", depois de ter cruzado este dia na expectativa da ansiada (pela imprensa francesa e belga) comunicação de Macron, programada para o fim do dia de hoje, prevista para culminar estes meses de verdadeira insurgência dos "coletes amarelos". Que interessará isso, agora? E a consciência, tantas vezes esquecida, do quão perecível é a (grande) obra humana, afinal o tal mero pó que a pó voltará, depois do catastrófico incêndio do Museu Nacional do Rio no ano passado e da demência fundamentalista em Palmira (e do saque do museu de Bagdad, aquando da queda de Hussein, cujas verdadeiros danos desconheço).

E um terceiro dado, pouco simpático para esta noite: todos os dias, há imensos anos, são devastadas áreas muitíssimos mais alargadas de floresta virgem do que a área da Nossa-Senhora de Paris. De modo irrecuperável, pois não passíveis de serem reconstruídas mesmo que sem a tal indizível "patine", como o será a catedral. Uma destruição rotineira e avassaladora que não causa qualquer comoção generalizada. Por mero, e catastrófico, antropocentrismo. Choramos, de modo lancinante até, o perecer da obra humana. E encolhemos os ombros ao devastar da obra natural. Divina, para tantos. Que depois se dizem, sabe-se lá porquê, crentes num desenho e desígnio divino.

Só um paupérrimo antropocentrismo pode justificar estas sensibilidades. Nada religiosas. E, mais do que tudo, verdadeiramente incultas. Por mais lágrimas répteis que finjam verter hoje.

Capítulo VI

Alexandre Guerra, 26.09.18

No dia 17 de Junho de 2017, na região de Pedrógão, algo aconteceu de dantesco e em poucas horas as chamas do Inferno trouxeram a morte a 66 pessoas, das quais 47 morreram carbonizadas na EN 236-1. Foi o dia em que o País se confrontou com a sua impotência e incompetência, onde as estruturas do Estado falharam nas suas mais elementares funções. No fundo, todos nós, enquanto sociedade, falhámos na defesa dos nossos concidadãos.

 

Os fenómenos e as circunstâncias que rodearam tal tragédia tinham (e ainda têm) que ser compreendidas e explicadas e, como tal, coube ao especialista Domingos Xavier Viegas, professor catedrático de Engenharia Mecânica da Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade de Coimbra, a responsabilidade de elaborar um relatório técnico sobre o que aconteceu naquele trágico dia. Esse documento, que será fundamental no âmbito do processo judicial em curso, foi entregue ao Governo a 15 de Outubro, mas houve uma parte do estudo que nunca foi divulgada ao público, o capítulo VI, por conter testemunhos dos sobreviventes e considerações feitas pelos técnicos que fizeram a investigação.

 

Compreende-se que, na altura, se quisesse evitar a exposição das famílias das vítimas e dos sobreviventes, que tanto já tinham sofrido, no entanto, aquilo que agora nos é dado a conhecer pelo jornal i, com a colaboração do próprio Xavier Viegas, através da divulgação do capítulo VI, tem uma tal dimensão trágica e humana que, por um lado, alimenta a revolta interior pelo que aconteceu, por outro, reforça a obrigação de cada um de nós, enquanto cidadão, ser cada vez mais exigente na defesa e protecção das nossas gentes e recursos.

 

Os textos publicados esta Terça e Quarta feiras no jornal i são de um realismo impressionante e mostram como homens, mulheres, idosos, famílias inteiras tomaram decisões de vida ou de morte em momentos de pânico, sem qualquer auxílio externo e totalmente entregues à sua sorte. Nos próximos dias serão divulgados mais partes desse capítulo VI que, no fundo, acaba também por ser o registo de um dos mais negros episódios da história do Portugal democrático.

 

Despender alguns minutos do nosso dia a ler estes relatos pessoais e dos técnicos não é apenas uma questão de informação, é também quase uma obrigação para com a memória de todos aqueles que perderam as suas vidas, para que possamos ajudar a construir um Estado que nunca mais deixe os seus ao abandono.   

