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Delito de Opinião

Alegria juvenil entre os Velhos do Restelo

Pedro Correia, 02.08.23

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«Fui peregrino e acolheste-me.»

Mateus, XXXV-35

 

Nesta quarta-feira em que o Papa chega a Portugal, Lisboa transborda de jovens e adolescentes oriundos de todo o mundo. São centenas de milhares, andam por aí desde a semana passada: com risos e cânticos, enchem de alegria a vetusta urbe, habitualmente tristonha e sorumbática. Circulam aliás pelo país inteiro em grupos felizes, coloridos, poliglotas. Irradiando um optimismo contagiante. Testemunhas vivas da fé que professam, tendo Cristo como inspiração suprema.

É a Jornada Mundial da Juventude - que concentra agora na capital a maior multidão de que há memória neste século em Portugal. Muito mais do que qualquer evento político, sindical, desportivo (Euro-2004) ou empresarial (Web Summit). Como ficou ontem evidente, nas impressionantes imagens da missa campal no Parque Eduardo VII presidida pelo cardeal-patriarca de Lisboa.

A próxima eucaristia, já com Francisco junto ao altar, será certamente ainda mais concorrida. Num sinal de inequívoca vitalidade da Igreja Católica que apenas surpreende os mais incautos. Nenhuma outra organização está tão incrustada no terreno social, em tempos de bonança ou tempestade. 

Devem ser dias de angústia para os agoirentos Velhos do Restelo. Lastimo por eles: é a vida, como dizia o outro.

Devem também ser dies irae para aqueles que desejariam exterminar as religiões da face da terra, como se a crença não fosse inerente à espécie humana desde o alvorecer do mundo. «Só o Espírito, quando sopra sobre a argila, pode criar o Homem», escreveu Saint-Exupéry. Isto anda tudo ligado, mesmo quando não parece.

Quando Bergoglio se tornou Francisco

Pedro Correia, 12.03.23

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Faz amanhã dez anos, ao fim da tarde, Jorge Mario Bergoglio surgia no balcão da Basílica de São Pedro: o sucessor de Bento XVI era apresentado ao mundo. Escolheu Francisco como nome oficial de dirigente supremo da Igreja Católica e Chefe do Estado do Vaticano. Simplesmente Francisco, sem numeração romana - deixando antever que não haverá outro com o mesmo nome depois dele. Em homenagem explícita a São Francisco de Assis, apesar de ser jesuíta.

Foi o primeiro Papa não-europeu em 1200 anos. Oriundo do continente americano - concretamente da Argentina, onde anteriormente se distinguira como cardeal de Buenos Aires. Nascido numa família de imigrantes italianos, iguais a tantas outras que demandaram aquele país para fugirem à pobreza ancestral da terra-mãe.

Assomou ao balcão, onde uma multidão estava reunida a aplaudi-lo e vitoriá-lo. De braços caídos e um ar algo perplexo, como se ainda mal estivesse refeito do peso que lhe caíra em cima após a já histórica renúncia do antecessor, impensável num Papa dos tempos modernos.

Esteve uns momentos em silêncio, contemplando aquele vasto grupo de fiéis. Depois vimos-lhe o rosto a abrir-se num sorriso largo. Disse de si próprio ser alguém que «vinha de longe», como qualquer peregrino. E pediu, com inesperada humildade, que rezassem por ele. Que todos rezássemos por ele, em qualquer recanto do planeta. 

 

Nascia ali o Francisco «pároco do mundo», como o designou a revista italiana Panorama numa feliz síntese do que tem sido o seu pontificado. Procurando seguir à letra, na sua acção pastoral, as palavras de Cristo no Sermão da Montanha: «Bem-aventurados os construtores da paz.» E as que ecoam há dois mil anos no Evangelho de Marcos: «Quem quiser ser o primeiro, há-de ser o último de todos e o servo de todos.»

Quem não vive para servir, não serve para viver, como declarou em 2015 na visita pastoral a Cuba.

 

O mesmo Papa que Fátima já recebeu em 2017 e Lisboa se prepara para receber, de novo como peregrino, na Jornada Mundial da Juventude.

O mesmo Francisco que em Março de 2013 viu seis deputados do PS - Pedro Delgado Alves, Isabel Moreira, Elza Pais, Miguel Coelho, António Serrano e Mário Ruivo - juntarem-se a comunistas e bloquistas na recusa de um voto parlamentar pela sua eleição. Comprovando que o sectarismo e o extremismo podem irromper em qualquer bancada.

Trinta deputados no total - alguns revelando mais intolerância pelo representante máximo da religião com maior número de fiéis no globo do que pelo ditador da Coreia do Norte.

E o que dizia esse voto supostamente tão controverso? Apenas isto: «A Assembleia da República, reunida em sessão plenária, saúda o Estado do Vaticano, a Igreja Católica e todos os que professam a sua fé, pela eleição do novo Sumo Pontífice.»

 

«Mesmo para uma Europa desenvolvida e laica, o Papa Francisco é mais inspirador do que qualquer líder europeu», observou Teresa de Sousa no Público, naquele Março de 2013. Quando já era evidente o carisma de Bergoglio - evidente nos seus gestos despojados, no seu discurso claro, na sua capacidade de aproximação à pessoa mais comum. Dizendo que não há cristianismo sem comunidade, tal como não há paz sem fraternidade.

Com a força inequívoca do seu exemplo, digno de um genuíno discípulo de Jesus, Francisco inspirou e mobilizou crentes de todos os quadrantes geográficos nesta década do seu pontificado. E até muita gente que não partilha da sua fé.

Santos do dia

João Pedro Pimenta, 15.02.22

Ó vós que celebrasteis o dia de S. Valentim com florzinhas, versos lamechas e "escapadelas românticas", lembrai-vos que ontem, 14, era igualmente dia de S. Cirilo e S. Metódio, que sendo ortodoxos e tendo criado o alfabeto cirílico, são também santos para a Igreja Católica e co-padroeiros da Europa. E em dias como estes, em que há sérias tensões, fendas e tambores de guerra na Europa, particularmente na ortodoxa, mais necessário se torna invocá-los.

 

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Amor ao próximo

Cristina Torrão, 29.01.22

«Que em Hamburgo seja possível despedir alguém por amar uma pessoa do mesmo sexo é inaceitável. Mas onde vivemos nós? (…) O Direito do Trabalho tem de ser modificado, para que todos percebamos em que século vivemos.»

Hoje fui despertada, ao pequeno-almoço, por estas palavras de Daniel Kaiser*, comentador radiofónico do NDR, o canal regional do Norte do grupo estatal radio-televisivo ARD. Mas incluirá o Direito do Trabalho alemão alguma lei neste sentido? Não se respeitam os Direitos Humanos neste país?

Na verdade, Daniel Kaiser falava da Igreja Católica alemã, que acaba de viver uma das semanas mais duras da sua existência. Não foi só a publicação de um relatório* sobre abusos sexuais na arquidiocese de Munique/Freising, que acusa o actual arcebispo, cardeal Reinhard Marx, e o próprio papa emérito Bento XVI, arcebispo entre 1977 e 1982, de terem ocultado casos deste tipo, protegendo os prevaricadores. Foi também a semana em que cento e vinte e cinco pessoas - incluindo padres, trabalhadores a tempo inteiro ou voluntários na Igreja Católica nos países de língua alemã - fizeram história ao revelarem fazer parte da comunidade LGBTQIA+. Esta é a primeira vez, em todo o mundo, que um grupo de a(c)tuais e antigos colaboradores profissionais e voluntários da Igreja Católica Apostólica Romana se assume em massa e publicamente.

“Nós, como pessoas LGBTIQA+, queremos viver e trabalhar na Igreja sem ter de sentir medo”, começa o manifesto, que inclui pessoas que trabalham nos campos da educação e ensino, cuidados, trabalho social, música litúrgica e animação pastoral, entre padres, assistentes pastorais, professores de educação religiosa e pessoal administrativo e que se identificam como “homossexuais, bissexuais, trans, intersexuais, queer e/ou não-binários”.

“A Igreja deve finalmente assumir a sua responsabilidade na luta pelos direitos humanos das pessoas LGBTQIA+ em todo o mundo”, já que a maioria dos signatários “sofreu numerosas experiências de discriminação e exclusão, também na e pela Igreja institucional”.

Os signatários dizem já terem vivido situações em que foram obrigados “a manter em segredo” a sua orientação sexual ou identidade de género. “E só nesta condição nos foi permitido permanecer ao serviço da Igreja. Isto criou um sistema de ocultação, dois pesos e duas medidas e hipocrisia, um sistema tóxico, nocivo e vergonhoso, que até prejudica a nossa relação com Deus e a nossa espiritualidade”.

