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Delito de Opinião

Por terras khmers (5)

Sérgio de Almeida Correia, 30.12.16

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A noite passada, antes de me deitar, aproveitei para ler alguns jornais locais e pôr-me em dia com as notícias. Quando chego a qualquer local, um dos meus primeiros gestos é tentar obter a imprensa. Há hotéis que logo pela manhã deixam os jornais à porta dos quartos e se há coisa que goste de sentir é o seu cheiro a novo e a tintas frescas ao começar o dia. Tem sido assim desde que me conheço.

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O Khmer Times, The Cambodia Daily e o Phnom Penh Post têm edições coloridas em língua inglesa. Fico a saber que oficiais superiores das Reais Forças Armadas do Camboja* intimidaram a Tailândia a cessar os disparos junto à fronteira sobre os cambojanos que pretendem atravessá-la a salto à procura de trabalho e melhores condições de vida. A Assembleia Nacional pode vir a interrogar, a pedido da Comissão Parlamentar de Direitos Humanos, o ministro do Interior, Sar Kheng, pelo assassinato do analista político Kem Ley. O assassino de uma major das Forças Armadas, com 21 anos e estudante da Real Universidade de Phnom Penh, que inicialmente estava sujeito a uma moldura penal máxima de 15 anos, foi condenado a prisão perpétua por homicídio premeditado e o juiz-presidente do Tribunal Municipal de Phnom Penh “reverted the charge (...) and sentenced Mr. Kimmheng to life imprisionment, without explaining his decision” (The Cambodia Daily, 22/12/2016). O Partido Popular do Camboja (PPP), liderado pelo primeiro-ministro Hun Sen, reunido em congresso em Koh Pich, “outlined a program of social reforms”, num pacote de políticas que, entre outras coisas, envolve o controlo dos preços dos produtos agrícolas, a distribuição de terras ao abrigo de concessões sociais, ajudas aos pobres, desburocratização da obtenção de certidões de nascimento, de casamento e de óbito e de identificação, preços controlados na electricidade e o aumento do salário mínimo para 1 milhão de Riéis (250 USD). As eleições comunais são no próximo ano. Hun Sen foi ministro dos Negócios Estrangeiros entre 1979/1986 e depois entre 1987/1990. É primeiro-ministro desde 1996. Foi segundo primeiro-ministro até ao golpe de 1997 e desde 1998 é primeiro-ministro. Estamos no final de 2016 e o senhor vai no quinto mandato. Por aqui fica tudo explicado sobre a oportunidade das medidas anunciadas.

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Tomado o pequeno-almoço, ao ar livre e à beira de uma piscina, fomos ter com o condutor de tuk-tuk com quem tínhamos combinado o dia. Era outro. Disse que o irmão não podia ir e lhe tinha telefonado a pedir que fosse ter connosco. Seguimos na mesma.

O dia foi reservado para ir, finalmente, ao que ficou tristemente conhecido como os “killing fields”. O seu nome oficial é Choeung Ek e foi tudo menos uma prisão normal. Está a 7,5 km de Phnom Penh, contados a partir dos limites da parte sul da capital. O percurso é todo ele um suplício que atravessa um mar de pó, percorrendo zonas comerciais à beira da estrada com ofertas de massagens de 60 minutos por 9 USD, lojas de bugigangas, de ferro velho, cantinas e hostels miseráveis. Sempre com muito lixo largado à beira da estrada, atirado para os campos e em riachos. De repente uma curva para a esquerda e continuamos por um caminho de terra batida entre hortas e esgotos onde nalguns pontos mal cabem dois carros. Por fim lá chegámos, debaixo de um imenso e longínquo céu de um azul profundo, com um sol escaldante e uma humidade elevada. Uma estufa.