À atenção dos eucaliptófobos

Pedro Correia, 17.08.18

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O repórter vindo da cidade, inchado de sabedoria cosmopolita, acompanha o Presidente da Repúblico nos seus mergulhos em praias fluviais do centro do País e decide descrever a paisagem circundante debitando a cartilha jornalística em voga, como um disco de vinil já muito riscado: «Lá ao fundo estão árvores queimadas pelo incêndio e estão já também os eucaliptos a brotar. Uma verdadeira praga que se vê por toda esta região - os eucaliptos a brotar junto de pinheiros e outros eucaliptos que arderam no incêndio de Outubro de 2017.»

Eis um conceito singular: olhar para «eucaliptos a brotar» no interior pobre e desertificado e classificá-los in limine como «praga». Horas antes do regresso ao conforto citadino.

 

Outro repórter, por sinal da mesma estação, em vez de dar sermões aos telespectadores do alto da sua douta ignorância, prefere fazer jornalismo a sério - isto é, dar voz a quem sabe, falando em Monchique logo após o maior incêndio registado este ano em toda a Europa, no qual se perderam maciços florestais de todas as espécies.

Escuta, por exemplo, o presidente da Associação de Produtores Florestais do Barlavento Algarvio, José Vidigal, que lhe diz isto: «Há 15 anos houve o abandono do mundo rural aqui em Monchique. Muita gente, revoltada, sem meios de subsistência, abandonou a agricultura - ou mesmo a região. Agora vai acontecer a mesma coisa: vão abandonar a floresta, vão para o litoral. Durante muitos anos, os incêndios só existiam na zona centro. Porquê? Porque a zona centro tinha a maior mancha de pinhal bravo do mundo. Agora dizerem que é por causa do eucalipto, que é por causa do pinheiro... não é. É por falta de ordenamento. Em 1936 houve um grande incêndio em Monchique, maior do que este de agora. Em 1954 repetiu-se, em 1970 repetiu-se, em 1985 repetiu-se, em 1995 repetiu-se... E até 1985 não havia eucaliptos. Por conseguinte, não são os eucaliptos: é a falta de gestão.»

 

Transcrevo estas palavras, em atenção aos eucaliptófobos que se reproduzem como mato selvagem nas pantalhas e nas colunas da imprensa. Sabendo no entanto, de antemão, que não serão escutadas. Porque o discurso dicotómico - onde a "culpa" assume sempre função relevante - é, em grau crescente, o combustível contemporâneo dos meios de informação. Tão simplista, entrincheirado e previsível como o das "redes sociais", a cuja lógica obedece. E que explica, em larga medida, a crise em que o jornalismo mergulhou.

O idílio entre Rio e Costa

Pedro Correia, 14.08.18

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Monchique ardeu. A maior mancha vegetal do Algarve - com as actividades económicas que lhe estavam associadas, da criação do porco preto à apicultura, passando pelo cultivo do medronho - ficou em larga escala reduzida a cinzas durante oito dias dramáticos: foi até agora o maior incêndio florestal do ano em toda a Europa.

O Governo voltou a revelar a inabilidade que o caracteriza nestes assuntos. No início de Junho, o primeiro-ministro escolhera precisamente a Serra de Monchique para garantir ao País que todos os meios operacionais estavam a postos para salvaguardar novos desastres ambientais, gabando o «trabalho extraordinário» que ali estaria a ser feito.

No final de Junho, falando cedo de mais na sequência da mais fresca Primavera registada em Portugal neste século, o ministro da Administração Interna não resistiu a proclamar que havia menos 71% de área ardida este ano - «graças a Deus, à meteorologia, a Protecção Civil, às câmaras e às entidades de segurança», não necessariamente por esta ordem.

Já com Monchique calcinada, o chefe do Governo voltou a pronunciar-se em termos inaceitáveis, utilizando a palavra  «sucesso», que nem o mais desbragado propagandista de turno à geringonça teve a ousadia de aplicar perante as dolorosas imagens que nos iam chegando nesses dias.

Sabe-se hoje que no preciso local onde começou o incêndio de Monchique não havia plano de intervenção florestal: este projecto estruturante aguardava luz verde por questões burocráticas. O que tornou tudo ainda mais chocante.

