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Delito de Opinião

Confessionário

Sérgio de Almeida Correia, 03.12.23

Esta tarde estive a ler um livro de amigos oferecido por um amigo. Dei comigo a pensar neles. Nos amigos. E nelas. Na distância a que estou de muitos, nos aniversários que tenho perdido, nas horas infindas de conversa e cavaqueira, nos disparates, nos dias, almoços, jantares e noites que acabam para podermos descansar e começar outro dia, nas discussões, nos risos, nos abraços, nos beijos que trocámos ao longo de uma vida, nos olhares cúmplices, no riso sincero, desprendido, nos segredos que guardamos, na confiança que temos, na teimosia, tantas vezes, com que nos brindamos mutuamente. Nas críticas, nos amuos, na forma como nos olhamos, respeitamos, amamos. E tantas vezes nos perdemos para sempre nos reencontrarmos. Há tempos vi um num supermercado, a milhares de quilómetros de casa. Fazia perguntas à operadora da caixa enquanto guardava as compras. A T. reconheceu-o, mais velho, ao fim de uma data de anos, pelas perguntas que fazia à sujeita. E atirou-lhe com ar sério um "o senhor nunca mais se despacha?". A senhora do supermercado, que ia respondendo às perguntas a ver se o fulano se ia embora, sorriu e riu-se para dentro. Deve ter rido com gosto. Pudera. É preciso ter lata. O tipo, mais velho, levantou os olhos, sem perceber o atrevimento. Começou a rir-se, deu-me um abraço quando me viu, ao fim de mais de 20 anos. E perguntou-me se continuava a escrever. Sim, continuo. E tenho os mesmos amigos. E mais uns, mais recentes, tão bons como os antigos. Penso muito neles. E nelas. Algumas também meias-irmãs, outras ex-semi-namoradas. Amigas. Amigos. Têm tomado conta de mim ao longo da vida. E feito de mim o que sou. Gosto muito dos meus amigos. É uma confissão. Uns são mais velhos, outros mais novos, uns mais sisudos, outros mais impertinentes, também há alguns que são do Porto, outros do Sporting. Atrevidos e atrevidas. Uns com mais lata que outros. E adeptos de clubes indescritíveis. Uns palermas nessa matéria. Mas também são meus amigos. E há alguns que não percebem nada de carros e não gostam de velocidades. Outros ainda abanam a cabeça, mas não me dizem nada, quando compro um Alfa Romeo. Lá no fundo não percebem o que eu vejo naqueles carros. E porque vou a Le Mans todos os anos. Essa é a parte misteriosa de quem vive muito depressa. Também escrevo muito depressa. Felizmente que ainda tenho tempo para fumar um charuto. De vez em quando. Com os amigos. E alguns não fumam, embora fumem comigo. Com os olhos. E depois rimo-nos muito. De outras vezes fumo sozinho. Também penso neles. Sozinho. Às vezes choramos. Eles não. Eu choro. Porque também sinto a distância dos que estão longe. E dos que partiram. Hoje também me lembrei do M. que está no Porto. Ainda lhe devo uma resposta ao último email. Vai por aqui. Há pouco lembrei-me de todos eles quando comprei um quadro da minha sombra. Como a do Livro de Curso. Igual ao do Almada que estava na Gulbenkian. Com o Pessoa. Obra do Vítor Marreiros. Depois o Vítor telefonou-me, porque aquele quadro não era para vender. O fulano da galeria não sabia. O que levei tinha defeito. O Vítor disse que aquele não era para mim. Havia umas letras que estavam trocadas. O meu é outro. Está no atelier dele. Com as letras todas. Quando tiver o certificado para mim fazemos a troca. Ele fica com o das letras trocadas, eu fico com o dele que não estava na galeria. Não conheci nenhum amigo do Fernando Pessoa. Nem dos seus heterónimos. Eles é que me conheceram. Também são meus amigos. Quando os leio, às vezes mesmo quando vou pela rua, acho que eles me vêem. Aqui não é superstição. É crença. Os amigos vêem-me. Às vezes há uns que me dão uma sova quando lêem o que eu escrevo. Têm mais medo do que eu. Eu sei. Sou um irresponsável. Eu nunca tive medo. Mesmo quando estou sozinho tenho amigos que zelam por mim. E há umas que até rezam. A Mélita era uma delas. Deixou muita saudades. Eu também tenho muitas saudades. Dela e dos meus amigos. Quando não estou com eles. Vale-me uma amiga que está sempre por perto e que tem dias em que me azucrina a mioleira. Não presto atenção às coisas. E diz-me. Não a levo a mal. No fundo gosta de mim. É minha amiga. Depois queixa-se das suspensões dos carros. É a mais atrevida. Os outros não dizem nada. Os carros também não. No dia em que me for embora vou ter saudades dos meus amigos. Deles e da minha liberdade. Espero que eles não se chateiem. Ainda eram capazes de me ir buscar ao Guincho e acabava-se o meu sossego.    