De facto, é de Direitos Humanos que se trata (e, para quem gosta de nos comparar com animais, acrescente-se que, na Natureza, também há homossexualidade e mudança de sexo, por exemplo). Além disso, recordemos que pessoas LGBTQIA+ sempre existiram, existem há milénios, não é uma “modernice” inventada nos nossos dias. É incrível que ainda se ande a esconder esta realidade; é incrível que haja discriminação, numa Igreja que faz do «amor ao próximo» um dos seus pilares de sustentação; é incrível que se continuem a condenar pessoas a viver na clandestinidade; é incrível que ainda haja gente que se recuse a incluir esta realidade na formação de jovens e crianças.

Vai sendo tempo de encararmos qualquer ser humano ao nosso nível, sem nos acharmos superiores, apenas por pertencermos à maioria heterossexual. E comentários do género “não ando a exibir aquilo que faço na privacidade” são profundamente injustos e desonestos, em relação a pessoas que revelam outras preferências sexuais. Caso contrário, também teríamos de acusar aqueles que afirmam com orgulho serem heterossexuais de estarem a exibir a sua intimidade.

A Igreja Católica alemã enfrenta uma grande crise, que tenta ultrapassar através do Caminho Sinodal, um movimento iniciado em 2019 e que prevê plenários regulares de discussão sobre temas como a moral sexual ou a ordenação de mulheres. Porém, e como seria de esperar, muitos obstáculos se apresentam neste Caminho. Não só a pandemia obrigou a adaptações, também os sectores alemães mais conservadores e o próprio Vaticano acusam os que exigem reformas de estarem a forçar uma divisão entre os crentes. E, no entanto, continuar a calar e a ignorar realidades e problemas seria continuar o caminho errado deste “clube de homens”, que tantos crimes já cometeu, e continua a cometer, em nome de Deus.

 

* links que conduzem a sites alemães, de onde traduzi algumas passagens.

E as procissões, Senhor?

Sérgio de Almeida Correia, 05.03.21

macauprocissao-890x593.jpg(foto daqui)

In order to get rid of the blindness which exists to a serious extent in our Party, we must encourage our comrades to think, to learn the method of analysis and to cultivate the habit of analysis.” (Mao Tse-Tung, Our Study and the Current Situation, April 12, 1944, Selected Works, Vol. III, pp. 174/175)

1. Como resulta do elegante título do comunicado da PSP [“Quanto à questão sobre se os não residentes que se encontrem em Macau estão ou não assegurados pela Lei n.º 2/93/M (Direito de Reunião e de Manifestação), ultimamente há ainda alguns indivíduos com dúvidas sobre a questão, pelo que, o Corpo de Polícia de Segurança Pública vem por este meio efectuar, mais uma vez, a declaração”], publicado na página oficial do Governo da RAEM, e na sequência dos argumentos que têm vindo a ser avançados pelo Secretário para a Segurança, Wong Sio Chak, e a PSP, eu serei um dos “alguns indivíduos com dúvidas”, pelo que fazendo jus a esta qualidade gostaria de aqui trazer mais algumas que, estou certo, ajudarão a clarificar aos olhos da opinião pública (cidadãos, residentes, turistas e afins) a excelência das posições oficiais.

2. Da argumentação da PSP, um corpo de qualificados juristas que usa farda e bastão, resulta que:
a) O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos não poderá ser aplicado automática e directamente em Macau, necessitando de legislação local para ser aqui aplicado indirectamente;
b) O direito de reunião e manifestação destina-se às pessoas que adquiriram o estatuto de residente de Macau, e não a todas as pessoas que aqui se encontram;
c) A Lei n.º 2/93/M (Direito de Reunião e de Manifestação), apenas proporciona garantias aos residentes de Macau no exercício do direito de reunião e manifestação, mas não regula as garantias dos direitos dos não residentes.

3. Sobre a alínea a) já houve quem com saber e paciência explicasse as posições oficiais da RPC (cfr. Jorge Menezes, Ponto Final, 03/03/2021, p. 15). Sobre as alíneas b) e c) só posso dizer que não contesto as verdades oficiais. Sou apenas um residente, um “indivíduo com dúvidas” (podiam-me ter chamado outra coisa mais feia), e não um “cidadão”, que é um “conceito jurídico definido na Constituição portuguesa”, referindo-se “a uma pessoa que tem a nacionalidade de um país e goza de direitos civis e assume obrigações cívicas nos termos das disposições legais desse país”.

4. Diz o Secretário, no que será aclamado pelo seu escol de jurisconsultos requisitados a Portugal, que “[o]bviamente, os trabalhadores não residentes e turistas, etc., não têm bilhete de identidade de Macau, pelo que não são residentes de Macau”. Será mesmo assim?

5. O art.º 24.º da Lei Básica (LB) estatui que “os residentes da Região Administrativa Especial de Macau, abreviadamente denominados como residentes de Macau, abrangem os residentes permanentes e os residentes não permanentes”. Ainda nessa norma refere-se que “os residentes não permanentes (...) são aqueles que, de acordo com as leis da Região, tenham direito à titularidade de Bilhete de Identidade de Residente de Macau, mas não tenham direito à residência”.

6. Ou seja, os residentes não-permanentes terão, quando muito, um direito a aqui permanecer, embora, de acordo com art.º 43.º da LB, gozem, “em conformidade com a lei, dos direitos e liberdades dos residentes de Macau, previstos neste capítulo”.

7. Esse reconhecimento, conforme se elucidou aos “indivíduos”, “é apenas um princípio geral, não absoluto”, podendo ser restringido em conformidade com a lei. Óbvio.

8. E se assim é, o que nos vieram dizer foi que o legislador da LB se “esqueceu” de estabelecer uma distinção clara entre os tais “não residentes”, que têm “direito à titularidade do Bilhete de Identidade de Residente de Macau, mas não tenham direito à residência”, e os simples portadores daquilo a que as autoridades chamam “Título de Identificação de Trabalhador Não-residente (TI/TNR)”, que gozam de uma “autorização de permanência”.

9. Estava quase totalmente elucidado quando dou de caras com o artigo 26.º da LB que afirma que “os residentes permanentes da Região Administrativa Especial de Macau têm o direito de eleger e de ser eleitos, nos termos da lei”.

10. Homessa? Então o legislador da LB considerou neste artigo, e apenas neste, ser necessário esclarecer, preto no branco, que só os “residentes permanentes” têm o direito de eleger e de ser eleitos? E em todas as outras situações onde se fala de residentes não sentiu necessidade de acrescentar “permanentes”, deixando isso ao critério do Governo da RAEM e da PSP?

11. De acordo com a lição do Secretário é tudo muito linear: o princípio consagrado no art.º 43.º da LB pode ser objecto de limitação porque não é um princípio absoluto. Ora bem. Bom, assim, face ao disposto no citado art.º 26.º da LB, e à interpretação do art.º 43.º, quanto aos direitos de reunião, desfile e manifestação por parte dos não-residentes, o que o Secretário quis dizer foi que, concluo eu, a LB não é tão perfeita como dizem. O legislador não se soube exprimir? Não faz mal. Temos a sorte de ter quem corrija e faça a interpretação autêntica. Um semideus.

12. Para quê que o legislador sentiu necessidade de escrever “residentes permanentes” no art.º 26.º? Bastaria ter escrito “residentes”. Depois, o Governo da RAEM viria dizer que esse direito não era absoluto, e que todos os outros, isto é, os não-residentes, TI/TNR, turistas, e até pangolins que por aqui andassem, estavam excluídos do direito de se fazerem eleger e de serem eleitos porque tal direito estava reservado aos “residentes permanentes”.

13. De facto, o legislador esteve mal (isso resulta dos esclarecimentos do Secretário), porque em todos os outros artigos incluídos no Capítulo III, com o título “Direitos e deveres fundamentais dos residentes”, dever-se-ia ter escrito sempre “residentes permanentes”, pois que dessa forma os outros estariam sempre excluídos. E poupava-se ao Secretário e à PSP o trabalho de andarem a interpretar e esclarecer o sentido da lei. Nesses tempos de antanho em que a LB foi redigida (1993), o legislador foi pouco esclarecido. De outro modo, não teria reservado em exclusivo aos residentes permanentes apenas os direitos de participação política, mas também todos os outros.