 

Matéria mais que suficiente para a intervenção do maior partido da oposição? Claro que sim. Mas onde andou Rui Rio? Ninguém sabe.

O presidente do PSD não se dignou comparecer no Algarve envelhecido, pobre e esquecido, no Algarve do interior rural e serrano de que Monchique é por estes dias um pungente símbolo.

Nem uma palavra de conforto, nem um gesto de solidariedade e amparo às populações flageladas pelo fogo: não lhe ouvimos o mais vago sussurro. Nem um leve reparo nem sequer um tímido franzir de sobrolho perante a desastrada actuação do Executivo, reincidente na insensibilidade perante as desprotegidas populações do interior.

É uma estranha forma de "liderar" a oposição, enquanto o primeiro-ministro - certamente não por acaso - escolhe esta mesma ocasião para demonstrar uma calorosa palavra de apreço ao PSD.

O idílio entre Rio e Costa está no ar. A tal ponto que apetece perguntar se existe neste momento oposição ao Governo em Portugal.

Outra objectividade

Sérgio de Almeida Correia, 14.08.18

"Tenho a noção de que muito do que aqui ficou dito contraria hipóteses populares entre boa parte da opinião pública, mas que são contraditadas por análises objectivas dos dados relevantes", escreveu o Prof. José Miguel Cardoso Pereira num texto para o qual me chamaram a atenção e que me pareceu escorreito e objectivo face ao lixo que me tem chegado sobre os incêndios que têm continuado a devastar Portugal.

Eu admito que sim, que exista um desfasamento entre aquilo que é a crença e a opinião popular e a análise da realidade apoiada em dados científicos. Sei que estou longe e, talvez por essa razão, não me chega muita da informação a que teria acesso se vivesse no rectângulo. Apesar disso continuo a ver as notícias e reportagens que me chegam, revoltado e impotente por nada poder fazer.

As imagens das tragédias mais recentes, na qual abarcaria toda a última década, e sendo certo que o ano passado o número de vidas perdidas e as circunstâncias em que ocorreram ultrapassaram todos os limites, têm-me feito pensar no assunto, havendo um ponto que me parece inegável: não há uma única vez que não apareçam, não uma mas várias vozes a criticarem o modo como se combatem os fogos, as estratégias de abordagem, a utilização de alguns meios aéreos e as decisões de evacuar ou não evacuar, de encerrar estradas ou de mantê-las abertas. Como se o combate a esse pesadelo, de cada vez que surge, fosse uma espécie de jogo de futebol em que todos são comentadores de bancada enquanto se perdem vidas e bens.

Não percebo nada de incêndios ou de florestas. Nada sei sobre as melhores técnicas para se combaterem os fogos quando deflagram. Guio-me apenas pelo senso comum e pelo que vou lendo e ouvindo por parte de quem sabe (julgo eu). Não posso, por isso mesmo, deixar de me sentir confuso, como certamente qualquer cidadão ficará, com a facilidade com que alguns políticos abordam o assunto, tudo servindo como pretexto para obtenção de dividendos numa matéria que a todos diz respeito e que pelas suas consequências deixa marcas indeléveis nas vidas de quem impotente vive os braseiros por dentro.

Não sou, evidentemente, cego ao que se passa noutros lados. Este ano os incêndios chegaram ao norte da Europa, não se circunscrevendo à Europa do Sul (Portugal, Espanha, França, Itália, Grécia). Na Austrália repetem-se todos os anos com consequências cada vez mais devastadoras, tanto para os seres humanos como para a fauna e a flora. O mesmo acontece nos Estados Unidos, onde ainda este Verão arderam, e continuam a arder, milhares de hectares de floresta, uma vez mais com a perda de vidas humanas e de imensas habitações. O que se discute não é muito diferente do que em Portugal também se esgrime. E até os Estados Unidos precisam da ajuda de terceiros países para combaterem os fogos no seu território.

Recuso-me por isso a acreditar que incompetentes sejam só os nossos, os políticos, os técnicos, a nossa protecção civil, os bombeiros voluntários e todos os outros. As imagens que há algumas semanas ando a ver de incêndios por esse mundo fora, como as que vi em Março, não são muito diferentes das de Monchique ou das que todos nos recordamos do ano passado.