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Entre 1975 e 1979 cerca de 17.000 homens, mulheres e crianças foram presos e torturados na S-21, código de uma escola na capital que se chamou Tuol Svay Prey High School. Em 1975 foi tomada pelos homens da segurança de Pol Pot e redenominada "Security Prison 21". Da S-21, prisão secreta do regime, saíam depois os camiões com os presos de olhos vendados, entre as 20 e as 21 horas, que iam até Choeung Ek, uma das 196 prisões do regime de Pol Pot. Dali, da S-21, só sete dos que lá entraram saíram com vida, escapando milagrosamente à morte, sendo libertados depois da queda dos Khmer Rouge. Também lá ficaram nove estrangeiros incluindo um navegador neo-zelandês, Kerry Hamill, e o seu amigo canadiano, Stuart Glass, que tiveram o azar de entrar em águas do Camboja quando o primeiro realizava o seu sonho de dar a volta ao mundo num veleiro.

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Choeung Ek é um local de um silêncio aterrador. Com entrada por um terreiro que está agora ladeado de casas, um estacionamento para carros, motas e tuk-tuks e tascos incaracterísticos. Ainda hoje está murado e com arame farpado. Só depois dos vietnamitas entrarem e expulsarem os khmer rouge é que foi possível saber o que aconteceu. Em 1980 foram exumados 8985 cadáveres, muitos ainda com as mãos atadas e as vendas no que foram os seus olhos. As valas comuns estão umas a seguir às outras, devidamente assinaladas.

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Tal como os nazis, os khmer rouge mantinham registos meticulosos dos seus crimes pelo que é possível saber com rigor o que aconteceu. As fotografias são imensas e hoje o fotógrafo principal, Nhem En, vive descansadamente com a família no norte do país, onde ainda sonha, de acordo com o que me foi transmitido, vir a ser governador provincial. Na S-21 foi inclusivamente criado um centro de documentação com o apoio da Universidade de Yale para investigar e documentar os crimes daquela canalha. Em 1997 esse centro deu lugar a uma organização independente que desde então tem traduzido e compilado documentos, mapeado as valas comuns e procedido à preservação dos espaços para que a memória, que não é só a deles mas também a nossa, não se perca.

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A visita é toda ela feita em silêncio. Um silêncio muito diferente daquele que vivi na beleza de Angkor Wat e que aqui é apenas cortado pelos comentários do magnífico guia-áudio que me foi entregue. Há guias-áudio em múltiplas línguas, com excepção do português, para acompanharem os visitantes ao longo das várias estações do percurso, numa espécie de Via Sacra. A locução é rigorosa, cristalina, irrepreensível. Os factos e os depoimentos são-nos atirados sem filtro. Por vezes ouve-se apenas a música que era tocada num volume altíssimo nos altifalantes de Choeung Ek na altura das execuções, para assim se abafarem os gritos das vítimas, os tiros e o ruído daquelas.

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Há bancos à sombra das árvores e arbustos, onde as pessoas são convidadas a sentarem-se para ouvirem o guia-áudio. A maioria dos que lá encontrei eram jovens, estudantes, muitos ocidentais, alguns asiáticos. E havia viajantes, como eu, que queriam saber um pouco mais do que aquilo que vem nos livros. Existe no local, logo após o início do percurso que está devidamente demarcado, um pavilhão com fotografias e múltiplas explicações onde é passado um documentário com as imagens do que se encontrou quando em 1979 se tornou possível entrar e sair dali. Porque para se perceber o que ali aconteceu e a forma como aquele inferno era gerido impõe-se a compreensão da cadeia de comando estabelecida pela liderança khmer rouge.