14. Isto é hoje de tal forma perceptível aos olhos de todos que, por exemplo, e voltando ao direito de reunião, desfile e manifestação, temos de também considerar que o artigo 34.º da LB também não se aplica aos não-residentes, TI/TNR e turistas (pelo menos quanto à segunda parte, já que sobre a liberdade de consciência ainda se está a estudar a forma de a limitar em exclusivo aos residentes permanentes que não usem os neurónios).

15. Porquê? Muito simples. O Secretário para a Segurança e a PSP ainda não o disseram, mas certamente que irão iluminar os “indivíduos” que ainda têm dúvidas de que esse artigo 34.º da LB deverá ser interpretado em termos tais que impeça aos não-residentes a liberdade de pregar, de promover actividades religiosas em público e de nelas participar.

16. A liberdade religiosa era de há muito um dado adquirido em Macau. E não se fazia a distinção entre os residentes permanentes e os outros em matéria de culto. Agora essa distinção, face à posição do Secretário e aos esclarecimentos da PSP, terá de ser equacionada.

17. As procissões católicas do Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos e de Nossa Senhora de Fátima entraram para a lista de património intangível de Macau em 2017. Uma procissão é um cortejo, um desfile solene de carácter religioso, uma manifestação da fé. Na via pública! Ora, não sendo permitido aos não-residentes, TNR, turistas e afins participarem em reuniões, desfiles e manifestações, ser-lhes-á também vedada a participação na procissão do Senhor dos Passos?

18. De acordo com o que consta da Lei n.º 5/1998, de 3 de Agosto, que regula a liberdade de religião e de culto, a liberdade de religião compreende, nomeadamente, o direito a “exprimir as suas convicções”, a “manifestar as suas convicções, separadamente ou em comum, em público ou privado”, a “difundir, por qualquer meio, a doutrina da religião que professam”, podendo inclusivamente “criar e utilizar meios de comunicação social próprios para o prosseguimento das suas actividades”, e, ainda, “praticar os actos de culto e os ritos próprios da religião professada” (art.º 5.º), e “as pessoas podem reunir-se para a prática comunitária do culto ou para outros fins específicos da vida religiosa”, não dependendo para tal de autorização prévia. Acresce que às “reuniões ou manifestações [religiosas], designadamente as que utilizem locais públicos, aplicam-se, com as necessárias adaptações, as regras gerais sobre reuniões e manifestações”.

19. Que fará a PSP na próxima procissão? Manda parar o andor? Interrompe o desfile e começa a identificar as pessoas, mandando residentes permanentes para um lado e levando os outros para a esquadra numa ramona, como fez às filhas de um deputado? Parece-me sensato. E a seguir cancelam-se os títulos aos participantes na procissão? Nega-se o BIR permanente aos não-permanentes que completaram sete anos depois da procissão? Com os bufos e o sistema de reconhecimento facial é fácil saber quem lá esteve.

20. Aqui chegados, creio que o melhor será introduzir mais uma excepção à lei. Para que fiquem na RAEM alguns TNR antes de se cancelarem todos os títulos. Proíbe-se-lhes a reunião em missas, a participação em desfiles e a manifestação em procissões, sem prejuízo de aqui poderem trabalhar. Para que Macau não pare. E a deputada Chan Hong não tenha de suportar salários de 7 mil patacas pagos aos compatriotas do interior.

21. A interpretação do Secretário para a Segurança leva à conclusão de que o legislador da LB se esqueceu de estabelecer, ao contrário do que sucedeu com o direito de eleger e ser eleito, um exclusivo de participação nas manifestações religiosas para os residentes permanentes. Convirá, pois, também limitar esse direito. Uma procissão é um perigo. Sabe-se bem o que os polacos fizeram.

22. Escreveu Mao que “when we study the causes of the mistakes we have made, we find that they all arose because we departed from the actual situation at a given time and place and were subjective in determining our working policies.”* Tivesse o legislador lido isto e a LB teria sido outra.

23. Posto isto, importa perguntar ao Secretário para a Segurança quando é que o Governo manda para a Assembleia Legislativa a proposta de lei contendo a proibição de participação dos não-residentes, TNR e turistas em actos de culto em locais públicos e manifestações religiosas? É que a este tipo de situações se aplicam, “com as necessárias adaptações, as regras gerais sobre reuniões e manifestações”.

Haja paciência, coragem e coerência. Levemos isto até ao fim (não tresler “para o fim”) e cumpramos, uma vez mais, a LB e o princípio “um país, dois sistemas”.
–––––––––––––––––
(* Speech at a Conference of Cadres in the Shansi-Suiyuan Liberated Area, April 1, 1948, Selected Works, Vol. IV, pp. 229-30)

"Se formos de Ferrari poderemos ir rezar pelos nossos mortos?"

jpt, 27.10.20

(Mensagem do prior de S. Nicolau, 25.10.2020)

Sou ateu. Não anticlerical - um antropólogo anticlerical seria uma espécie de oxímoro carnal. Mas se há algo em que sou fundamentalista é na defesa do ilimitado direito à blasfémia. Porque é a questão fundamental da liberdade intelectual, fruto de imensas guerras. E é aquele traço ao qual os imigrantes têm que se assimilar e no qual os naturais têm de ser socializados. Ou seja, na nossa (pérfida, dizem os dos ademanes) sociedade ninguém tem o direito de não ser ofendido. E quanto mais idolátricos são os crentes maior a necessidade e legitimidade da iconoclastia, mesmo que eles sejam "minorias" muito pobrezinhas e discriminadozinhas, coitadinhas ... Avanço isto, incompreensível para gentes como Ana Gomes e seus apoiantes, mais a ganga de comunitaristas espontâneos que para aqui andam tão ciosos deles mesmos e das suas militâncias, e que não percebem o que é a laicidade do Estado e da sociedade, para lembrar que tudo isto é siamês de outro princípio fundamental desta nossa laicidade conquistada: a liberdade de culto.

Ora o que este governo tem andado a fazer, no seu ziguezaguear covídico, é, de facto, uma refracção preguiçosa do anticlericalismo republicano. Serôdio, inútil. É um quadro mental patético, porventura até vivido de modo inconsciente. E sinaliza o disparatado em que decorre a administração da saúde, como o resmungam os profissionais.

A excelente prédica deste padre, insurgindo-se contra a proibição do culto aos antepassados, diz tudo o que é preciso ouvir. Que o Deus dele o tenha na sua santa guarda.

 
 

Carta Encíclica "Fratelli Tutti"

Cristina Torrão, 25.10.20

Alguns pontos que considero interessantes (e importantes), da última Carta Encíclica do papa Francisco, publicada e m 3 de Outubro passado:

7. Quando estava a redigir esta carta, irrompeu de forma inesperada a pandemia da Covid-19 que deixou a descoberto as nossas falsas seguranças. Por cima das várias respostas que deram os diferentes países, ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto. Apesar de estarmos superconectados, verificou-se uma fragmentação que tornou mais difícil resolver os problemas que nos afectam a todos. Se alguém pensa que se tratava apenas de fazer funcionar melhor o que já fazíamos, ou que a única lição a tirar é que devemos melhorar os sistemas e regras já existentes, está a negar a realidade.

11. A história dá sinais de regressão. Reacendem-se conflitos anacrónicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos. Em vários países, uma certa noção de unidade do povo e da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social mascaradas por uma suposta defesa dos interesses nacionais.

15. A melhor maneira de dominar e avançar sem entraves é semear o desânimo e despertar uma desconfiança constante, mesmo disfarçada por detrás da defesa de alguns valores. Usa-se hoje, em muitos países, o mecanismo político de exasperar, exacerbar e polarizar. Com várias modalidades, nega-se a outros o direito de existir e pensar e, para isso, recorre-se à estratégia de ridicularizá-los, insinuar suspeitas sobre eles e reprimi-los. Não se acolhe a sua parte da verdade, os seus valores, e assim a sociedade empobrece-se e acaba reduzida à prepotência do mais forte (…) Neste mesquinho jogo de desqualificações, o debate é manipulado para o manter no estado de controvérsia e contraposição.

18. Partes da humanidade parecem sacrificáveis em benefício duma selecção que favorece a um sector humano digno de viver sem limites.

27. Criam-se novas barreiras de auto-defesa, de tal modo que deixa de haver o mundo, para existir apenas o «meu» mundo; e muitos deixam de ser considerados seres humanos com uma dignidade inalienável passando a ser apenas «os outros». Reaparece «a tentação de fazer uma cultura dos muros, de erguer os muros, muros no coração, muros na terra, para impedir este encontro com outras culturas, com outras pessoas. E quem levanta um muro, quem constrói um muro, acabará escravo dentro dos muros que construiu, sem horizontes. Porque lhe falta esta alteridade».

