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Delito de Opinião

Quando a tolice se torna lei

Pedro Correia, 07.11.16

 

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O tempo passa e a indispensável reforma do impropriamente chamado “acordo ortográfico” já vai tardando. Reforma destinada a impedir os absurdos que vamos lendo por aí, como a aberrante separação de famílias lexicais que ao abrigo das pseudo-regras acordísticas permitem escrever facto e fator, sectorial e setor, tectónico e teto, característica e caráteregiptólogo e Egito.

Porquê? Apenas porque sim.

“Pronúncia culta”, dizem eles. Sem conseguirem definir o que raio entendem por “pronúncia culta” e qual o critério científico que autoriza sustentar, enquanto trave-mestra do AO90, a imposição de controversos sistemas fonéticos normativos. Eu, que faço questão de me expressar em português correcto, digo eleCtrizante e daCtilógrafa, palavras que – entre tantas outras – vejo sistematicamente mutiladas em legendas de filmes e séries televisivas que aplicam a guilhotina acordística já não às chamadas consoantes mudas mas às próprias consoantes articuladas.

 

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«A regra da fonética é pura tolice, como facilmente se comprovará. A ser assim, o verbo "Estar" teria de mudar. Ninguém diz, em voz corrente, "estou a almoçar" ou "estás a aprender muito devagar" ou "estamos fechados, volte mais tarde"; diz-se ‘tou, ‘tás, ‘tamos. Se a regra da fonética fosse para valer, teríamos o verbo Tar: Eu tou, Tu tás, ele tá, nós tamos, vós tais, eles tão. Bonito? Há pior. Querem ver como se altera o som de uma palavra pela escrita? Veja-se, por exemplo, "co-adopção". Assim, lê-se "cô (de ‘com’, daí a acentuação do "o") âdóção". Se retirarmos o P, leremos por impulso "cô-adução"; mas se tirarmos o hífen leremos "cuadução", porque nas palavras onde o "co" perdeu vida própria essa é a tendência vocálica dominante.»

Palavras sábias. Do Nuno Pacheco, no Público.

Será possível que ninguém as escute?

 

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O problema é quando a tolice se torna lei, avalizada com a chancela do Estado português - que devia delegar na comunidade científica a última palavra nesta matéria, como de resto sucede em Espanha ou no Reino Unido, onde nenhum governante se lembrou de alterar a norma ortográfica para acomodá-la ao padrão dominante no México ou nos Estados Unidos, vergado ao peso demográfico destes países. Precisamente ao contrário do que fizeram Cavaco Silva e José Sócrates em 1990 e 2008.

«Um exemplo inglês, que andou por aí muito em voga devido ao nome de um clube. Leicester, como Worcester ou Gloucester, perde na fala o “ce” do meio. Lê-se Leister, Worster, Glouster. Pelo extraordinário acordo português, mudariam de grafia. Só que os ingleses não são loucos e sabem, como também deveríamos saber, que a escrita e a fala são disciplinas distintas», observa ainda o Nuno Pacheco, cheio de razão.

 

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Em vez de aprendermos com os bons exemplos, como o britânico, nesta matéria não falta quem acelere de asneira em asneira. Como se não fosse suficiente a subordinação da grafia à linguagem oral, verdadeira ou falsa, há agora quem suprima consoantes bem sonoras, como comprovam as agressões diárias aos desgraçados factos e contactos, travestidos de fatos e contatos no cada vez mais analfabeto Diário da República.

Até uma organização intitulada Voluntários de Leitura, que se propõe "desenvolver a literacia e o gosto pela leitura", insere os famigerados "contatos" na sua página digital. Nem o facto de ter beneficiado do prestigiado aval da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e de a sua coordenadora-geral ser Isabel Alçada, ex-ministra da Educação e actual assessora do Presidente da República, impedem o disparate.

 

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Neste contexto, não admira que até jornais já rendidos ao acordês alterem à la carte alguns dos seus imperativos mais abstrusos, como a abolição do acento agudo que desfaz a homografia entre para e pára.

Quando a tolice se torna lei, desobedecer-lhe é um imperativo cívico.

3 comentários

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    Costa 07.11.2016

    "Os defeitos que atribuem à grafia pós-acordo já existiam antes", escreve. Quererá fundamentar o que afirma? É que no texto que aqui comentamos são apresentados exemplos do indefensável desastre a que conduz o AO90. Disparates, absurdos, que o "acordo" trouxe.

    O argumento de escrever como em latim, ou "como o Camões", está para lá de gasto. E nunca seria, com honestidade, fundamento de uma defesa séria - se possível - do AO90.

    Uma coisa são as transformações que a fala e a escrita sofrem, em natural e gradual evolução ao longo de séculos. Outra a imposição instantânea, por decreto (e nem sequer de forma legalmente válida), de alterações radicais que nada têm a ver com a realidade cultural e muito menos com aquilo que a ciência consolidadamente estabelece. Nem sequer favorecem a clareza e se algo fazem, em termos de efeito prático imediato, é potenciar a confusão que afirmam pretender aclarar.

    Quanto ao medo de "ceder ao Brasil", não é medo. É direito e orgulho de falar e escrever o português europeu, como eles, brasileiros, legitimamente terão orgulho em escrever e falar português brasileiro (se é que se não lhe poderia - ou deveria - chamar já e sem mais brasileiro, língua brasileira, dada o rumo por ela tomado seja em termos de vocabulário seja de sintaxe; uma língua que nós, portugueses, nos esforçamos empenhadamente por entender, chegando mesmo a modificar a nossa fala e escrita naturais quando o destinatário é brasileiro, em favor do melhor entendimento possível, não se podendo todavia falar, nessa matéria, de reciprocidade. Sequer minimamente...).

    Esta é matéria em que o peso demográfico é inaceitável como fundamento de mudança. Estamos a falar de povos, entidades culturais autónomas, de dignidade absolutamente igual (e se precedência houvesse, mandaria o bom senso que fosse nossa), sejam dez ou cem milhões. Que um deles aceite, com estúpida indiferença (ou mesmo aplauso), a humilhante submissão ao outro, outro que com todo o respeito pelos seus brilhantes cultores da língua portuguesa, em variante sul-americana, está longe, muito longe, de ser uma referência mundial em matéria de educação e cultura, diz muito sobre Portugal e os portugueses.

    É aliás muito triste (triste por nós e para nós) ver na pronúncia e grafia brasileiras, em bem mais do que um caso, o respeito pelas palavras que por cá tão deploravelmente se abandonou.
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    jo 08.11.2016

    O latim foi invocado como redução ao absurdo. Mas parece que por aqui pensa-se tão seriamente que até o latim se leva a sério.
    A ortografia não teve, nem poderia ter, uma evolução gradual ao longo de séculos. A partir do momento em que passou a ser fixada em lei ela foi alterada por saltos, há várias revisões ortográficas que fixam uma determinada ortografia e, não sendo entendido, aposto que todas foram polémicas.
    Pergunto porque se há de considerar a ortografia de 1989 o culminar da língua e da ortografia portuguesa. Porque não as revisões anteriores?
    Quanto ao arrazoado que escreveu sobre o Brasil ele, por si só, corrobora o que eu disse: andam a considerar as consoante mudas instrumentos de domínio.
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