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No seu topo, além de Pol Pot, figuravam Nuon Chea, Ta Mok, Son Sen e Khiev Sam Pan. Como muitos saberão, Pol Pot, o líder máximo, era filho de um rico agricultor khmer, Penh Saloth, que tinha mais de 12 hectares de terra. Nascera com o nome de Saloth Sar, em Kompong Thom. Uma irmã era consorte real, o irmão Song era oficial do protocolo real, e ele foi enviado pelos pais para viver com estes e ali ser educado. Frequentou uma escola básica da elite católica e aos 23 anos recebeu uma bolsa do governo francês e foi estudar para Paris onde se juntou ao Partido Comunista Francês. Depois de reprovar em três anos consecutivos, casar-se-ia com Khieu Ponnary, a primeira mulher cambojana a obter um baccalauréat, regressando ambos ao seu país em 1956. Mentiroso compulsivo, até no dia do casamento mentiu quanto à sua idade, dizendo que tinha 21 anos em vez de 28. Nunca admitiu o seu nome verdadeiro e a sua biografia oficial, publicada em 1977, diz que era agricultor, omitindo os anos passados no Palácio Real, em Phnom Penh, e a passagem por França. Por aqui se vê a qualidade da besta. 

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O regime estava organizado em termos tais que a última ordem seria sempre dada pelo “Irmão n.º 1”. Tudo o que fosse feito tinha a sua aprovação, ainda que escasseiem as ordens escritas. Son Sen era o encarregado da Segurança Nacional e da Defesa e o sinistro Duch, que aparece no julgamento com uma camisa da Ralph Lauren, o comandante da S-21. Foram estes, depois de Pol Pot, os responsáveis pelo genocídio. Sobre isto existem provas escritas. Os documentos eram todos enviados para a sede do partido e vistos por Son Sen, havendo imensos memorandos com anotações e “confissões” dos prisioneiros, muitas vezes a tinta vermelha. Obtidas as instruções do Comité Central era produzida a lista dos que seriam executados. Residentes nas cidades, escritores, jornalistas, professores, estudantes, ninguém escapava. 

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Penso que sobre isto não vale a pena dizer mais nada. A informação é abundante e só escapou porque na fuga a canalha não teve tempo para destruir as provas. A média diária de executados era variável e podia ir de algumas dezenas a centenas. Duas a três vezes por mês lá saíam os camiões cheios de prisioneiros da S-21. Não levavam gado. Transportavam seres humanos de todas as idades. E estes não morriam com gás. Aquela gente era mais refinada. Estiletes pelo crânio, machados, bebés e crianças agarrados pelos pés e atirados contra uma árvore, homens de joelhos que depois eram agredidos com barras de ferro no pescoço até começarem a sangrar (...), tudo era possível. A seguir aos choques eléctricos na S-21, às celas minúsculas, aos vasos de barro cheios água onde lhes mergulhavam a cabeça enquanto aguardavam pelas “confissões”, às barras de ferro onde lhes enfiavam os tornozelos, seguia-se a viagem para Cheoung Ek. Os químicos que lá foram encontrados costumavam ser usados para regar as vítimas, muitas ainda vivas e em profunda agonia, desfazê-las e evitar os cheiros, por vezes inevitáveis quando os ventos sopravam mais fortes. Kong San, um ex-soldado da divisão 703, que cultivava arroz nas redondezas, testemunhou que quando sentia o cheiro pensava que era o de cachorros mortos. Terminadas as execuções procedia-se à confirmação das vítimas para se ter a certeza de que ninguém ficara vivo.

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Choeung Ek não era, nesses tempos miseráveis em que noutros locais desse mundo a Humanidade ainda vai insistindo, uma brincadeira de crianças. Também não é na actualidade um passeio turístico. Não é lugar para turistas que vão à procura de sol, bebidas exóticas e ansiosos para se atafulharem de imitações rafeiras das marcas famosas que chineses e angolanos ricos disputam na Avenida da Liberdade. Choeung Ek é uma viagem ao que de mais inaudito existe na alma humana. Uma viagem às nossas entranhas sem bilhete de volta. Mais de trinta volvidos continua a não ser um local para pessoas sensíveis. Proporcionalmente, e em termos de barbarismo, o que aqueles filhos da puta fizeram ao seu povo, a gente de carne e osso, a seres humanos como nós, suplantou em muito o que aconteceu com os nazis ou o que se sabe dos períodos mais negros do estalinismo. E tudo aconteceu tão perto de nós. Há tão pouco tempo. E quando nós, portugueses, discutíamos salários, nacionalizações, a reforma agrária, líamos a Gaiola Aberta e víamos o Último Tango em Paris. Como se este fosse outro mundo.