Parece-me, por isso, uma excelente ideia que seja criada uma comissão permanente destinada a acompanhar esta desgraça que ciclicamente nos assola, que seja capaz de reunir informação, gente conhecedora e interessada sobre o assunto, que consiga fazer uma monitorização do que se vai passando e acontecendo dentro e fora de portas. Todos os meios que conseguirmos mobilizar para combater esta fonte de dor e sofrimento serão poucos. O que só será possível quando se  acabar com alguns protagonismos e se tratar estes assuntos com outra objectividade. Com outra racionalidade, com outra seriedade. 

Foi chato

Pedro Correia, 11.08.18

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A Serra de Monchique - o maior pulmão do Algarve - ardeu em larga medida. Cerca de 27 mil hectares - o equivalente a 27 mil campos de futebol, quase três vezes a área da cidade de Lisboa. 

Foi o sexto maior incêndio desde sempre registado em Portugal. E o maior incêndio ocorrido este ano em todo o continente europeu.

No preciso local onde o chefe do Governo se deslocou com vasta comitiva, para efeitos de propaganda política, assegurando aos portugueses em geral e aos algarvios em particular que estavam reunidas todas as condições, em meios humanos e técnicos, para um combate eficaz aos incêndios. 

Não estavam, como todos sabemos hoje. No lugar onde António Costa falou, a 1 de Junho, restam cinzas.

 

Ainda em Junho, novo exercício de propaganda: o Executivo convocou a Comunicação Social para revelar que faríamos deslocar para a Suécia e a Grécia meios aéreos de combate aos fogos.

Como se pudéssemos dar-nos a tal luxo após os flagelos de 2017 que enlutaram o País e comoveram o mundo.

 

Passado o pavoroso incêndio de Monchique, novamente o Governo, pelas vozes simultâneas do primeiro-ministro e do titular da pasta da Administração Interna, não perdeu tempo a lançar o slogan "não morreu ninguém" - igualmente para efeitos de propaganda.

Frase que esconde, no seu cinismo político, a perda de um número incontável de espécies animais e vegetais, o fim dos meios de sustento de centenas de residentes no concelho de Monchique, o fim de explorações agrícolas, turísticas, de apicultura e silvicultura.

Esconde as centenas de deslocados, esconde os 41 feridos e os 49 desalojados. Esconde os prejuízos globais de dez milhões de euros, avaliados pela Câmara local.

Procura afinal ocultar  - como bem escreveu o Manuel Carvalho no Público - que "ao primeiro teste difícil o aparato de combate aos fogos falhou".

 

É, no fundo, o equivalente moral ao "foi chato" proferido por Bruno de Carvalho na sequência do inqualificável assalto promovido a 15 de Maio por membros de uma claque leonina à Academia de Alcochete.

Dois meses e 300 e tal km depois

Pedro Correia, 09.08.18

 

António Costa, 1 de Junho de 2018, falando aos jornalistas durante uma visita ao posto de vigia da Madrinha, no Alto da Fóia, Serra de Monchique:

«O nosso objectivo é que tenhamos um território mais seguro. E, como se vê, é possível fazer.»

 

António Costa, 8 de Agosto, falando a mais de 300 km de distância, na sede nacional da Protecção Civil, sobre o incêndio em Monchique, o sexto maior de sempre registado em Portugal, e que devastou metade da área do concelho:

«Esta excepção confirmou a regra do sucesso da operação ao longo de todos estes dias.»

Ou me engano muito ou vem aí bordoada

Sérgio de Almeida Correia, 07.08.18

Se o atraso na aprovação do plano tiver contribuído para a desgraça que voltou a abater-se sobre Monchique e as suas populações não devem restar muitas alternativas.

O ICNF é mais um daqueles pequenos grandes poderes de Portugal sacralizados pela inércia e a necessitar de uns valentes abanões. Não é de hoje, é de há muito tempo.

Um ministro a ver-se grego

Pedro Correia, 26.07.18