74. O facto de crer em Deus e O adorar não é garantia de viver como agrada a Deus. Uma pessoa de fé pode não ser fiel a tudo o que essa mesma fé exige dela e, no entanto, sentir-se perto de Deus e julgar-se com mais dignidade do que os outros (…) O paradoxo é que, às vezes, quantos dizem que não acreditam podem viver melhor a vontade de Deus do que os crentes.

107. Todo o ser humano tem direito de viver com dignidade e desenvolver-se integralmente, e nenhum país lhe pode negar este direito fundamental. Todos o possuem, mesmo quem é pouco eficiente porque nasceu ou cresceu com limitações. De facto, isto não diminui a sua dignidade imensa de pessoa humana, que se baseia, não nas circunstâncias, mas no valor do seu ser. Quando não se salvaguarda este princípio elementar, não há futuro para a fraternidade nem para a sobrevivência da humanidade.

121. Por conseguinte, ninguém pode ser excluído; não importa onde tenha nascido, e menos ainda contam os privilégios que outros possam ter porque nasceram em lugares com maiores possibilidades. Os confins e as fronteiras dos Estados não podem impedir que isto se cumpra. Assim, como é inaceitável que uma pessoa tenha menos direitos pelo simples facto de ser mulher, de igual modo é inaceitável que o local de nascimento ou de residência determine, por si, menores oportunidades de vida digna e de desenvolvimento.

180. Reconhecer todo o ser humano como um irmão ou uma irmã e procurar uma amizade social que integre a todos não são meras utopias. Exigem a decisão e a capacidade de encontrar os percursos eficazes, que assegurem a sua real possibilidade. Todo e qualquer esforço nesta linha torna-se um exercício alto da caridade [nesta passagem, a tradução alemã utiliza a expressão “amor ao próximo” - Nächstenliebe - que considero mais apropriada do que “caridade”].

 

A Encíclica completa pode ser lida aqui:

http://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html#_ftn2

Tapetes e cascas de banana

Pedro Correia, 05.05.20

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1

O reitor do Santuário de Fátima acaba de dar uma lição de exemplar civismo à CGTP, que - com o suave beneplácito do Governo e do Presidente da República - juntou no primeiro dia do mês centenas de pessoas na Alameda D. Afonso Henriques, em Lisboa, transportando muitas delas em autocarros a partir de outros concelhos. Num momento em que eram proibidos os ajuntamentos públicos, a circulação interconcelhia era expressamente interditada e o País permanecia sob estado de emergência pela primeira vez na sua história constitucional. Uma escandalosa e vergonhosa excepção ao dever geral de recolhimento domiciliário imposto pelas supremas autoridades do Estado. Como se houvesse regras que se aplicassem apenas à central sindical de maioria comunista e outras destinadas aos restantes cidadãos.

Fez bem a Igreja Católica, pela voz do reitor Carlos Cabecinhas, em reiterar a decisão assumida anteriormente de organizar as celebrações do 13 de Maio este ano sem a presença de peregrinos. As instituições têm de adaptar-se aos contextos - e não são estes que devem moldar-se a elas, nestes dias de pandemia. Se até os Jogos Olímpicos - expressão máxima de convivência e fraternidade a nível mundial - foram anulados este ano, algo que só tinha acontecido durante as guerras mundiais, a "nova normalidade" de que tanto se fala (eufemismo para evitar a palavra anormalidade) deve seguir este padrão. Só a CGTP, na sua cega e obstinada intransigência, parece não ter percebido.

 

2

Mas a confirmação de que não haverá peregrinos católicos neste 13 de Maio é também uma resposta firme à titubeante ministra da Saúde, que contradizendo o que o Governo dissera antes - e o que a Igreja Católica já deixara claro - meteu os pés pelas mãos na mais recente entrevista à SIC, ao ser confrontada com o precedente estabelecido para a CGTP.

«Se essa for a opção de quem organiza as celebrações, de organizar uma celebração do 13 de Maio onde possam estar várias pessoas, desde que sejam respeitadas as regras sanitárias, isso é uma possibilidade», declarou Marta Temido. Estabelecendo tal confusão que, certamente por imposição do primeiro-ministro, se viu forçada a fazer no dia seguinte a hermenêutica das suas próprias declarações, estabelecendo «uma diferença entre peregrinos e celebrantes». Como se estivesse a falar para meninos muito pequeninos ou para gente com manifestas dificuldades cognitivas.

 

3

Se era uma casca de banana, para a pôr no mesmo patamar de irresponsabilidade da central sindical, a Igreja teve sabedoria suficiente para não escorregar nela. O que só pode justificar elogio nestes dias em que a calamidade sucede à emergência. Numa altura em que até o Presidente da República faz questão em demarcar-se da forma como a central pró-comunista assinalou o 1.º de Maio.

«A minha ideia era mais simbólica e restritiva», declarou ontem Marcelo Rebelo de Sousa aos jornalistas. Como se não soubesse que aquele chocante ajuntamento da Alameda foi propiciado pelo artigo 5.º, alínea t, do decreto de execução do estado de emergência, que ele próprio assinou. «Participação em actividades relativas às celebrações oficiais do Dia do Trabalhador, mediante a observação das recomendações das autoridades de saúde, designadamente em matéria de distanciamento social», era uma das excepções previstas ao dever geral de recolhimento.

Que a CGTP tenha transformado o genérico e vago substantivo "actividades" num comício, parece ter sido novidade absoluta para o nosso supremo magistrado, que se mantém fiel ao seu estilo muito peculiar de comunicar. Neste teatro de sombras da política, enquanto uns estendem cascas de banana, outros vão tirando o tapete. O coronavírus lá vai servindo de desculpa para tudo.

 

Leitura complementar:

O que o Presidente não deve fazer: sacudir a água do capote. De Vital Moreira, na Causa Nossa.

Figura nacional de 2019

Pedro Correia, 02.01.20

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D. JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

Pela primeira vez numa década, uma personalidade da Igreja portuguesa surge em destaque no balanço anual do DELITO DE OPINIÃO. Cabe a distinção ao padre-escritor José Tolentino Mendonça, que a 1 de Setembro foi designado cardeal pelo Papa Francisco. Passou a fazer parte do restrito núcleo de 224 cardeais hoje existentes no mundo - apenas 124 dos quais com capacidade eleitoral, por terem menos de 80 anos. Podendo eleger, pode também ser eleito num dos conclaves à porta fechada na Capela Sistina.

«Arrisco que chegará a Papa. Dificilmente na próxima eleição, mas é um jovem», observou um dos nossos colegas de blogue no processo de votação. Na mesma linha, uma colega justificou votar nele «pela projecção internacional e porque lhe prevejo grandes voos futuros». D. José Tolentino, que recebeu as novas insígnias a 5 de Outubro, tem 54 anos: é de facto um jovem, pelos padrões médios do colégio cardinalício da Santa Sé.

Este foi o segundo ano consecutivo em que mereceu destaque noticioso. Em Junho de 2018, por escolha pessoal do Papa Francisco, havia sido nomeado arquivista do Arquivo Apostólico do Vaticano e bibliotecário da Santa Sé, passando a tutelar a mais antiga biblioteca do mundo, com 85 quilómetros de estantes. No mês seguinte era ordenado bispo.

Nascido em Machico, na ilha da Madeira, José Tolentino distinguiu-se como teólogo, professor universitário, pároco no Funchal e em Lisboa, director do curso de Teologia da Universidade Católica e membro do Conselho Pontifício para a Cultura. É autor de vários livros de poesia, ensaio e teatro. Foi distinguido com o Prémio Cidade de Lisboa de Poesia (1998), o Prémio Pen Club de Ensaio (2005), o Grande Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes APE (2016) e o Grande Prémio APE de Crónica (2016), entre outros.

 

O novo cardeal recebeu oito dos 24 votos recolhidos no nosso "colégio eleitoral". Na tradicional escolha de fim de ano feita pelos autores do DELITO, o segundo posto para Figura Nacional de 2019, com cinco votos, coube a Joacine Katar Moreira, recém-eleita deputada do partido Livre.

Outro deputado estreante, André Ventura, recolheu três votos - tantos como o primeiro-ministro António Costa, vencedor das legislativas de Outubro, e o treinador Jorge Jesus, que levou o Flamengo à conquista do campeonato brasileiro e da Taça Libertadores, o mais importante troféu futebolístico do continente americano.

