Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Delito de Opinião

Polícia-sinaleiro

Pedro Correia, 27.10.15

367572[1].jpg

 

Na sua  mensagem aos portugueses do passado dia 22, Cavaco Silva esteve bem ao indigitar Pedro Passos Coelho como primeiro-ministro: trata-se do líder da coligação que saiu vencedora das legislativas e do presidente do partido que dispõe da maior bancada parlamentar. Como já sublinhei, a democracia é ritualista: nenhum ritual próprio do sistema político-constitucional deve ser dispensado a pretexto de que urge "ganhar tempo", como se apressaram a considerar os representantes das diversas esquerdas.

Cavaco, no entanto, resvalou para uma lamentável ambiguidade ao deixar no ar a ideia de que não indigitaria um executivo formado por via parlamentar em alternativa ao eventual derrube do novo governo liderado por Passos Coelho, hoje anunciado.

Lamenta o Presidente que "as forças partidárias europeístas não tenham chegado a um entendimento". Mas cumpre perguntar: que pontes estendeu Belém com vista a esse entendimento? Que passos concretos deu Cavaco, no exercício da sua magistratura de influência, para firmar as bases de uma solução política "europeísta" dotada de um sólido apoio parlamentar?

Não basta ao inquilino do palácio presidencial refugiar-se em cortinas de retórica inconsequente para depois vir dizer aos portugueses que lançou avisos no momento próprio. De um Presidente espera-se que seja muito mais do que uma espécie de polícia-sinaleiro.

 

"Se o Governo formado pela coligação vencedora pode não assegurar inteiramente a estabilidade política de que o País precisa, considero serem muito mais graves as consequências financeiras, económicas e sociais de uma alternativa claramente inconsistente sugerida por outras forças políticas." São também palavras de Cavaco, proferidas nesse discurso, que suscitam sérias interrogações.

O Chefe do Estado poderá recusar uma solução alternativa que lhe seja proposta pelo Parlamento?

Em tese abstracta, sim - correndo o risco de terminar o seu mandato com um inédito conflito institucional entre o Presidente da República e a Assembleia da República, susceptível de causar sérios danos reputacionais ao País no plano externo e de criar feridas políticas insanáveis no plano interno.

Mas, estando impedido de dissolver o Parlamento pelo artigo 172º da Constituição, que alternativas restariam a Cavaco num cenário desses? A indigitação de um executivo de gestão, sem poderes efectivos nem prestígio institucional, destinado a manter-se penosamente em funções até Junho de 2016. Ou a formação de um governo de "iniciativa presidencial", fatalmente também condenado a um chumbo no hemiciclo.

Ambos os cenários, além de fragilizarem o País, transferiam a resolução do problema para o novo Chefe do Estado, que só tomará posse em Março.

Seria um péssimo legado de Cavaco. Não por acaso, Marcelo Rebelo de Sousa já avisou: "Cabemos todos na democracia. O debate é legítimo, mas tem de ser um debate feito com serenidade e sem exclusões, não confundindo adversários e inimigos." O candidato presidencial, numa indisfarçável farpa ao ainda inquilino de Belém, apressou-se a garantir: "No que depender de mim, tudo farei para tentar não onerar o meu sucessor com problemas evitáveis."

 

A democracia, além de ritualista, também é gradualista. Não vivemos tempos propícios a experimentalismos constitucionais. Nem os portugueses são cobaias de laboratório político.

A palavra, sem reservas, cabe à Assembleia da República: primeiro, para apreciar e votar o programa do segundo executivo Passos; depois, em caso de chumbo da coligação, para viabilizar um governo alternativo, caucionado pela nova aritmética parlamentar. Colocando-se a iniciativa nos ombros de António Costa. Se também esta solução fracassar, a partir de Abril de 2016 - já com novo inquilino em Belém - há sempre o recurso a legislativas antecipadas.

Cavaco, por sua vez, deve poupar o País aos seus estados de alma, reservando-os para a elaboração de um futuro livro de memórias. E se quer aproveitar bem o tempo que lhe falta até ao fim do mandato, o melhor é meditar nos erros cometidos - a começar pela "magistratura de influência" que lhe cabia mas nunca concretizou.

26 comentários

Comentar post