 

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Os amigos de Alex

João Sousa, 12.11.23

Foi-me impossível ouvir o comício de ontem de António Costa sem recordar o texto que João Gonçalves publicou na terça-feira, um par de horas antes de Costa anunciar a sua demissão:

«Apresentar a ou b como “melhor amigo” de António Costa é uma contradição nos termos. Costa não tem amigos, “melhores” ou “piores”. Tem, e deixa de ter, pessoas que servem objectivos. Uma vez alcançado, ou não, o objectivo é cada um por si e Costa por Costa.»

Amigos de aluguer

Ana CB, 21.01.22

Li num artigo que em Tóquio é possível alugar amigos. Ou seja, pagar a alguém para ser nosso amigo durante umas horas. Os “amigos de aluguer” entrevistados contam as histórias mais variadas, desde serem contratados para passarem por familiares de uma noiva, posarem para selfies no Instagram, fingirem ser um namorado ou namorada, ou serem apenas correspondentes por email. No entanto, a grande maioria das pessoas que os contratam apenas querem companhia: para ver TV, ir às compras, ou simplesmente conversar.

Para quem trabalha nesta área, a motivação não parece ser o dinheiro – o valor que recebem por hora não é assim tão alto quanto isso (sobretudo num país caro como é o Japão), e a procura destes serviços é sempre incerta. Há quem diga que é o desejo de ajudar quem precisa de algumas horas de conforto emocional, ou quem o faça para quebrar a rotina de um emprego estável mas algo monótono. Alugar a nossa amizade a estranhos em troca de dinheiro parece estar algures entre um passatempo e a prestação de cuidados paliativos.

O que é que isso diz de uma cidade como Tóquio, tida como superdesenvolvida e onde há lugar para todas as excentricidades? E o que é que diz sobre a sociedade japonesa, que é supostamente tão correcta e amigável? A explicação dada no artigo é que no Japão, o importante é a fachada, o exterior impecável, a aparência de que está tudo bem. As pessoas não estão habituadas a mostrar o seu lado mais vulnerável, têm dificuldade em abrir-se com os outros. Não se tocam. Não exprimem as suas emoções. Psicologicamente, não estão bem, mas não partilham o que sentem, e não procuram ajuda – porque há um estoicismo, transversal a toda a cultura japonesa, que faz com que se vejam obrigados a aguentar tudo sem darem parte de fracos. Nas redes sociais podem até mostrar uma vida feliz, alegre e preenchida, mas muitas vezes tudo não passa de uma mentira.

Num país onde é normal ter um horário laboral diário de 10 horas e frequentemente o convívio se resume à família e aos colegas de trabalho – com o habitual distanciamento físico e emocional já firmemente incorporado nos hábitos sociais – sobra pouco espaço e tempo para construir amizades verdadeiras, e menos ainda duradouras. Num país que é tecnologicamente muito desenvolvido, culturalmente avançado (e esta é a explicação mais invocada para as reduzidas taxas de infecção e morte por covid-19 que o Japão tem mostrado), hiperprodutivo, politicamente estável e etnicamente homogéneo, esta incapacidade de ter e manter amigos parece coisa de ficção científica – e daquela mais pessimista.

Como latinos que somos (e optimista que sou), estou em crer que por cá a “moda” não irá pegar. Mas… este retraimento a que somos forçados há quase dois anos, somado à apetência cada vez maior pelos smartphones e à substituição de formas de entretenimento interactivas por quilómetros de scroll e horas passadas a jogar ou nas redes sociais, não são um bom indicador do que poderá ser o futuro próximo, sobretudo para as gerações mais jovens – que desconhecem o poder reconfortante das tardes à conversa com os amigos num qualquer café de bairro.

Da importância de ser amizade

Patrícia Reis, 21.07.14

A melhor forma de amor é a amizade, é quase banal dizer ou escrever, mas talvez não seja tanto assim.