 

Houve ainda dois votos solitários. O primeiro em António Guterres, pelo seu «desempenho ecologista» como secretário-geral da ONU, e o segundo em Mário Centeno, o ministro das Finanças responsável pelo primeiro excedente orçamental em democracia e também pela maior carga fiscal de que há registo no País.

 

Figura nacional de 2010: José Mourinho

Figura nacional de 2011: Vítor Gaspar

Figura nacional de 2013: Rui Moreira

Figura nacional de 2014: Carlos Alexandre

Figura nacional de 2015: António Costa

Figura nacional de 2016: António Guterres

  Figura nacional de 2017: Marcelo Rebelo de Sousa

Figura nacional de 2018: Joana Marques Vidal

Tesouros escondidos

Cristina Torrão, 10.07.19

A época medieval é conhecida como a “idade das trevas”, na qual o mundo esteve supostamente parado durante mil anos, até surgir o Renascimento que, redescobrindo a Cultura Clássica, fez florescer as artes e deu os primeiros passos na Ciência. Numa das minhas publicações aqui no DO, o comentador Luís Lavoura lembrou os maus costumes medievais: um homem que assassina o irmão, encarcera um outro irmão, impõe o casamento de uma filha e, no fim, um enterro três semanas após uma morte, já com o corpo em plena putrefação. Ora, recordemos que lutas fratricidas estão longe de serem um exclusivo medieval, existem desde que o Homem é Homem; e o costume de os pais imporem casamentos às filhas estendeu-se, na nossa civilização ocidental, até, pelo menos, ao século XIX. Quanto ao enterro, poderia igualmente acontecer posteriormente.

Na verdade, a Idade Média esteve longe de ser um mundo de trevas. Esquecemo-nos que foi nesse período que se desenvolveu o estilo gótico, construindo-se esplêndidas catedrais por toda a Europa. Também foi na época medieval que se fundaram as universidades europeias, a primeira, em Bolonha, no já longínquo ano de 1088 (ainda nem existia Portugal). E já que falamos de universidades, recordemos que D. Dinis, além de fundar a universidade portuguesa, instituiu o Português como língua oficial dos documentos da corte, dando um enorme contributo para a uniformização e desenvolvimento da nossa língua. Além disso, deixou-nos lindos poemas e cantigas (sim, ele também compunha). Apesar de ter sido um rei medieval, não me parece que D. Dinis tenha vivido num mundo de trevas.

Também foi na Idade Média que se redescobriu Aristóteles - no livro de Umberto Eco, “O Nome da Rosa”, que deu origem ao famoso filme, tudo gira à volta de uma obra perdida do famoso filósofo grego. E o avô de D. Dinis, D. Afonso X o Sábio, fez de Toledo um centro de cultura, com a sua Escola de Tradutores, onde reuniu estudiosos de várias proveniências (sobretudo árabes) e se traduziram, para latim e castelhano, obras árabes, assim como (ainda com a ajuda dos muçulmanos) tratados gregos de Filosofia, Astronomia, Medicina, Matemática, Geometria e outros. Também lá se traduziram a Bíblia e o Talmude para castelhano. Afonso X fundou igualmente, na mesma cidade, um Observatório Astronómico, consciente da necessidade de estudar os corpos celestes. Como vemos, a redescoberta da Cultura Clássica, assim como os primeiros passos da Ciência, não são um exclusivo do Renascimento.

A ideia que temos das igrejas românicas (mais antigas que as góticas), escuras e sem cor, é falsa. Na verdade, as suas paredes ostentavam frescos coloridos, que se perderam ao longo dos séculos, fosse em obras de remodelação, fosse no desbotar das pinturas que não eram restauradas. A esmagadora maioria desses frescos perdeu-se para todo o sempre. Mas há vestígios em algumas igrejas, que dão uma ideia da sua riqueza.

Recentemente, uma historiadora de arte italiana descobriu um fresco medieval de cores vivas e em excelente estado de conservação, na igreja de Sant'Alessio all'Aventino, nos arredores do Circo Máximo e do Coliseu, em Roma.

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A obra, que ficou escondida atrás de uma parede durante quase 900 anos (o que contribuiu para o seu estado de conservação), retrata Jesus Cristo e Santo Aleixo. Uma parte da pintura continua escondida pela parede, que, por questões de segurança, não pôde ainda ser removida.

As igrejas medievais, afinal, tinham muita cor. E havia excelentes artistas.

Bispo (utilizável)* na campanha eleitoral

jpt, 13.05.19

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"Se não fossem Costa e Mário Centeno, o País estava destruído", diz este bispo na entrevista à Visão. Como se já não bastasse que o Presidente da República beije o anel do pescador, e também os cardinalícios - significando submissão, a da República que representa, claro -, vem agora um bispo botar faladura política ... Imagine-se o falatório que seria se um qualquer prelado viesse, a 15 dias de eleições ainda por cima, elogiar a Dra. Cristas, presidente de um partido democrata-cristão? Ou assim outro, também da malvada direita neo-liberal, populista, afascistada, como, por mero exemplo, o ex-presidente do Sporting Santana Lopes, que lançou um partido que não vai viçoso, ou mesmo aquele rapaz que não gosta de ciganos e que diz "basta" ou "chega" ou coisa parecida? 

E, claro, a revista Visão foi fazer o número habitual da campanha eleitoral. Cá se fazem, que serão pagos ...

* Adenda: vi esta entrevista partilhada no suporte FB, por um ex-confrade bloguístico, normalmente muito atento, certeiro e assertivo. Julguei-a de agora mesmo. Afinal é de 2018, decerto que se enganou o referido ex-confrade (e político no activo), incompetente distraído fui, segui-o e nem atentei na data da publicação. Na caixa de comentários chamam-me a atenção para o facto. Ou seja, comprova-se a percepção deste veterano bloguista: não se deve blogar à noite enquanto se convive com o Queen Margot (ou similar). Restam-me algumas hipóteses: apagar o postal, o que não seria aleivosia pois ele pertence-me; modificar ("editar" como dizem os anglicistas) o postal; ou deixá-lo assim, com adenda esclarecedora, pois o relevante é que um bispo não deve falar assim, nem um presidente andar a subjugar-se aos curas. Escolho a terceira posição, modificando-lhe apenas o título.

 

Igreja, Mulheres e Ecologia

Cristina Torrão, 18.04.19

No meu post sobre a Igreja Católica em crise, houve comentários para todos os gostos (aliás, nunca imaginei que a minha estreia aqui corresse tão bem, obrigada a todos). Como sempre, as opiniões divergiram, numa grande variedade de temas tratados, mas há dois que me merecem mais atenção.

Fiquei muito surpreendida por o comentador JAB duvidar da ordenação de mulheres na Igreja Evangélica Luterana: Mulheres ordenadas na Igreja Luterana? Não sabia... E penso que não é bem verdade (...) O facto de haver mulheres que pregam a Palavra (...) não significa que sejam ordenadas (...) encontro a designação de "esposa" colaboradora do Pastor luterano, mas não o de "pastora" nem muito menos sacerdotiza... e muito menos bispa.

Estava à espera que se discordasse, mas não de que se duvidasse. Como é óbvio, ouço as palavras "pastora" e "bispa" muitas vezes (em alemão), mas, como a minha palavra não chega, fui pesquisar. Primeiro, no Duden, o mais conceituado dicionário da língua alemã. Na Alemanha, quando se tem dúvida se alguma palavra existe, vai-se ao Duden:

Bischöfin
Substantiv, feminin - oberste geistliche Würdenträgerin einer evangelischen Landeskirche

Tradução: "Bispa" - substantivo feminino - o mais alto grau clerical numa secção da Igreja evangélica.

A palavra "pastora" é um pouco mais complicada, porque, na definição, aparece "Pfarrerin", que é o masculino de "Pfarrer", que por sua vez é o "padre" português:

Pastorin
Substantiv, feminin - a. Pfarrerin; b. Ehefrau eines Pastors

Tradução: "Pastora" - substantivo feminino - a. "Pfarrerin" (o tal padre feminino); b. Esposa do Pastor (como o nosso comentador referiu; JAB, porém, não sabia que a palavra pode ter dois significados).

O acaso acabou por me ajudar, aliás, ligado a uma notícia triste. O acidente do autocarro com turistas alemães, na Madeira, fez-me saber que uma mulher, Ilse Everlien Berardo, pastora luterana, lidera há mais de 30 anos a Igreja Evangélica Alemã na Madeira.