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Antes de me retirar fui ao stupa (pagode) que ali foi erigido para honrar a memória das vítimas. Deixei lá um ramo de flores brancas e amarelas. Alguém entregou-me uns pivetes que se juntaram a outros e que por lá ficaram a arder. Fi-lo quase maquinalmente, absolutamente horrorizado, destroçado na minha condição de homem. Com uma angústia que não sei descrever.

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O regresso ao tuk-tuk e o caminho de volta pareceram-me intermináveis. Emocionei-me protegido pelos óculos de sol. Fui olhando para a passagem sem nada ver. Sem saber o que dizer a quem estava ao meu lado, sem saber o que pensar. Uma vez mais o silêncio. Um silêncio dilacerante. Sempre o silêncio até chegar a Phnom Penh e o nosso motorista nos largar à porta da S-21. Podia tê-lo evitado. Não o fiz. Sentia que era preciso cumprir a última fase do caminho. Por respeito para com todos aqueles que por ali passaram. Por respeito para comigo. Percorri as quatro alas em silêncio. Subi e desci aquelas escadas frias, feias, despidas. Entrei nas celas, vi os instrumentos de tortura, as caixas que garantiam as descargas junto às camas dos reclusos. Vi milhares de fotografias e li os testemunhos. Até vi nas paredes o arrependimento tardio dos suecos que num momento em que regime precisou fizeram de idiotas úteis da sua propaganda para o Ocidente promovendo as virtudes que aquela canalha desprovida de princípios e de valores nunca teve. Sempre em silêncio. De que outra forma poderia ser? Daqui para a frente não escrevo mais nada. Imaginem uma página em branco onde está lá tudo. Tudo o que não consigam imaginar, mas que vos deixe nauseados, moribundos. Não há palavras que o descrevam. Poupo-vos ao relato de tudo o que encontrei na S-21. A minha parceira não aguentou mais. Preferiu descansar de tanta violência e aguardar-me no jardim, enquanto lia e escrevia uns postais. Para ela já não havia mais nada para ver. Tinha visto tudo. Eu nunca vira nada assim e ainda não estou certo de ter visto o que vi. 

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Quando no final desse dia cheguei ao meu hotel e me despedi do nosso prestável motorista sentia-me sem forças. Como se tivesse levado uma sova de proporções épicas. Transpirado, nojento, senti-me imundo. Dei umas braçadas na piscina do hotel, tomei um duche como que desejando desinfectar-me, purificar-me, perdoar-me pelo que não fiz. Absolutamente destroçado pelo que vi, esmagado pelo asco, pela dimensão do sofrimento daquela gente. Senti vergonha e nojo da minha espécie. Não sei como algum dia sairei daqui. Sei que após esse dia 22 de Dezembro não sou o mesmo. E também não sei que sentido se há-de atribuir ao Natal depois da viagem que fiz. Pode ser que um dia alguém me explique. Presentes? Caixas de Multibanco exauridas? Presépios? Reis Magos? Sacos a abarrotar de compras? Pinheiros enfeitados com luzinhas coloridas a piscar? As crianças merecem-nos. Têm direito ao sonho. Mas nós? Nós, nós ainda estamos tão longe do Natal... 

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Ninguém volta a ser o mesmo depois de passar por ali. De ouvir e de ver aqueles registos. Não há olhos que cheguem para tanta escuridão. Não há lágrimas que nos sustentem. Não há nada que fique de pé. Não há nada que resista. Nada.

Nunca mais vai ser Natal. Tenho a certeza. Espero um dia ser perdoado. Por quem é que eu já não sei.

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[* - Antigamente escrevia-se Cambodja. Foi assim que aprendi. Os brasileiros ainda o fazem. Há especialistas que dizem que se pode grafar das duas maneiras. Contudo, de acordo com o Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa e o meu velho prontuário aparece sem o "d", pelo que daqui para a frente assim será.]