Quantas vezes pensamos nós nos amigos? Quantas vezes telefonamos para saber deles e não contar a nossa vidinha?

Quantas vezes é que somos mesmo amigos: sentados à mesa, a partilhar uma refeição, a rir, perdidos no tempo, sem noção das horas, petiscando pedaços de pão (ou, muito melhor, pedras de Santiago)?

Este sábado, com o miúdo-quase-homem, uma amiga e apenas nós, o meu marido e eu, corremos tudo: política, sexualidade, direitos e deveres, histórias mal contadas, acontecimentos de vida marcantes.

E, quando a nossa amiga falou da avó Joana, os olhos ficaram do tom mais profundo do mar e o nosso coração encolheu, viemos à superfície e sobrevivemos na conversa. Por amor. Por amizade. Por estarmos todos com os telemóveis desligados. Sem preocupações de monta. Das oito da noite até quase às quatro conversámos.

Caramba, uma conversa é tão importante!

E tudo foi recíproco. Nada foi dito a medo, com formalidade.

Quando é assim, posso garantir, é um privilégio.

voltar sem nunca ter partido

Sérgio de Almeida Correia, 08.11.13

Estou de volta, João. Vê lá como as coisas são. Tão livre como quando te telefonei. E com os amigos de sempre.

Penso que ficarias satisfeito por sabê-lo. A vida trocou-nos as voltas, a ti e a mim, mas não as amizades. E a liberdade está onde sempre esteve: em nós. Vê lá como as coisas são.

E sabes que mais? Só os tontos não voltam aos locais onde foram felizes, ao convívio com os seus. Só os tontos não recuperam a alegria. O Pavese era um tonto.

Exploradores Portugueses e Reis Africanos

jpt, 15.10.13

Sou amigo do Filipe Verde há quase trinta anos (como custa escrever estas quantidades) e é também por isso, por esta minha fidelidade à ideologia do amiguismo, que aqui venho divulgar este "Exploradores Portugueses e Reis Africanos" (editado por A Esfera dos Livros), o livro que agora escreveu com Frederico Rosa. O qual será apresentado ao público no próximo dia 22 (terça-feira) em Lisboa, na livraria Bertrand no Chiado, por aquela hora do fim da tarde. Acontece ainda que o Filipe é o tipo com a mente mais brilhante que eu conheço (sim, sei do piroso que isto soa), opinião que já bloguei a propósito do lançamento do seu luminoso livro "O Homem Livre", o qual deveria ser presença constante nas estantes mas que me parece meio esgotado, e que continuo a recomendar como obra máxima do pensamento actual em Portugal. O Filipe Verde tem ainda a rara capacidade de pensar denso e escrever leve (entenda-se: muito bem), tornando acessível o seu pensamento de Homem Livre, nada sujeito a modismos e a obrigações de lojas, clubes ou capelas. Com tudo isto até parece que quero desmerecer o co-autor Frederico Rosa, mas não é o caso, é apenas eco de o desconhecer, apenas o ouvi uma vez, há anos, numa informadíssima comunicação, daquelas que denotam um intelectual de mão-cheia.

 

O livro destes dois antropólogos intenta uma releitura das viagens portuguesas em África durante XIX, visitando o calcorrear de Lacerda e Almeida, António Gamito, Rodrigues Graça, Silva Porto, Serpa Pinto, Hermenegildo Capelo, Roberto Ivens e Henrique de Carvalho, cruzando o olhar da antropologia, da história e da literatura. Coisa pensada não para especialistas mas sim para quem se possa e queira interessar, seja sobre o período histórico, seja sobre África, seja sobre essa coisa da construção dos discursos sobre o longínquo (e quantas vezes tornado exótico). Em termos de apelar a um repensar da história começa muito bem, logo com o título, nisto de "...Reis Africanos", pontapeando o velho olhar sobre o caos (apolítico) africano, o primitivismo sempre presente, com várias roupagens ...

 

Enfim, o lançamento é daqui a uma semana. E se alguém daqui (do in-blog) parta para assistir (os tipos falam bem, já agora) peço para ir lá ao Filipe Verde e entregar um abraço ido do jpt, qu'isto de viver longe tem recompensas mas também tem destas coisas, o perder os bons momentos dos nossos. 

 

Para quem não tiver disponibilidade fica o desafio, o de folhear o livro a deixar-se tentar, a ver se gasta os quase vinte euros (em podendo, e pelo que já li, justificar-se-á).