Não satisfeita, fui procurar as bispas alemãs. A Igreja Luterana não está dividida em bispados, mas em secções, ou regiões. As autoridades clericais que as regem nem sempre são apelidadas de "Bispos", também há as designações "Presidente" e "Intendente". Duas dessas regiões são regidas por mulheres: a Igreja Evangélica do Centro (com sede em Magdeburgo) é regida pela Bispa Ilse Junkermann e a Igreja Evangélica da cidade de Bremen pela Presidente Brigitte Boehme.

Passo agora ao segundo tema que causou polémica: a Ecologia tornar-se uma causa da Igreja Católica. Por acaso, a jovem sueca Greta Thunberg encontrou-se recentemente com o Papa Francisco. E hoje deparei com uma notícia alemã, informando que muitos bispos católicos alemães apoiam Greta Thunberg e os protestos "Fridays For Future". E também fiquei muito satisfeita ao ler que o Bispo Heiner Wilmer, que preside ao bispado de Hildesheim, a que pertenço (e do qual eu falei no meu post anterior) declarou, à agência dpa: «Sou de opinião de que a Igreja deve funcionar como advogada do movimento "Fridays For Future"».

Aqui vai o original em alemão, com o link: „Ich bin der Ansicht, die Kirche muß Anwalt der ‘Fridays for Future’-Bewegung sein“, sagte der Hildesheimer Bischof Heiner Wilmer der Nachrichtenagentur dpa.

Ainda há esperança para a Igreja Católica!

 

Nota: Quem não souber alemão, terá de confiar na minha tradução, o que poderá não ser fácil para alguns dos leitores deste blogue...

A Igreja Católica em crise

Cristina Torrão, 15.04.19

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Leio e comento o Delito de Opinião há quase dez anos, embora, nos últimos tempos, as visitas se tenham tornado mais raras. Como tantos de nós (mea culpa) sucumbi à mais conhecida rede social (sim, o Facebook) e as minhas rondas pelos blogues diminuíram. Não obstante, foi com imensa alegria que recebi o convite do Pedro Correia para me tornar autora regular de um dos mais famosos e lidos blogues portugueses, uma demonstração de confiança que muito me honra.

Feita esta introdução, vamos ao assunto que aqui me trouxe: o abuso sexual de menores dentro da Igreja Católica.

Vivo na Alemanha e sou assinante de um jornal católico semanal, o KirchenZeitung, ou KiZ, na sua abreviatura oficial, pertencente ao bispado de Hildesheim. Nos últimos tempos, traz um ou mais artigos sobre este tema em quase todas as suas edições. Há quem ache que é demais e apele a que se deixe o assunto em paz. Já se admitiu que o problema existe. Não chega? Até porque, felizmente, os clérigos abusadores não são a maioria.

Surdo a tais apelos, o KiZ insiste no assunto. E eu aplaudo. Porque é disso mesmo que os prevaricadores estão à espera: que, depois de se fazer uma balbúrdia à volta do assunto, o caso adormeça e eles possam voltar a maltratar as suas vítimas na paz do Senhor. Como sempre foi, durante séculos e séculos. Uma teia impenetrável de prevaricadores e coniventes, que abafam os crimes, que nunca castigam os criminosos, levando a Igreja de Cristo a esta situação incomportável: protecção dos criminosos, em vez de protecção das vítimas! Dizia, há tempos, uma colaboradora desse jornal: é inadmissível que um padre que o deixe de ser, a fim de se casar, seja tratado de forma mais dura pela sua Igreja, do que aqueles que abusam sexualmente de crianças!

Tenho lido relatos incríveis de antigas vítimas. Também há mulheres, mas a maioria parece ser homens. Em todo o caso, trata-se de pessoas que, só aparentemente, levam uma vida normal, pois não se livram de depressões, insónias, ataques de pânico e tentativas de suicídio durante toda a sua vida. Pessoas com asco de si próprias. Pessoas que tornam a recordar coisas que julgavam esquecidas, por exemplo, quando têm filhos, levando-as a cair novamente num poço escuro e frio, chegando a ficar com medo de tocar nas crianças (as suas crianças) de forma imprópria.

É duro ouvir um homem de sessenta anos dizer que se martirizou com pensamentos de pecado, ao lembrar-se de como regozijou ao saber que o padre, que abusara dele durante dois anos, ia ser transferido para outra paróquia. Na festa de despedida, toda a gente estava triste, por aquele padre tão simpático se ir embora. E ele, um miúdo de 11 ou 12 anos, estava feliz. E censurou-se por isso! É duro ler como bispos regiam autênticas redes de troca de menores. É duro ler como um padre, ganhando a confiança de uma família, a ponto de fazerem férias juntos, abusasse do miúdo, que dormia com ele, enquanto os pais dormiam no quarto ao lado, pensando que o filho não poderia estar entregue em melhores mãos.

Este último caso ilustra como a Igreja tem responsabilidades acrescidas. O Papa Francisco desiludiu no seu discurso de encerramento do encontro extraordinário de bispos em Roma, a fim de debater o assunto, há cerca de dois meses, ao relembrar que abusos sexuais a menores acontecem em todos os lugares onde adultos estão em contacto com crianças e jovens, como clubes desportivos, colónias de férias, lares, etc. Esta relativização caiu mal a muita gente, pois não se pode comparar o prestígio de um clérigo, representante de Deus na Terra, com o de um treinador de ginástica. Além disso, aconteça onde acontecer este crime, não pode ser nunca menorizado ou relativizado. Muitos se perguntam o que levou um Papa, normalmente tão acutilante e corajoso, ficar-se por discurso tão modesto. Por isso, escolhi a fotografia acima para ilustrar este post (igualmente copiada do KiZ): o Papa mostra-se abatido e encolhido, como se o peso que carrega nos ombros se tenha tornado demais para ele.

Numa altura de falta de padres e de igrejas quase vazias, escândalos deste tipo minam a confiança na instituição milenar. Não há dúvida de que a Igreja vive uma grande crise e só resolverá o problema com uma grande reforma. Alguns bispos alemães dão os primeiros passos, apesar de sofrerem a contestação de muitos dos seus pares. O novo bispo de Hildesheim, por exemplo, afirmou, numa entrevista, que a ganância do poder está inscrita no DNA da Igreja. Foi naturalmente muito contestado. Mas também apoiado. Porque ele pôs o dedo na ferida. Os abusos impunes de menores só se tornaram possíveis, porque a Igreja se transformou num clube de homens que se protegem uns aos outros, a fim de manterem o seu poder.

O bispo Heiner Wilmer não se deixa intimidar e constituiu uma comissão que deverá investigar os casos de abuso sexual no seu bispado entre os anos 1957 e 1982, o tempo de regência de um bispo muito querido e conceituado, mas que se desconfia que fazia parte de uma rede de troca de rapazinhos, algo que caiu como uma bomba entre os católicos alemães que se lembram dele, até agora, com muita saudade. Os elementos da comissão investigadora não são clérigos, nem estão particularmente relacionados com a Igreja, a fim de garantir a sua independência. E o bispo Heiner Wilmer prometeu pôr todos os arquivos à disposição dos investigadores. Este é um dos problemas, quando se trata de investigar: a retenção de informação por parte da Igreja.

Quatro pessoas fazem parte da comissão: dois psicólogos, que se encarregarão de entrevistar possíveis vítimas e outras testemunhas; um procurador-geral reformado que, durante quinze anos, presidiu a uma comissão que investigou crimes nazis em Ludwigsburg, e a antiga Ministra da Justiça da Baixa Saxónia (um Land alemão) que presidirá à comissão (informações tiradas do Kiz nº 14, de 07 de Abril passado).

O facto de estar uma mulher à frente desta comissão não é por acaso. O bispo Heiner Wilmer é de opinião de que a Igreja Católica só tem a ganhar envolvendo mulheres nos seus assuntos. Mais: ele considera ser essencial a participação de mulheres na reforma que se exige, não excluindo a sua ordenação.

Foi com agrado que, apesar das críticas que lhe são feitas, constatei haver colegas seus a seguir-lhe o exemplo. No último KiZ (nº 15, de 14 de Abril), li que o bispo de Osnabrück, Franz-Joseph Bode, considera a discussão do papel da mulher na Igreja como urgente, central e inevitável. Na sua opinião, a Igreja Católica está a desmoronar e só pode recuperar a confiança, quando mulheres e homens trabalharem em conjunto. Li igualmente com muito agrado que o bispo de Limburg, Georg Bätzing, pretende igualmente constituir uma comissão, a fim de investigar os abusos sexuais no seu bispado nos últimos setenta anos. A comissão será constituída por duas pessoas não ligadas à Igreja e terão de ser um homem e uma mulher.

Não se trata, aqui, de quotas ou de calar críticas. Trata-se, acima de tudo, de enquadrar mulheres nos meandros da Igreja, quebrando o monopólio dos homens que se apoiam e protegem mutuamente. Desejo muito que isso aconteça. Não porque as mulheres sejam, em geral, melhores do que os homens, mas porque a sua presença quebrará a irmandade masculina. Além disso, a sua opinião deve ser ouvida. Os homens são apenas metade da Humanidade. Nos dias de hoje, não há razão para que sejam apenas eles a decidirem sobre assuntos que digam respeito a toda a Humanidade. Na verdade, impressiona-me que tal procedimento tenha vigorado durante milénios!

Sigo tudo isto com grande interesse, não para atacar a Igreja Católica, mas numa grande esperança de que ela se consiga renovar. A Igreja enfrenta um dos maiores desafios da sua História e urge redefinir o seu papel. Para que serve, hoje em dia? Apenas para baptizados, comunhões, casamentos e funerais? Não podemos esquecer as suas tão necessárias missões caritativas espalhadas pelo mundo. E a Igreja Católica alemã tem-se concentrado noutras causas: o apoio aos refugiados (nos últimos anos, entraram cerca de dois milhões, neste país) e a ecologia. Sim, a preservação do ambiente, aliada à causa animal, tem-se tornado, cada vez mais, uma causa da Igreja. A razão? Proteger a Criação Divina.

Seria bom que a Igreja portuguesa lhe seguisse o exemplo, fomentando o debate sobre temas polémicos e se deixasse de dogmas ultrapassados, a fim de se dedicar a causas realmente importantes.

A fé

jpt, 13.04.19

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Eis o homem, ocorre-me dizer, no meu ateísmo, e nisso vou indiferente a que possa parecer uma (quase)blasfémia aos crentes - será apenas problema deles. Encontro isto no FB enquanto leio alhures (via Corta-fitas) dois profundos textos do Papa Bento XVI sobre abusos sexuais internos à sua igreja. Nesta conjugação mostra-se um momento difícil mas grande para os vizinhos católicos (e, espero, para uma democracia-cristã europeia, que vai indo invisível e talvez moribunda).

Isto resolve, no imediato? Pouco valerá. Os "senhores da guerra" adiarão por umas semanas as suas induções de execuções. E os prelados malévolos masturbar-se-ão um pouco mais nos próximos meses, dando alguma folga às suas vítimas. Depois tudo continuará.

E entre a gente comum continuará o fel, o seu império. Encontro esta foto num mural-FB: sobre o acto de Francisco o primeiro comentário é de um moçambicano, vituperando o acto, "ele que vá fazer isso ao Trump e outros ..." (outros brancos, claro), e segue num discurso completamente racista. E sobre um dos textos de Bento XVI (esse que todos os cultores do transgenderismo e outras transumâncias identitárias que surjam algo exóticas chamam Ratzinger, neste caso recusando a mudança identitária, e assim negando tudo quanto peroram, e até profissionalmente, tão ufanos seguem na sua mediocridade) logo leio textos de blogs comunistas deturpando-lhe, por reducionismo aleivoso, o conteúdo para o poderem aviltar.

Ou seja, vale a pena beijar os pés a esta escumalha, o intelectual burguesote português tão cioso de si, o racista moçambicano, os títeres sudaneses, diferentes no local mas iguais na miséria que são? Não. Nada os vai mudar.

Mas é isso a fé. Crer no inexistente. De vez em quando fica bonito. Este é um caso desses.

O bispalho de Bolsonaro

jpt, 05.04.19

No aniversário da tomada de poder surge um bispalho católico a fazer a apologia da ditadura brasileira - agora readmitida no panteão da cidadania por este Bolsonaro, o qual vai a Israel dizer que o nazismo "é de esquerda", para gaúdio dos facebuqueiros lusos (e decerto que espanto dos locais, mais preocupados com outras coisas ...).

Bispalho esse a fazer jus ao passado da "santa" madre igreja, usando o púlpito para expressar o seu desejo de  envenenar Caetano Veloso, ainda condenável pela sua canção "sessentaoitista", a do "proibido proibir". Um clamoroso ignorante - numa igreja que se ufana tanto dos seus pergaminhos intelectuais "jesuíticos" - incapaz de perceber o óbvio paradoxo da expressão. E, mais do que tudo, um revanchista, que 50 anos depois ainda tem frémitos de vingança contra o satânico cantor. "Eles não esquecem" ...

Um bispalho fascista, apoiante de um presidente fascista. Apoiado no nosso rincão pelo pelotão dos "redessociailistas" da disfunção eréctil, todos vomitando o fel da impotência. No bolsonarismo, mais ou menos explícito, reclamado, dos do "Chega", do "Aliança", sapudos teclando. E dos do "CDS". Sim, do "CDS" - o partido de uma Cristas que acha necessário apartar-se de um militante que chama "fufa" a uma deputada mas que não se demarca da escumalha (cristã, advogada bem paga, provavelmente lobista) do seu partido que por aí bolsonara.

Sim, há música satânica.  Mas não é esta. Pois "keep on rockin ..".  Ao avesso do satanismo desses bispalhos. E seus paspalhos. Flácidos.

O Papa que quis ser maestro

Pedro Correia, 21.03.19

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Quando era pequenino, Jorge Mario Bergoglio – primeiro Papa oriundo do continente americano – queria ser maestro. Sentia-se vocacionado para conduzir orquestras que acompanhassem óperas italianas – as mesmas que escutava religiosamente todos os sábados, na companhia da mãe, filha de um modesto carpinteiro, na rádio nacional argentina. A avó materna, ouvindo-o exprimir tal vocação, disse-lhe: «Mas para isso é preciso estudar. E para estudar é preciso esforço, não é fácil…»

Foi uma das lições que a vida transmitiu ao futuro chefe da Igreja Católica: nada de relevante se consegue sem trabalho árduo e persistente. «Graças a Deus tive os meus quatro avós até tarde», recorda hoje o Papa. Os pais, oriundos de uma região pobre de Itália, viram-se forçados a rumar à Argentina na década de 20: o primeiro idioma que este filho de emigrantes aprendeu em casa foi o dialecto piemontês. Uma das suas recordações mais antigas remonta a Agosto de 1945, quando tinha oito anos, no quintal lá de casa: chegou uma vizinha alvoroçada e comunicou à família que a guerra terminara.

Ordenado sacerdote aos 33 anos, Bergoglio teve ocasião de testemunhar outros períodos em que Deus parece ter-se divorciado do destino humano. Durante a brutal ditadura argentina, por exemplo, foram assassinadas pessoas de quem estava próximo. Incluindo uma amiga comunista do Paraguai que costumava emprestar-lhe livros e a quem agora agradece por tê-lo «ensinado a pensar»: prisioneira política alvo de torturas, acabaria morta em 1977 por um método muito associado a esse regime: meteram-na num avião e lançaram-na ao mar.

 

Diálogo com agnóstico

 

São revelações contidas no livro Um Futuro de Fé, nascido de um conjunto de doze conversas travadas entre Fevereiro de 2016 e Fevereiro de 2017, no Vaticano, entre o Sumo Pontífice e o sociólogo francês Dominique Wolton, especialista em comunicação e autor de obras similares com o filósofo Raymond Aron (1981), o arcebispo de Paris Jean-Marie Lustiger (1987) e o presidente da Comissão Europeia Jacques Delors (1994).

«O homem é, fundamentalmente, um ser comunicante», disse o Papa ao assumido agnóstico que durante um ano foi seu interlocutor na modesta Casa de Santa Marta que lhe serve de residência após ter recusado viver no sumptuoso Palácio Apostólico onde se alojavam os anteriores pontífices.

Com três diplomas universitários (licenciaturas em Engenharia Química e Filosofia, doutoramento em Teologia), Bergoglio tornou-se o Papa Francisco em 13 de Março de 2013. À conversa com Wolton – exprimindo-se «num francês melhor do que faria crer», segundo o sociólogo – lembra esses dias que lhe mudaram a vida para sempre. Chegou a Roma vindo de Buenos Aires, onde era arcebispo, «com uma pequena mala e um bilhete de regresso.» Nem lhe passava pela cabeça, confessa, sentar-se no trono de São Pedro: «Havia três ou quatro “grandes” nomes… Para os corretores de apostas em Londres, eu era o 42.º ou 46.º»

Nesse fim de tarde, foi apresentado ao mundo como novo líder espiritual de mais de mil milhões de católicos. «Boa noite» foi a primeira mensagem que dirigiu à multidão concentrada a seus pés. Porquê? «Não sabia que outra coisa dizer naquele momento.»

 

Chaplin e Dostoievski

 

Outras frases marcantes acompanham o pontificado deste bispo de Roma que se manifesta contra os fundamentalismos, exprime sérias reservas à globalização que «destrói a diversidade» e admite ter uma aversão inata à hipocrisia. Algumas das mais significativas surgem neste livro-entrevista dividido em oito capítulos e que talvez deva ser lido a partir do último – o mais confessional, em termos humanos. Eis três delas: «Cuidado com o analfabetismo afectivo»; «Não confundamos a felicidade com um sofá»; «É preciso construir pontes e derrubar muros.»

Um Futuro de Fé revela-nos um Papa que na Argentina natal sentiu necessidade de fazer psicanálise. Que fala de Platão, Hegel e Dostoievski. Que menciona filmes como Tempos Modernos e A Festa de Babette. Que se comove ao ver o quadro A Conversão de São Francisco, de Caravaggio. Que aponta a vantagem suprema da religião: «Lembra-nos que é necessário elevar o espírito para o Alto a fim de construir a cidade dos homens.» E que partilha o que sentiu ao visitar o antigo campo de extermínio de Auschwitz: «Vi como era o homem sem Deus.»

 

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Um Futuro de Fé, do Papa Francisco, em diálogos com Dominique Wolton (Planeta, 2019). Tradução de Maria Leitão. 342 páginas.
Classificação: *****
 
 
Publicado originalmente no jornal Dia 15

O drama de Alfie transformado numa questão fracturante

Alexandre Guerra, 30.04.18

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James Evans, pai de Alfie, recebido pelo Papa Francisco no Vaticano/Foto:Alfies Army/Facebook

 

Alfie Evans não chegou a completar dois anos de vida. Morreu no Sábado de manhã no Hospital pediátrico de Alder Hey, em Liverpool, não conseguindo resistir mais a uma doença degenerativa rara no cérebro, que o tinha condenado a um estado semi-vegetativo. Alfie esteve cerca de um ano nesta condição, ligado a uma máquina de suporte vital, sem qualquer sinal de recuperação. Pelo contrário, os vários exames mostraram que quase todo o cérebro do bebé estava destruído. Para os médicos, nenhum tratamento existente poderia reverter o estado de Alfie e assegurar-lhe uma vida minimamente digna. Por isso, tomaram a difícil decisão de desligar a máquina de suporte vital. Mas o amor imenso dos pais pelo filho sobrepôs-se a qualquer evidência científica, com a esperança a imperar sobre a racionalidade. Dificilmente para um pai ou para uma mãe, poderia ser de outra maneira. E embora a lei inglesa dê aos pais o direito de procurarem o melhor tratamento para os seus filhos, não se trata de um princípio absoluto, visto que se uma entidade pública considerar que essa decisão possa implicar riscos significativos para a criança, então esse mesmo direito parental pode ser contestado.

 

E foi isso que aconteceu a 20 de Fevereiro quando o “High Court” deu razão ao hospital e reconheceu as provas médicas que foram apresentadas, ou seja, de que o pequeno Alfie não tinha salvação e que a ligação à máquina representava um prolongamento artificial da vida, com dor e sofrimento. Os pais do bebé acabaram por recorrer aos tribunais, incluindo o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, e é partir deste momento que a tragédia do pequeno Alfie começa a assumir contornos fracturantes no seio da sociedade inglesa.

 

No passado dia 23, depois de os pais terem perdido todos os recursos que interpuseram, os médicos desligaram a máquina de suporte vital. Desde então, o debate intensificou-se, com o Papa Francisco e o Estado italiano a prontificarem-se para receber a criança, defendendo que os pais estavam no direito de procurar novos tratamentos para o Alfie. As autoridades inglesas recusaram a possibilidade do bebé viajar para fora do país, apesar das insistentes diligências feitas pelo chefe do Vaticano.

 

Naturalmente, o lado humanista de Francisco impeliu-o a tomar uma posição sobre este assunto, a envolver-se, a sensibilizar-se, mas enquanto chefe da Igreja Católica teve que, obrigatoriamente, assumir este “combate”, perante o primado da ciência e da lei sobre aquilo que, para um crente, pode ser considerado um acto de fé, o de depositar o destino da vida de uma pessoa nas mãos de Deus. Aliás, Francisco, em jeito de aviso, enunciou um princípio conservador e imutável desde a fundação da Igreja: só Deus pode criar e tirar vida. E nas alas mais conservadoras, do outro lado do Atlântico, Newt Gingrich, num artigo na Fox News (onde podia ser mais?) não perdeu tempo ao afirmar que o pequeno Alfie foi “condenado à morte” pelo “assustador Estado britânico secular”. Neste texto particularmente agressivo, Gingrich, uma voz sempre activa em matérias fracturantes nos EUA, volta a lembrar que por causa das correntes progressistas que instituíram governos seculares de esquerda, os “our God-given rights” estão a dar lugar a “direitos” contratualmente estabelecidos com governos tiranos. Embora seja radical no tom, a verdade é que a posição de Gingrich não é (nem podia ser) muito diferente daquela que Francisco e a Igreja adoptaram no âmbito da problemática em torno do drama de Alfie Evans.

 

As questões fracturantes, por norma, tendem a polarizar-se em campos extremos, sendo que é possível encontrar argumentos válidos (ou pelo menos compreensíveis) em ambos os lados do debate. É assim há séculos: progressistas vs conservadores, ciência vs religião, lei vs fé, paixão vs razão… Seja como for, a convivência em sociedade vai-se fazendo através de cedências e negociações, mas não nas questões fracturantes. Para quem as vive e as sente, não há meios-termos, não há compromissos possíveis. Consoante o lado em que se está, há o certo ou o errado, há o moral ou o imoral, há o aceitável ou o inaceitável, há o preto ou o branco… Estes temas assumem contornos dramáticos e emocionais, onde há um vencedor e um perdedor, porque, de certa maneira, reflectem formas de estar em sociedade, das quais as pessoas não podem nem querem abdicar. E quando se trata de legislar sobre as mesmas, muitas das vezes é dada liberdade de voto aos legisladores, sob o argumento de se tratarem matérias de “consciência” individual. 

 

Se partirmos de um modelo de análise em que admitimos que, para as correntes mais conservadoras, a política faz-se sob o primado dos valores, da ética e da moral, e para as áreas mais progressistas, o fenómeno é visto sob a perspectiva positivista e científica – aceitando-se o primado da técnica e da razão –, então é possível enquadrar e antecipar determinados debates. Problemáticas, essas, que na Europa nem sempre são tão inflamadas como nos EUA, mas mesmo assim são fracturantes e criam rupturas. Veja-se, por exemplo, em Portugal, onde nos últimos tempos, temas como a eutanásia ou as “barrigas de aluguer” vieram para o topo da agenda política e mediática. Aliás, se considerarmos o pressuposto acima enunciado, é possível prever, com algum grau de certeza, a tendência de voto de alguns dos legisladores quando o assunto da eutanásia descer ao Parlamento. É também muito provável que, à medida que o dia da votação se aproxime, as diferentes correntes na sociedade façam ouvir a sua voz e se manifestem de forma emocional em diferentes campos.

 

O drama do pequeno Alfie Evans, e todo o debate intenso que suscitou, demonstra que as chamadas questões fracturantes continuam a despertar as convicções mais primárias que existem em cada um de nós, enquanto seres sociais, e que, apesar de uma certa uniformização comportamental nas sociedades ocidentais, há matérias que, pela sua natureza específica, enfatizam apaixonadamente as diferenças dos vários modelos de pensamento.

Uma declaração extraordinária

Pedro Correia, 13.03.18

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«Basta stolto pregiudizio contro di lui.»

Uma declaração extraordinária de Bento XVI, rompendo o silêncio. Em defesa do seu sucessor, Francisco - eleito faz hoje cinco anos como dirigente supremo da Igreja Católica.

Uma declaração que desautoriza sem rodeios nem sofismas todos quantos pretendem invocar o Papa emérito para denegrir quem o rendeu no trono de Pedro, movidos por ódio político, ideológico ou religioso em relação ao actual Sumo Pontífice, autêntico  "pároco do mundo", como o designa a revista italiana Panorama.

Basta de preconceitos tontos contra ele.